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Processo n.º 130/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. O representante do Ministério Público no Tribunal
Judicial de Gondomar deduziu acusação contra, entre outros, A., a quem imputou
a autoria de:
– vinte e seis (26) crimes dolosos de corrupção activa,
sob a forma de autoria, previstos e punidos pelo artigo 374.°, n.º 1, do Código
Penal, por referência ao artigo 386.°, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal,
aos artigos 21.°, 22.° e 24.° da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro (agora artigos
20.°, 21.°, 22.º, 23.º e 24.º da Lei n.º 30/2004, de 21 de Julho), aos artigos
7.°, 8.° e 11.° do Decreto‑Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, e Despacho n.º 56/95
da Presidência do Conselho de Ministros, de 1 de Setembro de 1995, in Diário da
República, II Série, de 14 de Setembro de 1995 (factos descritos nos pontos 1.1,
1.3, 1.2, 1.3.1, 1.3.3, 1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.7, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10,
1.3.11, 1.3.12, 1.3.13, 1.3.15, 1.3.16, 1.3.17, 1.3.19, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.23,
1.3.24, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27, 1.3.28 e 1.3.29); e de
– vinte e um (21) crimes dolosos de corrupção desportiva
activa, sob a forma de autoria, previstos e punidos pelo artigo 4.º, n.ºs 1 e 2,
por referência aos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, todos do Decreto‑Lei n.º
390/91, de 10 de Outubro (factos descritos nos pontos 1.1, 1.3, 1.2, 1.3.2,
1.3.3, 1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10, 1.3.14, 1.3.15, 1.3.16,
1.3.17, 1.3.18, 1.3.20, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27 e 1.3.29).
1.2. Notificado da acusação, o arguido apresentou
requerimento de abertura de instrução, cujo teor sintetizou no seguinte resumo:
“1. Ainda que fosse verdadeira – o que não se concede –, a matéria
de facto descrita na acusação não é passível de censura penal mediante recurso
aos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, 4.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‑Lei n.º 390/91,
de 10 de Outubro, nem se enquadra na previsão normativa do artigo 374.º, n.º 1,
do Código Penal.
2. A Lei n.º 49/91, de 3 de Agosto, e o Decreto‑Lei n.º 390/91, de
10 de Outubro, são inconstitucionais por violação dos n.º 1, alínea c), e 2 do
artigo 165.º do CRP, como tal devendo ser declarados.
3. Assim sendo, como se tem por certo, ainda que fossem verdadeiros
– mas não são – os factos descritos nos pontos. 1.1, 1.3, 1.2, 1.3.2, 1.3.3,
1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10, 1.3.14, 1.3.15, 1.3.16, 1.3.17,
1.3.18, 1.3.20, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27 e 1.3.29 da acusação, não
poderiam os mesmos ser sancionados mediante recurso aos artigos 2.º, n.º 1, 3.º,
n.º 1, e 4.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro, pelo que,
nessa parte, se impõe a não pronúncia do arguido.
4. Tais factos, declarada a inconstitucionalidade daqueles diplomas
legais, jamais poderão ser sancionados mediante o recurso aos preceitos do
Código Penal que prevêem e punem a corrupção, em especial o artigo 374.º, n.º 1,
por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), além do mais porque nenhuma
das entidades referenciadas naqueles pontos da matéria de facto poderá ser
considerada funcionário público.
5. Os tipos criminais descritos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do
Código Penal não abrangem os actos praticados no domínio do futebol
profissional, não profissional e amador.
6. O bem jurídico corporizado na verdade, lealdade e correcção da
competição e do seu resultado e no respeito pela ética das competições
desportivas apenas recebeu protecção criminal com a publicação do Decreto‑Lei
n.º 390/91, de 10 de Outubro, embora de modo juridicamente inoperante, tendo em
consideração a inconstitucionalidade deste diploma.
7. É insustentável a incriminação do arguido pela suposta prática de
26 crimes dolosos de corrupção activa, previstos e punidos pelo artigo 374.º,
n.º 1, do Código Penal.
8. A interpretação do artigo 374.º, e, bem assim, dos artigos 372.º
e 373.º do Código Penal que considera estes preceitos aplicáveis aos actos
praticados no âmbito do desporto em geral e do futebol em particular que
ofendam a verdade, lealdade e correcção da competição e do seu resultado e o
respeito pela ética das competições desportivas é inconstitucional, por violação
do princípio da subsidiariedade e intervenção mínima do direito penal
consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
9. A incriminação do arguido por 26 crimes dolosos de corrupção
reporta‑se à suposta solicitação feita por si ao Presidente do Conselho de
Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol B. (também arguido no processo)
para que, de entre os que reuniam condições para serem por ele nomeados, apenas
escolhesse para dirigir jogos do C. árbitros constantes de uma lista que lhe era
apresentada para o efeito.
10. A acusação não descreve nenhuma irregularidade ou ilegalidade
que afectem o conteúdo, a substância ou o fundo do acto de nomeação dos árbitros
efectuada pelo co‑arguido B. nessas circunstâncias nem enuncia sequer as regras
das nomeações que pudessem ter sido violadas.
11. A ser punido pelo Código Penal – o que se repudia –, aquele
comportamento só poderia enquadrar-se no n.º 2 do artigo 374.º, por referência
ao artigo 373.º, e nunca no seu n.º 1.
12. A incriminação da corrupção activa para acto lícito no domínio
do fenómeno desportivo ofenderia em medida de todo incomportável o citado
princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal.
13. A interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do Código Penal que
estendesse o respectivo âmbito de aplicação aos actos praticados no âmbito do
desporto em geral e do futebol em particular sempre seria, por conseguinte,
inconstitucional, por violação do princípio da subsidiariedade e intervenção
mínima do direito penal consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
14. O conceito de funcionário previsto para efeitos da lei penal é
integrável apenas nos casos em que o agente activo do crime seja funcionário.
15. É manifesto que o Presidente do Conselho de Arbitragem da
Federação Portuguesa de Futebol não é reconhecido pelo cidadão comum como
funcionário público, mesmo admitindo que o seja por ele próprio, do que se
duvida.
16. Assim sendo, como é, não existe a indispensável avaliação
paralela na esfera do leigo quanto a essa qualidade de funcionário para que
possa estender‑se a previsão do artigo 374.º do Código Penal à hipótese
vertente.
17. Também por isso, os factos descritos na acusação não poderiam
jamais ser enquadrados na previsão do artigo 374.º, n.º 1, por referência ao
artigo 386.º, n.º 1, alínea c), parte final, do Código Penal.
18. Estender o campo de aplicação deste último preceito ao
Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol para
efeitos de incriminação da corrupção activa prevista e punida pelo n.º 1 do
artigo 374.º do Código Penal, implicaria uma interpretação inadmissível dessa
normas, por ofensivo da tipicidade e subsidiariedade do direito penal
decorrentes dos artigos 18.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, da CRP.
19. Os actos e omissões praticados por dirigentes desportivos com
violação da verdade, lealdade, correcção e ética ou a solicitação por outrem
para a prática desse tipo de actos seriam puníveis apenas pelo Decreto‑Lei n.º
390/91, de 10 de Outubro, e nunca pelo Código Penal.
20. O Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa
de Futebol não pode senão considerar‑se dirigente desportivo, maxíme para todos
os efeitos previstos no citado Decreto‑Lei.
21. Ainda que este diploma não estivesse enfermo de
inconstitucionalidade, a conduta do requerente visando a prática de actos
lícitos pelo Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de
Futebol jamais poderia implicar responsabilidade criminal, atenta a sua
qualidade de dirigente desportivo.
22. Por último, a entender‑se que a conduta que a acusação imputa ao
requerente tinha por escopo a prática de actos ilícitos pelo Presidente do
Conselho de Arbitragem, sempre seria indiscutível, pelas invocadas razões, que
a mesma seria punível, quando muito, pelo n.º 2 do artigo 4.º do Decreto‑Lei n.º
390/91, e não pelo n.º 1 do artigo 374.º do Código Penal.
23. No sentido da insuperável improcedência da acusação converge
ainda a circunstância de nela se não descreverem factos indispensáveis para
consubstanciar qualquer tipo de corrupção activa.
24. Desde logo porque, quanto aos actos relacionados com o
Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, a
acusação não descreve nenhum facto susceptível de ser considerado ofensivo da
verdade, correcção, lealdade e ética desportivas.
25. Bem pelo contrário, o que ressalta do próprio libelo é que a
intervenção do requerente tinha como único escopo prevenir e impedir a viciação
dos resultados desportivos, evitando que fossem nomeados árbitros que pudessem
prejudicar o C..
26. Depois, porque não estão descritos na acusação actos
susceptíveis de consubstanciar qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial
que o requerente tenha dado ou prometido, ainda que por interposta pessoa, a
troco dos comportamentos que lhe imputam ter solicitado de qualquer dos
intervenientes no processo.
27. Nenhuma das «ofertas» a que se alude na acusação poderá
considerar‑se relevante ou ofensiva dos hábitos sociais instituídos na
actividade do futebol, ou adequada a criar um clima de permeabilidade ou
simpatia propício à obtenção futura de favores ilícitos.
28. A extensa e a todos os títulos imprópria citação de excertos de
conversações telefónicas contida na acusação implica nulidade, por ofensa do
disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, que fica alegada.
29. E a verdade é que os meios de recolha de prova utilizados
enfermam de gravíssimas nulidades que lhes retiram em definitivo e sem remissa
qualquer réstia de valor.
30. É esse o caso, antes do mais, das escutas telefónicas, que são
nulas, em síntese, porque:
30.01. Têm origem num despacho judicial nulo, porque:
– não concretiza nem descreve qualquer indício probatório;
– não concretiza nem especifica qualquer facto relativo ao crime que
diz mostrar‑se indiciado;
– não descreve nem especifica qualquer facto/razão que permita
concluir que as escutas se revelam de grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova ou que justifique não se poder alcançar o escopo
pretendido através de outros meios de prova menos ofensivos da liberdade e
privacidade do arguido; e
– não fixa nenhum prazo para duração das escutas.
Estas omissões ofendem o disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º,
n.º 1, parte final, do CPP, e 205.º, n.º 1, da CRP, e implicam, como efeito
directo e imediato, a nulidade de todas as escutas que são consequência adequada
e exclusiva das escutas iniciais.
Sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18.º,
n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, este conjunto normativo não pode ser interpretado
como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar através de factos os
elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar
mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que
condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e as razões, diferentes
da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam
a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim, de fixar um prazo para a
respectiva duração.
30.02. Não respeitaram as exigências legais e constitucionais da
imediação, acompanhamento e controlo pela autoridade judicial, ocorrendo
enormes lapsos de tempo, por vezes superiores a dois meses, entre a data da
intercepção e gravação das conversações e a audição pelo JIC das sessões que a
Polícia Judiciária considerou de interesse, audição que, na falta dos
correspondentes autos, se presume ter sido feita nas datas de prolação dos
despachos em que o JIC ordena a transcrição e/ou destruição das gravações;
Interpretado no sentido de permitir a ocorrência de tais lapsos de
tempo, o artigo 188.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, por ofensa do disposto
nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.03. A entidade que lavrava os autos de intercepção e gravação,
nos quais seleccionava logo as sessões consideradas com interesse, retinha
sistematicamente esses elementos na sua posse, só os apresentando ao JIC muitos
dias depois de os recolher.
A interpretação do artigo 188.º, n.º 1, que admita a ocorrência de
grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de
intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com
interesse e a sua apresentação ao Juiz é inconstitucional, por ofensa das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da CRP. 30.04. Mantiveram‑se, mediante prorrogações de autorização
judicial, mesmo quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima
parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação.
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação do prazo da
escutas nestas circunstâncias, o artigo 187.º, n.º 1, do CPP é
inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8,
da CRP.
30.05. Não respeitaram o formalismo que regula a sua execução:
– por um lado, de nenhum dos inúmeros autos de intercepção e
gravação lavrados no processo constam «a identidade da pessoa que procedeu à
intercepção (...) e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da intercepção e
da gravação», com o que foi preterido, assim e desde logo, o disposto no artigo
99.º, 3.º, alínea a).
– por outro lado, não foi lavrado nenhum auto de audição das
gravações pelo M.mo Juiz de Instrução, para documentar, da única forma
aceitável, tendo em consideração a natureza dos direitos fundamentais em causa,
a prática do acto e as circunstâncias, sobretudo de tempo, em que foi praticado,
com o que foram preteridos, entre outros, os artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e
99.º, n.º 1.
A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos 94.º,
n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), que considere tais preceitos
inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas é
inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.06. Estão feridas pela destruição de grande parte dos suportes
magnéticos da respectiva gravação, ordenada pelo JIC.
A segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º é inconstitucional, por
ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.
30.07. Arrastaram‑se por um período de tempo superior a treze meses,
incompatível com a natureza excepcional deste meio de recolha de prova e que
excede em muito os prazos legais para a conclusão do inquérito.
A interpretação do artigo 187.º que permita a autorização e
manutenção das escutas telefónicas por um período de tempo superior ao da
duração do prazo máximo do inquérito é inconstitucional, por violação do
disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.08. Foi prorrogada a respectiva autorização mesmo quando estava
reconhecido e certificado que as sessões já gravadas não tinham qualquer
interesse ou se revestiam de interesse residual.
A interpretação deste preceito que legitime a prorrogação de escutas
que se revelaram de interesse nulo ou residual é inconstitucional, porque ofende
os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
31. Em suma, as escutas alimentam‑se a si próprias num processo de
justificação autofágico que reduziu a investigação a um inconcebível voyerismo
auto‑suficiente e preguiçoso, altamente lesivo da privacidade dos arguidos e de
terceiros.
32. Dos mesmos vícios sofre a recolha de prova que se realizou nos
autos através do registo de imagens e som, que, por isso, é de igual modo nula.
33. A esses vícios acresce o de, entre Março de 2003 e Abril de
2004, terem sido recolhidos som e imagem do arguido sem que o despacho que as
autorizou tenha sido renovado uma única vez.
34. Não existe, por outro lado, nos autos nenhum indício, seja de
que ordem for, que demonstre ou certifique ter o M.mo Juiz de Instrução
acompanhado e controlado a execução deste meio de recolha de prova: não foi
lavrado nenhum auto de recolha de imagens e som que tenha sido apresentado ao
JIC com os respectivos elementos de suporte, para visionamento e/ou audição.
35. Todas as imagens e registos de voz que foram recolhidas e estão
documentadas nos autos são nulos, por manifesta violação do disposto no artigo
190.º, conjugado com o artigo 189.º do CPP, artigos 1.º, n.ºs 1, alínea d), e 3,
6.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e artigo 1.º, n.º 1,
alínea a), da Lei n.º 26/94, de 25 de Setembro.
36. A interpretação deste conjunto normativo que sancione o registo
de imagem e de voz sem o efectivo e permanente controlo do Juiz de Instrução é
inconstitucional, porque viola os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.”
1.3. O Juiz de Instrução Criminal de Gondomar, em 6 de
Março de 2007, proferiu decisão instrutória, em que, além do mais, desatendeu
as arguições de nulidade feitas pelo ora recorrente e as questões de
inconstitucionalidade por ele suscitadas, tendo, a final, pronunciado o arguido
pelos crimes por que vinha acusado pelo Ministério Público.
1.4. O arguido interpôs recurso da decisão instrutória
para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sintetizado a respectiva motivação
nas seguintes conclusões:
“1. NULIDADE DAS ESCUTAS
As escutas telefónicas efectuadas no decurso do inquérito são nulas,
em síntese porque:
1.1.1. têm origem num despacho nulo, porque:
– não concretiza nem descreve qualquer indício probatório;
– não concretiza nem especifica qualquer facto relativo ao crime que
diz mostrar‑se indiciado;
– não descreve nem especifica qualquer facto/razão que permita
concluir que as escutas se revelam de grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova ou que justifique não se poder alcançar o escopo
pretendido através de outros meios de prova menos ofensivos da liberdade e
privacidade do arguido; e
– não fixa nenhum prazo para a duração das escutas.
Estas omissões ofendem o disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º,
n.º 1, parte final, do CPP, e 205.º, n.º 1, da CRP, e implicam, como efeito
directo e imediato, a nulidade de todas as escutas que são consequência adequada
e exclusiva das escutas iniciais.
Sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18.º,
n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, este conjunto normativo não pode ser interpretado
como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar através de factos os
elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar
mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que
condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e as razões, diferentes
da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta aplicável, que
justificam a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim, de fixar um
prazo para a respectiva duração.
A falta de fundamentação do despacho que ordena as escutas integra
uma verdadeira e própria nulidade, não uma simples irregularidade.
Ainda que o não fosse, teria sido invocada no prazo legal previsto
no artigo 123.º pelo arguido B., aproveitando essa invocação a todos os demais
arguidos.
A interpretação que o douto despacho adoptou do conjunto normativo
integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, n.º 1 do artigo 187.º e 189.º do CPP, de
acordo com a qual constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de
concretização através de factos [d]os elementos da tipicidade do crime concreto
cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas
telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da
prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera
natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção
por este meio de recolha de prova, é inconstitucional, por ofensa do disposto,
entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.1.2. Ainda que aquele despacho não fosse nulo por falta de
fundamentação, sempre seria certo que, do ponto de vista substancial, não
existiam, à data em que foi proferido, quaisquer indícios probatórios (fosse de
que natureza fosse) da prática pelo arguido do crime de que foi considerado
suspeito – corrupção activa do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que
sempre estaria violado o disposto no artigo 187.º, n.º 1.
1.2. As escutas não respeitaram as exigências legais e
constitucionais da imediação, acompanhamento e controlo pela autoridade
judicial, como se manifesta:
– na prorrogação pelo JIC da autorização de escutas sem que
previamente tenha procedido à audição das gravações das escutas anteriores e
mesmo sem que tenha tido acesso aos suportes magnéticos destas, ou sequer sem
que tenha procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, que não lhe
tinham sido entregues nem estavam elaborados;
– nos enormes e, a todos os títulos, inadmissíveis períodos de tempo
que decorreram entre a apresentação ao Juiz do suporte magnético das gravações,
acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia Judiciária considera
relevantes, e a respectiva audição;
– nos enormes lapsos de tempo verificados entre a data em que é
feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e
dos suportes magnéticos das gravações;
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem
prévia audição das anteriores e a ocorrência de tais lapsos de tempo, o artigo
188.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos
18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.3. A entidade que lavrava os autos de intercepção e gravação, nos
quais seleccionava as sessões consideradas com interesse, retinha
sistematicamente esses elementos na sua posse, só os apresentando ao JIC muitos
dias depois de os recolher.
A interpretação do artigo 188.º, n.º 1, que admita a ocorrência de
grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de
intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com
interesse e a sua apresentação do Juiz é inconstitucional, por ofensa das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da CRP.
1.4. As escutas mantiveram‑se, mediante prorrogações da autorização
judicial, mesmo quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima
parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação.
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação do prazo das
escutas nestas circunstâncias, o artigo 187.º, n.º 1, do CPP, é
inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8,
da CRP.
1.5. As escutas não respeitaram o formalismo que regula a sua
execução:
– por um lado, de nenhum dos inúmeros autos de intercepção e
gravação lavrados no processo constam «a identidade da pessoas que procedeu à
intercepção [...] e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da intercepção e
da gravação», com o que foi preterido, assim e desde logo, o disposto no artigo
99.º, n.º 3, alínea a);
– por outro lado, não foi lavrado nenhum auto de audição das
gravações pelo Juiz de Instrução, para documentar, da única forma aceitável,
tendo em consideração a natureza dos direitos fundamentais em causa, a prática
do acto e as circunstâncias, sobretudo de tempo, em que foi praticado, com o que
foram preteridos, entre outros, os artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º
1.
A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos 94.º,
n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), que considere tais preceitos
inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas é
inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.6. As escutas estão feridas pela destruição de grande parte dos
suportes magnéticos da respectiva gravação, ordenada pelo JIC e levada a cabo
sem a audição dos arguidos.
A segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP é inconstitucional,
por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.
1.7. As escutas arrastaram‑se por um período de tempo superior a
treze meses, sem a prática ou recolha de quaisquer outros elementos relevantes
de prova, sendo esse prazo incompatível com a natureza excepcional deste meio de
recolha de prova, até porque excede em muito os prazos legais para a conclusão
do inquérito.
A interpretação do artigo 187.º que permita a autorização e
manutenção das escutas telefónicas por um período de tempo superior ao da
duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de
quaisquer outros meios relevantes de prova, é inconstitucional, por violação do
disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.8. Foi prorrogada a autorização das escutas mesmo quando estava
reconhecido e certificado que as sessões já gravadas não tinham qualquer
interesse ou se revestiam de interesse residual.
A interpretação deste preceito que legitima a prorrogação de escutas
que se revelaram de interesse nulo ou residual é inconstitucional, porque ofende
os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
2. INAPLICABILIDADE DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO DA ALÍNEA C) DO N.º 1
DO ARTIGO 386.º DO CÓDIGO PENAL AO PRESIDENTE DO CONSELHO DE ARBITRAGEM DA FPF
2.1. Como resulta do n.º 6 do artigo 267.º da Lei Fundamental, as
pessoas colectivas de utilidade pública não estão incluídas, por definição, no
conceito de «entidades públicas» a que se reportam os artigos 269.º e 271.º da
CRP, ainda que «exerçam poderes públicos».
2.2. De acordo com o que dispõe o n.º 1 daquele artigo 271.º da CRP,
só os «agentes» que actuam no âmbito de pessoas colectivas de direito público
estão submetidos a uma responsabilização por crimes cometidos no exercício de
funções públicas (com efeito externo, ou seja, perante terceiros).
2.3. Quem exerce funções (ou nelas participe) em entidades privadas
não está submetido ao regime jurídico (incluindo, para efeitos penais) que
regula as pessoas colectivas de direito público.
2.4. Assim, não se pode considerar funcionário, para efeitos da lei
penal, quem exerça funções em pessoas colectivas de utilidade pública.
2.5. A Federação Portuguesa de Futebol não pode, em caso algum, ser
considerada pessoa colectiva de direito público (melhor dizendo, não pode sequer
ser considerada «entidade pública», na expressão constitucional – citado artigo
269.º, n.º 1 – de «Estado e demais entidades públicas»).
2.6. Nenhum «titular de órgão social» da FPF pode cometer um crime
que suponha, como elemento típico, um «cargo», elemento este que, para efeitos
penais, terá de corresponder a um «cargo público».
2.7. Os crimes que no Código Penal pressupõem os deveres do cargo
(público) – de que são exemplo os diversos tipos do crime de corrupção – são
inaplicáveis a agentes que desempenhem funções ou participem em actividades
compreendidas nos fins de uma pessoa colectiva de direito privado (mesmo que de
utilidade pública) – como é o caso da FPF, pelo que nenhum dos titulares dos
seus órgãos sociais pode cometer tais crimes.
2.8. O Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF não é titular de
qualquer poder de natureza pública, participando numa área de actividade desta
pessoa colectiva – o sector da arbitragem – que se integra manifestamente no
âmbito estritamente desportivo e normativo privado,
como, aliás, acentua o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
27 de Outubro de 2004, ao decidir que «a violação das regras sobre nomeação de
árbitros se enquadra no âmbito das questões estritamente desportivas».
2.9. O Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF não exerce
qualquer função pública e, por isso, nunca poderia, mesmo numa interpretação
extensiva da lei penal, ser considerado funcionário.
2.10. Todos aqueles que tomam parte no sector da arbitragem não
podem, mesmo numa interpretação extensiva do conceito de funcionário, cometer
crimes no exercício de funções públicas em consequência de violação das regras
(seja qual for a razão de ser dessa violação) referentes à designação de
árbitros.
2.11. A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos
372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal que inclua nas
respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF enferma de
inconstitucionalidade material, por ofensa do disposto, entre outros, nos
artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º, n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
2.12. Assim sendo, nenhum dos actos imputados ao arguido poderá
jamais ser enquadrado na previsão normativa do artigo 374.º, n.º 1, do Código
Penal.
3. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE AUTORIZAÇÃO N.º 49/91, DE 3 DE AGOSTO, E DO
DECRETO‑LEI N.º 390/91, DE 10 DE OUTUBRO.
A Lei da Autorização n.º 49/91, de 3 de Agosto, é inconstitucional
porque, não definindo com rigor a respectiva extensão e sentido, ofende o
disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP,
sendo, por isso e por violação dos mesmos preceitos da Lei Fundamental,
inconstitucional o Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro.
4. Ao decidir de modo diverso, considerando válidas as escutas
telefónicas executadas no decurso do inquérito, considerando aplicável aos
factos sub judice o conceito extensivo de funcionário previsto na alínea c) do
n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal e aceitando a conformidade constitucional
da Lei de Autorização n.º 49/91 e do correlativo Decreto‑Lei n.º 390/91, o douto
despacho em mérito ofendeu os preceitos legais que ficaram indicadas nos
antecedentes números destas conclusões.”
1.5. Por acórdão de 14 de Novembro de 2007, o Tribunal
da Relação do Porto. (i) negou provimento ao recurso na parte em que se refere à
arguida nulidade das escutas telefónicas e, consequentemente, nessa parte
confirmou a decisão recorrida; e (ii) não conheceu das demais questões
suscitadas – inaplicabilidade do conceito de funcionário previsto no artigo
386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal ao Presidente do Conselho de
Arbitragem da FPF (com a consequente impossibilidade de enquadramento dos
factos imputados ao recorrente na previsão do artigo 374.º, n.º 1, do Código
Penal e inerente insubsistência da pronúncia pelos mencionados 26 crimes de
corrupção activa) e inconstitucionalidade da Lei n.º 49/91 e do Decreto‑Lei n.º
390/91 (com a consequente impossibilidade de ser pronunciado pelos mencionados
21 crimes de corrupção desportiva activa) – por, nessa parte, o recurso ser
inadmissível. Na verdade, relacionando‑se estas questões com o mérito do
despacho de pronúncia (e não com quaisquer nulidades ou questões prévias ou
incidentais), aplica‑se o disposto no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, que declara
inadmissível o recurso do despacho que pronuncia o arguido pelos factos
constantes da acusação do Ministério Público (como no caso ocorreu).
1.6. Notificado deste acórdão, endereçou o arguido ao
Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo
por objecto quer o aludido acórdão quer a decisão instrutória de 6 de Março de
2007, para apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas:
“A.
– conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º,
n.º 1, parte final, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar
através de factos os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação
se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os
factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e
as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal
abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova
e, bem assim, de fixar um prazo para a respectiva duração, por violação dos
artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º, n.º
1, e 189.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
interpretado no sentido de que constitui simples irregularidade, como tal
sanável, a falta de concretização através de factos dos elementos da tipicidade
do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às
escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios
da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera
natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção
por este meio de recolha de prova, por ofensa do disposto, entre outros, nos
artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas
sem prévia audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha procedido à
leitura dos respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir a ocorrência
de lapsos de tempo superiores a quinze dias entre a apresentação ao JIC do
suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a
Polícia Judiciária considera relevantes e a respectiva audição e entre a data em
que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de
gravação e dos suportes magnéticos das gravações, por ofensa do disposto nos
artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007,
de 9 de Agosto, interpretado no sentido de admitir a ocorrência de grandes
lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de
intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com
interesse e a sua apresentação ao Juiz, por ofensa das disposições conjugadas
dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP;
– artigo 187.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação de escutas
quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das
sessões anteriores tinha interesse para a investigação, por ofensa do disposto
nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– conjunto normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º
1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, alínea a). do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, interpretado no sentido de considerar tais preceitos
inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas, por ofensa
dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na versão anterior
à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a
destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas e dos
respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado tenha tido acesso a
tais elementos nem tenha consentido na sua destruição, por ofensa dos artigos
18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.ºs 1 e 4, da CRP;
– artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, na interpretação que permite a autorização e manutenção das escutas
telefónicas por mais de treze meses e um período de tempo superior ao da duração
do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de quaisquer
outros meios relevantes de prova, por violação do disposto nos artigos 18.º,
n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
– artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se
revelaram de interesse nulo ou residual, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e
32.º, n.º 8, da CRP;
B.
– conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e
386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na versão anterior à Lei n.º 59/2007,
de 4 de Setembro, na interpretação que inclui nas respectivas previsões o
Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, por
ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º,
n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1, da CRP;
– Lei de Autorização n.º 49/91, de 3 de Agosto, e Decreto‑Lei n.º
390/91, de 10 de Outubro, por ofensa do n.º 2, por referência à alínea c) do n.º
1, do artigo 165.º CRP.”
Como pretendia impugnar duas decisões proferidas por
tribunais diferentes (o Tribunal da Relação do Porto, quanto às questões
enunciadas na parte A. do requerimento de interposição de recurso, e Tribunal de
Instrução Criminal de Gondomar, quanto às questões enunciadas na parte B. do
mesmo requerimento), o arguido, à cautela, apresentou na mesma data requerimento
de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional endereçado ao Juiz de
Instrução Criminal de Gondomar, restrito às duas questões enunciadas na parte B.
Porém, o Desembargador Relator do Tribunal da Relação do
Porto proferiu despacho em que admitiu os dois recursos.
1.7. No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho
em que determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes se
deveriam pronunciar, querendo, sobre a eventualidade de não se conhecer do
recurso na parte relativa às 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª, 8.ª e 9.ª questões
de inconstitucionalidades referidas na parte A do dito requerimento, por duas
ordens de razões: (i) por não se revestirem das características de generalidade
e abstracção próprias das questões de inconstitucionalidade normativa, antes
serem susceptíveis de ser vistas como representando a imputação directa da
violação da Constituição a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, em
termos inseparáveis das especialidades irrepetíveis do presente caso concreto; e
(ii) por não existir inteira coincidência entre os critérios normativos que o
recorrente reputa inconstitucionais e os critérios normativos efectivamente
aplicados, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.
1.8. O recorrente apresentou alegações, que terminam com
a formulação das seguintes conclusões:
“1. O conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e
187.º, n.º 1, parte final, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, é inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º
8, da CRP, quando interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de
concretizar:
– através de factos, os elementos da tipicidade do crime concreto
cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas
autorizada,
– os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal
crime,
– os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da
simples moldura penal abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio
de recolha de prova e, bem assim,
– de fixar um prazo para a respectiva duração.
2. O conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º,
n.º 1, e 189.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
interpretado no sentido de que constitui simples irregularidade, como tal
sanável, a falta de concretização através de factos dos elementos da tipicidade
do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às
escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios
da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera
natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção
por este meio de recolha de prova, é inconstitucional por ofensa do disposto,
entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
3. O artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação das
escutas sem prévia audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha
procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir
a ocorrência de lapsos de tempo superiores a quinze dias entre a apresentação ao
JIC do suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos
que a Polícia Judiciária considera relevantes, e a respectiva audição e entre a
data em que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos
de gravação e dos suportes magnéticos das gravações, é inconstitucional por
ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
4. O artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de admitir a ocorrência de
grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de
intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com
interesse e a sua apresentação do Juiz, é inconstitucional por ofensa das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da CRP.
5. O artigo 187.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretado no sentido de permitir a
prorrogação de escutas quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma
ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação, é
inconstitucional por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8,
da CRP.
6. O conjunto normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º,
n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do CPP, na versão anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de considerar tais preceitos
inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas, é
inconstitucional por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
7. A norma contida na segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP,
na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretada no sentido
de permitir a destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas
e dos respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado tenha tido
acesso a tais elementos nem tenha consentido na sua destruição, é
inconstitucional por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.ºs
1 e 4, da CRP.
8. O artigo 82.º da LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as
alterações nela introduzidas por diversos diplomas) é inconstitucional, por
violação do n.º 3 do artigo 281.º da CRP, se interpretado no sentido de permitir
que o Tribunal Constitucional profira, em qualquer processo, decisão contrária
ao juízo de inconstitucionalidade duma norma que tenha sido proferido em três
casos concretos e, por conseguinte, no sentido de que, neste caso concreto, pode
pronunciar‑se pela constitucionalidade da segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º
da CPP na interpretação sub judice.
9. O artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, na interpretação que permite a autorização e manutenção das
escutas telefónicas por mais de treze meses e um período de tempo superior ao da
duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de
quaisquer outros meios relevantes de prova, é inconstitucional por violação do
disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
10. O artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se
revelaram de interesse nulo ou residual, é inconstitucional por ofensa dos
artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
11. O conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e
386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, interpretado no sentido de incluir nas
respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação
Portuguesa de Futebol, é inconstitucional, por ofensa do disposto, entre outros,
nos artigos 18.º n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º, n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1,
da CRP.
12. A Lei da Autorização n.º 49/91, de 3 de Agosto, é
inconstitucional porque, não definindo com rigor a respectiva extensão e
sentido, ofende o disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do
artigo 165.º CRP, sendo, por isso e por violação dos mesmos preceitos da Lei
Fundamental, também inconstitucional o Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de
Outubro.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou contra‑alegações, no termo das quais formulou as
seguintes conclusões:
“1. Por não estarem reunidos todos os requisitos e pressupostos, não
deverá conhecer‑se do objecto do recurso relativamente às 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª,
5.ª, 6.ª, 8.ª, 9.ª e 10.ª questões de constitucionalidade referidas nas
conclusões do recorrente.
2. Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 188.º do Código
de Processo Penal (na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto),
interpretada no sentido de permitir a destruição de escutas telefónicas e dos
respectivos suportes magnéticos, quando considerados não relevantes, sem que
antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar‑se sobre o eventual
interesse para a sua defesa.
3. Não é inconstitucional o conjunto normativo composto pelas normas
dos artigos 374.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal,
interpretado no sentido de incluir na respectiva previsão o Presidente do
Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, sendo esta uma pessoa
colectiva de direito privado, com o Estatuto de Utilidade Pública Desportiva.
4. Quer a Lei de Autorização n.º 49/91, de 3 de Agosto, quer o
Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro, emitido ao seu abrigo, não enfermam
de quaisquer inconstitucionalidades.
5. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Por despacho do relator foi determinada a notificação do
recorrente para se pronunciar, querendo, sobre as novas questões prévias
suscitadas pelo Ministério Público, tendo sido apresentada resposta, que será
considerada à medida que forem apreciadas essas questões.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto
2.1.1. Dada a sua conexão, tratar‑se‑ão conjuntamente as
primeira e segunda questões suscitadas na alegação do recorrente, ambas
relativas às exigências de fundamentação da decisão judicial de autorização de
intercepções telefónicas, sendo que:
– a primeira tem por objecto a inconstitucionalidade,
por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, do conjunto
normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do
CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretado
como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar: (i) através de factos, os
elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar
mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas; (ii) os factos concretos
que condensam os indícios da prática de tal crime; (iii) os factos e as razões,
diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta
aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova; e, bem
assim, (iv) de fixar um prazo para a respectiva duração; e
– a segunda tem por objecto a inconstitucionalidade, por
violação das mesmas normas constitucionais, do conjunto normativo integrado
pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º, n.º 1, e 189.º do CPP, na versão anterior à
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de que constitui
simples irregularidade, como tal sanável, a falta de concretização através de
factos dos elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se
pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os
factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime e, bem
assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da
simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha
de prova.
No despacho do relator que determinou a apresentou de
alegações, advertiu‑se o recorrente da possibilidade de não conhecimento destas
questões, por duas ordens de razões: (i) por não se revestirem das
características de generalidade e abstracção próprias das questões de
inconstitucionalidade normativa, antes serem susceptíveis de ser vistas como
representando a imputação directa da violação da Constituição a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas, em termos inseparáveis das especialidades
irrepetíveis do presente caso concreto; e (ii) por não existir inteira
coincidência entre os critérios normativos que o recorrente reputa
inconstitucionais e os critérios normativos efectivamente aplicados, como ratio
decidendi, pelo acórdão recorrido.
O não conhecimento desta parte do recurso é sustentado
nas contra‑alegações do Ministério Público, não só por não ter sido suscitada
uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, mas também porque,
mesmo que o tivesse sido, a norma de que foi interposto recurso não foi aplicada
na decisão recorrida e da que foi efectivamente aplicada não houve recurso. Na
verdade, sustentando, no fundo, o recorrente, nesta parte do recurso, que o
despacho que autorizou as escutas não está devidamente fundamentado e que as
normas do artigo 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, interpretadas
como não exigindo esse grau de fundamentação que ele considera essencial, são
inconstitucionais, mas tendo o acórdão recorrido, após análise pormenorizada da
fundamentação do despacho que autorizou as escutas, concluído que o mesmo estava
suficientemente fundamentado, “apurar pormenorizadamente qual o exacto grau de
fundamentação é estar a apreciar a própria decisão e já não qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa”. Por outro lado, o acórdão recorrido, após
concluir que a decisão se encontrava fundamentada, afirma que, mesmo que assim
não fosse, se estaria apenas perante uma irregularidade prevista no artigo
123.º, n.º 1, do CPP, que se encontrava sanada porque não arguida atempadamente
pelo recorrente, pelo que “as normas referentes à exigência de fundamentação não
constituem a ratio decidendi da decisão, daqui resultando que independentemente
do juízo que viesse a ser formulado sobre a constitucionalidade de tais normas,
o acórdão, nesta parte, sempre se manteria (cf. nesse sentido Acórdão n.º
102/2001)”. Assim sendo, dado que “as normas efectivamente aplicadas na decisão
recorrida e que constituem a sua ratio decidendi são as referentes à
qualificação do vício de falta ou de insuficiente fundamentação, isto é, os
artigos 118.º a 123.º do CPP” e que, “apesar de o acórdão recorrido se referir
expressamente a tais normas e até ter apreciado o regime nelas previsto, sob o
ponto de vista da sua constitucionalidade, o recorrente não inclui tais normas
(maxime o artigo 123.º) no objecto do recurso, não o fazendo nem no requerimento
de interposição (o momento próprio), nem nas alegações apresentadas neste
Tribunal (cf. Acórdão n.º 166/2003)”, entende o Ministério Público que não deve
conhecer-se desta parte do recurso.
Respondendo a estas objecções, diz o recorrente:
“Ao contrário do que está pressuposto na peça em análise, o
recorrente não suscitou no seu recurso a questão da medida ou do quantum de
fundamentação das decisões recorridas.
Colocou a questão sob um ângulo muito diverso desse, submetendo à
análise do Tribunal Constitucional o critério (ou o sentido
interpretativo/normativo) aplicado nessas decisões, critério esse que consiste,
em suma, na assumida possibilidade de fundamentação por remissão implícita.
Não se trata – nem foi essa a perspectiva do recorrente – de conferir se a
fundamentação das concretas decisões proferidas é mais ou menos esclarecedora,
mais ou menos rigorosa, mais ou menos extensa.
Trata‑se, repete‑se, duma questão diferente, de saber se é ou não
admissível a fundamentação por remissão e, mais do que isso, por remissão
implícita.
De resto, ainda que a questão tivesse sido colocada em termos de
amplitude ou grau de fundamentação, nem por isso deixava, na circunstância
concreta deste caso, de ter uma dimensão normativa e de comportar uma vertente
de abstracção e generalidade susceptíveis de permitir a sua análise, na exacta
medida em que se poderia formular, quanto a ela, a dúvida sobre se o grau de
fundamentação pode ser tão exíguo que prescinda, no caso das escutas
telefónicas, da invocação dos factos concretos que justificam esse meio de
recolha de prova.
Julga‑se que mesmo essa limitativa incidência – a que não pode
reduzir‑se este recurso – ainda comportaria uma dimensão normativa capaz de
justificar a intervenção do Tribunal Constitucional.
Daí que não pareça adequada a afirmação de que o recorrente pretende
que se «apure pormenorizadamente qual o exacto grau de fundamentação».
Também não pode o recorrente subscrever a conclusão de que «as
normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida e que constituem a sua
ratio decidendi são as referentes à qualificação do vício de falta ou de
insuficiente fundamentação, isto é, os artigos 118.º a 123.º do Código de
Processo Penal».
O artigo 123.º do CPP é uma norma em branco e residual.
Não contém a enumeração taxativa das irregularidades.
Qualificar um determinado vício como irregularidade é, por isso, uma
questão que antecede a aplicação do regime do artigo 123.º, em especial se,
como no caso vertente, a natureza do vício contende com uma questão de
constitucionalidade.
Dito de outro modo: a decisão recorrida comporta dois momentos.
Num primeiro momento, considera que o critério de fundamentação
utilizado (por remissão implícita) não ofende a Constituição; num segundo
momento, considera que, a ocorrer um vício da decisão, se trataria duma simples
irregularidade.
O recorrente considera que a questão não pode ser retalhada nesses
dois momentos: do que se trata é de saber se a interpretação adoptada das normas
relativa à fundamentação das decisões sobre escutas é ou não inconstitucional.
Se o for, como sugere, não se coloca sequer a questão da aplicação
do artigo 123.º do CPP: um vício de ofensa à Constituição não poderá jamais ser
qualificado como irregularidade.
Daí que o recorrente não tenha suscitado directamente a questão da
constitucionalidade do artigo 123.º do CPP.
Insiste‑se em que o artigo 123.º é uma norma em branco, residual.
É através da interpretação de cada uma das normas concretas
relativas aos actos processuais que se concluirá se a sua ofensa é ou não mera
irregularidade.
Se se concluir que uma determinada interpretação duma norma concreta
ofende a Constituição, está, por definição, excluída a aplicação do artigo 123.º
do CPP.
Daí que o Tribunal Constitucional possa e deva declarar se a
interpretação das normas em causa é ou não conforme à CRP.
Se declarar essa inconstitucionalidade, o Tribunal recorrido terá de
rever a decisão proferida e retirar daí as consequências inevitáveis, uma vez
que o vício da inconstitucionalidade não pode jamais enquadrar‑se na categoria
residual das irregularidades.”
Relativamente a estas questões, o acórdão recorrido,
após descrição da evolução legislativa pertinente e das posições doutrinárias
relevantes, consignou o seguinte:
“Interpretando o teor deste despacho decisório em crise (acima
transcrito), verifica‑se que o mesmo, na sua fundamentação, ainda que exígua,
remete implicitamente para o teor da promoção do Ministério Público (referindo,
depois, até expressamente, «porque se mostra indiciada a prática pelo mesmo de
um crime de corrupção activa previsto e punido pelo artigo 374.º, n.º 1, do
Código Penal»), acabando por concluir estarem preenchidos os pressupostos
previstos «nos artigos 187.º, n.º 1, alínea a), e 188.º do Código de Processo
Penal», razão pela qual autorizou, além do mais, as promovidas (nos pontos 1 e
2) intercepções e gravações das conversações efectuadas de e para o telemóvel
com o n.º (…) e de e para o telefone da rede fixa com o n.º (…), ambos
utilizados pelo recorrente.
Esta interpretação é lógica e clara uma vez que o inquérito (cuja
direcção cabe exclusivamente ao Ministério Público – artigo 263.º do CPP)
apenas foi concluso à Sr.ª Juiz de Instrução Criminal para ela se pronunciar
sobre aquela promoção (o juiz de instrução só exerce funções jurisdicionais em
inquérito – artigo 17.º do CPP, na versão anterior à actual).
Obviamente que para se pronunciar (e poder proferir a decisão
pessoal em questão), a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal teve de ponderar o teor
da promoção do Ministério Público, titular do inquérito (promoção essa que
provocou a intervenção jurisdicional e delimitou o seu âmbito da intervenção –
v. g. artigo 269.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na versão anterior à actual), os
elementos existentes nos autos, nomeadamente, os indicados expressamente naquela
promoção de fls. 95.
E, não estando em causa (nem o próprio recorrente coloca essa
questão) que aquela decisão de autorização de intercepções e gravações das
conversações efectuadas de e para aqueles telemóvel e telefone da rede fixa
(utilizados pelo então suspeito A.), se tratou de uma decisão pessoal do JIC,
como «garante das liberdades», embora se possa discordar dessa forma de
fundamentação, a verdade é que, ainda assim, a mesma não ofende o «dever
constitucional de fundamentação» (artigo 205.º, n.º 1, da CRP).”
E depois de transcrever passagens pertinentes da decisão
instrutória, prossegue o acórdão:
“Atenta a natureza do crime em análise (independentemente da
qualificação jurídico‑penal então efectuada, sempre crime que, em abstracto,
era punido com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos), a diligência
de autorização de escutas telefónicas, nos termos em que foi promovida,
tornava‑se decisiva e imprescindível para a investigação, havendo razões
objectivas e sérias para as autorizar (o interesse da eficácia da investigação
do crime de corrupção activa previsto no artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal,
que então se mostrava indiciado, era bem superior ao direito à privacidade e à
palavra falada do então suspeito A., face aos factos denunciados, que eram
sustentados pelo teor das diligências efectuadas, v. g. do depoimento da
testemunha D., não obstante este último ter sido prestado em 30 de Agosto de
2001), por revelarem grande interesse para a descoberta da verdade e para a
recolha de prova.
E, claro, a promoção do Ministério Público de fls. 95 (acima
transcrita) sustentava‑se nas referidas diligências efectuadas pela própria
Polícia Judiciária, documentadas nos autos de inquérito já iniciado.
A decisão judicial em crise está alicerçada na promoção do
Ministério Público e nos elementos constantes dos autos (não sendo ao tempo
exigível que devesse repetir o que constava daquela promoção e dos elementos dos
autos), o que permitiu à Sr.ª Juiz de Instrução Criminal deferir ao promovido,
por considerar verificados os requisitos que mencionou, previstos no artigo
187.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Efectivamente, o crime que o Ministério Público se propôs investigar
com base nas pretendidas intercepções telefónicas era o de corrupção activa,
previsto no artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal (um dos que cabiam no artigo
187.º, n.º 1, alínea a), do CPP) que então se indiciava, sendo o recurso à
intercepção e gravação de conversas telefónicas o meio imprescindível ao
desenvolvimento da investigação, atento o tipo e natureza de crime em causa e
carácter dos actos sujeitos a investigação (v. g. modus operandi).
E, ainda que se viessem a indiciar, ao longo das investigações
(sendo conhecimentos decorrentes da própria investigação, por estarem com ela
relacionados), crimes de corrupção desportiva activa (…), também da
responsabilidade do recorrente (independentemente da questão suscitada da
eventual inconstitucionalidade do Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro),
como, aliás, veio a ser pronunciado, os conhecimentos obtidos através das
escutas telefónicas, uma vez que respeitavam a crimes (previstos no artigo 4.º,
n.º 2, do citado Decreto‑Lei n.º 390/91, tal como acabou por ser pronunciado)
incluídos no catálogo do artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP (na versão
anterior à actual), eram válidos e lícitos, sendo admissível a valoração das
provas dessa forma obtidas.
(…)
Assim, podemos concluir que no despacho judicial de fls. 98 e 99 foi
ponderada a necessidade das intercepções telefónicas, ainda que, em parte, por
remissão implícita para o teor da promoção do Ministério Público e elementos
probatórios que a sustentavam.
Estavam, pois, reunidos os requisitos e condições legalmente
exigíveis para serem autorizadas judicialmente as escutas telefónicas em
questão, que requeriam cuidados especiais, sob pena de se inviabilizar a
investigação.
Portanto, ainda que de forma muito resumida e pouco modelar, a
decisão judicial em crise mostra‑se minimamente fundamentada, não havendo
qualquer violação do disposto nos invocados artigos 97.º, n.º 4, 187.º e 189.º
do CPP, e 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 205.º, n.º 1, da CRP.
Ainda que assim não fosse (hipótese que também se coloca, por se
poder, ainda assim, sustentar que não haviam sido revelados todos os motivos que
levaram o juiz a proferir esse despacho decisório que, no entanto, não se pode
confundir com o grau de exigência imposto quando está em causa a fundamentação
de uma sentença), como acima já se referiu, estaríamos apenas perante uma
irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, que, todavia, se
mostrava sanada, por não ter sido arguida em tempo pelo recorrente (interessado
na invalidade desse despacho judicial que autorizava escutas telefónicas a
telefones por si utilizados).
Alega também o recorrente (mas sem conceder) que, mesmo numa tese
minimalista, que considerasse que estávamos em presença de uma irregularidade,
o certo é que a mesma havia sido invocada no prazo legal, pelo arguido B. e,
como tal, também lhe aproveitava.
Porém (independentemente da questão da irregularidade invocada por
um arguido poder ou não aproveitar aos demais), podemos aqui acompanhar também o
Ministério Público, na 1.ª instância, quando, na respectiva resposta ao recurso,
refere:
«Com efeito, o arguido B. em lado nenhum invocou a nulidade ou sequer a
irregularidade do despacho inicial. (…)»
E isso mesmo resulta da leitura do dito requerimento constante de
fls. 1559 a 1586 da certidão que constitui este processo de recurso.
Conclusão: não tendo sido arguida, em tempo, a referida
irregularidade do despacho decisório de fls. 98 e 99 (a entender‑se que
enfermava de deficiente fundamentação), a mesma encontra‑se sanada, como bem se
concluiu na decisão instrutória.
E, embora o recorrente, neste aspecto da falta de fundamentação do
despacho judicial que autorizou escutas a telefones por si utilizados, apenas
se reporte em concreto ao despacho judicial de fls. 98 e 99, podemos acrescentar
que o mesmo raciocínio que acima fizemos vale, com as devidas adaptações, quanto
aos despachos judiciais que autorizaram as escutas telefónicas em relação aos
telemóveis com os n.ºs (…) e n.º (…), utilizados também pelo recorrente.
Quanto à questão suscitada pelo recorrente, da falta de fixação de
prazo para duração dessas escutas telefónicas autorizadas, é certo que,
nomeadamente na decisão de fls. 98 e 99, nada se diz a esse respeito e a lei
(artigo 187.º do CPP então vigente), na altura, também não impunha a indicação
desse prazo, embora fosse prática corrente (fazer constar esse prazo na decisão
judicial respectiva), até como forma de melhor controlar as escutas telefónicas
que fossem efectuadas pelos OPC, autorizadas judicialmente.
Mas também é certo que, estando a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal
(JIC) limitada pela promoção que provocara a sua intervenção, uma vez que não
fez constar do seu despacho qualquer prazo, também não podia ir além do prazo
que lhe fora pedido nessa promoção, que era o mínimo de 30 (trinta) dias.
De qualquer modo, nos ofícios, datados de 26 de Março de 2003, que a
Sr.ª JIC endereçou ao Director da E., SA – e que também foram recebidos pela
Coordenadora de Investigação Criminal da Directoria do Porto da Polícia
Judiciária, cujas cópias endereçou ao Chefe da Área do Departamento de
Telecomunicações da Polícia Judiciária, em Lisboa – (fls. 5718 e 5721 da
certidão que constituiu este processo), por si assinados, para colmatar aquele
«lapso» (a entender‑se como «lapso» a falta de indicação de prazo da autorização
da intercepção e gravação das comunicações efectuadas de e para os
identificados telefones, da rede fixa e móvel, concedida no despacho decisório
de fls. 98 e 99, não obstante a lei a não impor), fez constar que era autorizada
«a intercepção e gravação das conversações …, pelo período de 30 dias».
Ou seja, pelo facto de não ter sido fixado no despacho de fls. 98 e
99 o prazo de duração da autorização judicial concedida (que então não era
legalmente exigido, como acima se referiu) não ocorre qualquer nulidade ou
inconstitucionalidade (v. g. violação dos invocados artigos 187.º, n.º 1, do
CPP, e 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP), tanto mais que a mesma foi colmatada
através dos referidos ofícios acima mencionados, assinados pela Sr.ª JIC, que
mencionaram o dito prazo de 30 dias (era, portanto, esse o prazo que tinha de
ser atendido).”
Como é patente, o acórdão recorrido não adoptou como
critério normativo o de que a fundamentação do despacho que autoriza
intercepções telefónicas se basta com a invocação da mera natureza do crime e
da moldura abstracta aplicável; o que aí se entendeu foi que a exigível
substanciação da fundamentação, quer na perspectiva da suficiência dos indícios
da prática dos crimes em causa, quer na perspectiva da enunciação das razões
justificativas do uso deste meio de recolha de prova, havia sido satisfeita
pelo despacho em causa, designadamente por remissão (implícita) para a promoção
do Ministério Público que acolheu. E, por outro lado, o mesmo acórdão também
entendeu que, embora de modo indirecto (ou por aceitação tácita do prazo
proposto na promoção ou pela explicitação do prazo nas comunicações que, na
sequência desse despacho, a própria juíza de instrução endereçou às operadoras
de telecomunicações, com conhecimento ao órgão de polícia criminal encarregado
da efectivação das intercepções), foi fixado o prazo inicial de 30 dias para
tais intercepções, embora considerasse que, ao tempo, a lei não exigia tal
fixação prévia. Não tendo o acórdão recorrido adoptado o critério normativo
enunciado pelo recorrente a propósito da primeira questão de
inconstitucionalidade, o recurso, nesta parte, é inadmissível, sendo irrelevante
que só agora, na última resposta apresentada pelo recorrente, ele ensaie a
alteração da definição desse critério para passar a questionar a
constitucionalidade da admissibilidade de remissões implícitas da fundamentação
do despacho autorizativo das escutas.
Assente que não há que conhecer do recurso quanto à
primeira questão, fica prejudicada a apreciação da segunda questão, atinente à
qualificação como mera irregularidade da falta ou deficiência de fundamentação
do despacho que autorizou as escutas. É que o acórdão recorrido só adiantou essa
qualificação para a hipótese – que ele deu por não verificada – de o despacho
em causa carecer de fundamentação suficiente. Afastada definitivamente esta
hipótese (uma vez que o não conhecimento da primeira questão implica que se
considere definitivo o juízo de suficiência da fundamentação do despacho,
constante da correspondente parte do acórdão recorrido), carece de sentido
apurar se, se se tivesse perfilhado entendimento oposto, seria
constitucionalmente admissível qualificar essa (afinal inexistente) deficiência
do despacho como mera irregularidade, e não como nulidade.
Não se conhece, assim, das primeira e segunda questões
de inconstitucionalidade suscitadas na alegação do recorrente.
2.1.2. As terceira, quarta, quinta, nona e décima
questões, que se agrupam por respeitarem todas aos requisitos do acompanhamento
judicial da execução das escutas, são reportadas, as duas primeiras, à norma do
artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei n.º 48/2007, quer
“interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem prévia
audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha procedido à leitura dos
respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir a ocorrência de lapsos
de tempo superiores a quinze dias entre a apresentação ao JIC do suporte
magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia
Judiciária considera relevantes, e a respectiva audição e entre a data em que é
feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e
dos suportes magnéticos das gravações”, quer “interpretado no sentido de admitir
a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a
elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos
considerados com interesse e a sua apresentação do Juiz”; e as três últimas ao
artigo 187.º, n.º 1, do mesmo diploma, na mesma versão, quer “quando
interpretado no sentido de permitir a prorrogação de escutas quando se reconhece
e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha
interesse para a investigação”, quer “na interpretação que permite a
autorização e manutenção das escutas telefónicas por mais de treze meses e um
período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo
sem a prática ou recolha de quaisquer outros meios relevantes de prova”, quer
“na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se revelaram de
interesse nulo ou residual”.
Nenhuma destas questões pode ser conhecida, pelas duas
razões avançadas no despacho inicial do relator. Por um lado, e pese embora o
esforço do recorrente de as revestir de fórmulas aparentemente gerais e
abstractas, o certo é que, de facto, o que se questiona é o concreto
comportamento dos intervenientes processuais e as decisões judiciais que os
admitiram, sendo as questões colocadas de modo indissociavelmente ligado às
especificidades, dificilmente repetíveis, do caso concreto. Por outro lado, o
acórdão recorrido não acolheu, em geral, nem os factos nem os critérios
avançados pelo recorrente, como resulta das seguintes transcrições:
“Mas, fixando ou não prazo de duração da autorização judicial
concedida, o juiz que autorizou as escutas pode sempre, em qualquer altura,
contactar o OPC que está encarregado de as efectuar e exigir que lhe sejam
remetidos os respectivos suportes técnicos ou deslocar-se às instalações do OPC
e fazer em directo o respectivo controlo do conteúdo das conversações que vão
sendo gravadas (através do computador terminal que está ligado em rede ao
sistema central, com sede em Lisboa).
A questão fulcral, nesse aspecto, é que as escutas telefónicas sejam
controladas (de forma efectiva, contínua e próximo‑temporal) pelo juiz,
enquanto forem autorizadas (isto é, enquanto as mesmas continuarem e se
prolongarem com autorização judicial, por subsistirem os requisitos e
pressupostos que justificavam a sua admissibilidade, naquele juízo de
ponderação vinculada que a juiz de instrução foi efectuando em cada momento que
autorizou a prorrogação das ditas escutas).
Como é evidente, uma vez que não partilhamos o ponto de vista do
recorrente (no sentido de existir nulidade do «despacho matricial de fls. 98»,
que afectaria todos os demais despachos subsequentes, por força do disposto no
artigo 122.º, n.º 1, do CPP), não podemos concluir, como o mesmo faz, que
«nenhuma escuta foi autorizada a partir do primeiro despacho» e que o vício do
primeiro despacho contamina todos os restantes, por se basearem «nos resultados
obtidos nas escutas anteriormente efectuadas».
É que, pelos motivos já acima expostos, entendemos que não é caso de
aplicar o disposto no invocado artigo 122.º, n.º 1, do CPP.
Agora, quanto à questão suscitada de não terem sido respeitadas «as
exigências legais e constitucionais da imediação, acompanhamento e controlo
pela autoridade judicial» daquelas escutas telefónicas, efectuadas em relação ao
recorrente, também podemos, desde já, adiantar, que não lhe assiste razão.”
E, após reproduzir a argumentação do recorrente e
explicitar quais as formalidades exigidas pelo artigo 188.º do CPP, na versão
aplicável ao caso dos autos, prossegue o acórdão:
“No que respeita a autos, temos, assim, dois tipos: um é o previsto
no referido artigo 188.º, n.º 1, do CPP (auto de intercepção e gravação) e o
outro o indicado no n.º 3 do mesmo preceito (o chamado auto de transcrição).
A disposição legal em questão não exige a realização de «auto de
início da intercepção de comunicações», nem tão‑pouco de «auto de audição do
Juiz» que atestasse que este ouvira as gravações enviadas pelo OPC e, portanto,
formalmente confirmasse o acompanhamento das escutas que autorizara.
No entanto, a PJ lavrou «autos de início da intercepção de
comunicações», os quais, no que respeita ao recorrente (…), constam de fls.
108, 109 e 134 (…).
(…)
Tratava‑se de uma prática seguida pela PJ, de todo o interesse, na medida em que
dessa forma se tornava mais fácil ao juiz que autorizara a escuta telefónica
controlar a mesma e ver que a sua autorização não era usada de forma abusiva ou
conforme interesses alheios à investigação (v. g. juízos de oportunidade por
parte do OPC).
Nesses autos (cada um deles relativo ao respectivo n.º de telefone
aí identificado), consta quer a identificação do inspector da PJ que iniciou as
respectivas intercepções das comunicações, bem como a referência à data (de
início) e local onde se procedia a tal intercepção de comunicações (obviamente
o local onde iriam ser feitas as gravações das respectivas conversações
telefónicas interceptadas, enquanto não fossem «canceladas»), a referência ao
despacho judicial que as autorizava, bem como a indicação de que o «conteúdo
das comunicações interceptadas» podia, a partir daquelas datas iniciais
indicadas, «ser a todo o tempo verificado directamente pela M.ma JIC, também
através de cassetes áudio».
Conjugados esses autos (de início de intercepção), mais
concretamente os dos telemóveis com os n.º (…) e n.º (…), com os autos de
gravação que se seguiram em relação a cada um daqueles telefones «sob escuta», é
evidente que não sobram dúvidas quanto ao cumprimento das formalidades dos autos
de intercepção e gravação, tendo em atenção, com as devidas adaptações, o
disposto no artigo 99.º, n.º 3, do CPP.
Mesmo nos autos de gravação respectivos, relativos a cada
intercepção telefónica quanto ao recorrente (onde, além do mais que neles se
menciona, é identificado o «alvo», o n.º de telefone correspondente, a pessoa
que procedeu àquela gravação, o local, a data de elaboração do auto e a menção
de terem sido reproduzidas em CD todas as conversações telefónicas gravadas nas
sessões que identificam por números) consta – consoante os casos – a referência
de as conversações não terem interesse para a investigação (nuns casos) ou
(noutros casos) a indicação daquelas sessões «consideradas como tendo eventual
interesse para a investigação em curso», referindo‑se os dias respectivos a que
respeitavam (ou seja, o OPC, consoante os casos, indicava as passagens das
gravações consideradas relevantes ou então, quando não tinham interesse, também
fazia essa menção – artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão então vigente).
E, também, quando, por despacho judicial, foi ordenada a cessação
daquelas escutas telefónicas ou terminou o período de prorrogação das ditas
intercepções telefónicas (apesar de a lei o não exigir expressamente), foram
lavrados os respectivos autos de cessação (…).
(…)
Ou seja, quanto a esses aspectos formais dos autos de intercepção e
gravações em questão, foram cumpridas as formalidades legais (sendo certo que o
recorrente, quando afirma o contrário, também só o faz em termos abstractos, o
que, só por si, é insuficiente para o efeito que pretende), razão pela qual não
ocorre qualquer violação do disposto no artigo 99.º, n.º 3, do CPP e, muito
menos (consequência que o recorrente pretende retirar de um abstracto
incumprimento do disposto naquele artigo 99.º, n.º 3), a nulidade prevista no
artigo 189.º do CPP.
De resto, mesmo considerando o momento (datas) em que esses autos de
intercepção e gravações foram apresentados ao juiz (por confronto com a data que
deles consta) ou mesmo considerando o momento de realização de cada uma daquelas
intercepções (vistas as datas dos despachos judiciais, quer de autorização
daquelas escutas telefónicas, quer das respectivas prorrogações), não se pode
concluir que tivessem de alguma forma afectado ou impossibilitado o contínuo
(próximo e temporal) e efectivo acompanhamento judicial daquelas operações ou
que, dessa forma, tivesse sido manipulada a autorização judicial concedida.
Tão‑pouco deles resulta qualquer restrição intolerável dos direitos
de privacidade e da palavra falada do recorrente.
Esse cumprimento de formalidades legais estende‑se, também, aos
respectivos autos de transcrição das conversações, feitos de acordo com o que
ia sendo decidido pela Sr.ª JIC, à medida que ia ouvindo as sessões gravadas nos
CDs que eram entregues no tribunal, com os respectivos autos de gravação.
Daí que se concorde com o Sr. JIC, que proferiu a decisão
instrutória, quando afirma: «Não é pois por aqui que se pode afirmar ter
perigado a exigência de acompanhamento judicial da operação, acompanhamento que
em rigor assume decisiva relevância perante o auto referido no n.º 1 do artigo
188.º do CPP, revestindo‑se o ‘auto de início de gravação’ de uma função
meramente instrumental, para controlo futuro do respeito dos prazos de duração
máxima das intercepções».
Quanto à invocada falta de «auto de audição» das gravações pela Sr.ª
JIC, também não tem razão, como acima já se referiu, uma vez que os mesmos não
são exigidos legalmente (nem o disposto nos invocados artigos 94.º, n.º 6, 95.º,
n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, do CPP o impõe ou assim determina e tão‑pouco se pode
considerar que entendimento contrário viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2,
e 32.º, n.º 8, da CRP), razão pela qual não existem no processo.
Para se ver se houve um «acompanhamento efectivo, contínuo e
próximo‑temporal» de escutas telefónicas autorizadas judicialmente não é
preciso lavrar «autos de audição» que atestem ter o juiz ouvido as conversações
interceptadas gravadas: basta atentar nos sucessivos despachos que a Sr.ª JIC
foi proferindo, ao longo das investigações, de onde resulta, de modo inequívoco,
que ia procedendo à audição dos CDs (relacionados com gravações de conversações
não só do recorrente, como das demais conversações, resultantes das escutas
telefónicas que autorizara a outros suspeitos e arguidos) que ia recebendo e,
só depois de concretizar essa tarefa, é que seleccionava, por si (de modo
autónomo e pessoal), aquelas sessões que depois ordenava (em despacho judicial)
a respectiva transcrição.
De resto, o conceito de «imediatamente» (inserido no artigo 188.º,
n.º 1, do CPP, na versão então vigente), assume, como diz Damião da Cunha, «uma
dupla finalidade: ‘a) a de garantir que a inviolabilidade do sigilo das
telecomunicações seja sempre de reserva de um juiz, cabendo‑lhe
auto‑responsavelmente, não só decidir da legitimação do recurso às escutas
telefónicas, como da “utilização” dos elementos recolhidos para efeitos de
investigação criminal; b) e a de garantir que, face aos elementos recolhidos,
este proceda a um autónomo juízo substancial quanto ao grande interesse para a
descoberta da verdade ou para a prova’».”
E depois de citar o que a esse respeito constava da
decisão instrutória e do dito na resposta do Ministério Público à motivação do
recurso, prossegue o acórdão:
“De facto, basta ler com atenção os diversos despachos proferidos
pela Sr.ª JIC (ver inclusive datas em que foram proferidos), na sequência das
promoções do Ministério Público, e, bem assim, o teor das transcrições que
foram efectuadas, por ordem daquela Magistrada, considerando o número de pessoas
alvo de intercepções telefónicas, para se poder concluir que foi adequado e
apenas o estritamente necessário o tempo que mediou entre a realização (em tempo
real) das intercepções e gravações das comunicações telefónicas respeitantes ao
recorrente, a elaboração dos respectivos autos de intercepção e gravação e a
sua entrega no tribunal (incluindo respectivos CDs), bem como entre aqueles
autos e as decisões judiciais que ordenaram as transcrições que constam do
processo.
Aliás, é patente que a Sr.ª JIC não se limitou a ouvir as sessões
das gravações das conversações telefónicas que o OPC apontava como sendo
aquelas com eventual interesse e relevo para a prova, o que também mostra que a
mesma não abdicou do seu papel de, efectivamente, acompanhar judicialmente,
passo a passo, a execução daquela operação e de emitir o seu juízo pessoal e
autónomo sobre a relevância dos elementos recolhidos, cuja transcrição ordenou
(juízo esse que, sempre podia ser contraditado pelo recorrente – pessoa
escutada – desde logo a partir do momento em que lhe fora facultado o exame das
transcrições).
Acresce que o facto de a Sr.ª JIC não ter fixado um prazo, um
período temporal máximo de tempo de gravação (fazendo constar do despacho que,
v. g., desde que as gravações realizadas atinjam x horas ou quando não atinjam
tal tempo de gravação, no período máximo de y dias deverão ser presentes, ou
desde logo, quando o interesse imediato para a diligência de prova assim se
justifique), para serem apresentados os respectivos elementos (autos de
gravação e CDs) pela Polícia Judiciária, apenas pode ser entendido (aliás, de
acordo, também, com o salientado pelo Ministério Público, na resposta ao
recurso) como «uma maior flexibilidade por parte dos investigadores na escolha
do momento para apresentar os elementos para transcrição à supervisão judicial,
dentro do período autorizado de intercepções, sem que, todavia, a autoridade
judiciária ficasse inibida de, a qualquer momento, tendo em vista a própria
natureza da matéria sob investigação e as necessidades decorrentes da mesma,
determinar aquela apresentação».
Não se pode, por isso, afirmar (nem sequer de modo conclusivo), como
o faz o recorrente (que, ao longo do texto da motivações vai fazendo
considerações genéricas, não especificando em concreto, salvo raras excepções,
quais os particulares autos e decisões judiciais que enfermam dos vícios que
aponta de modo abstracto, v. g., não indicando em que situações é que teria
ocorrido a falta de acompanhamento e controlo das escutas que lhe foram feitas),
que o OPC «retinha sistematicamente esses elementos na sua posse», em violação
do disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CPP então vigente (na tese do recorrente,
não os levava imediatamente após a sua realização e gravação no CD ao juiz).
Aliás, nem havia qualquer interesse da PJ em efectuar qualquer
retenção dos autos de gravação e dos respectivos CDs, uma vez que, desde que as
escutas se iniciaram, a qualquer momento, o juiz que as autorizara poderia
verificar a sua gravação e, portanto, o conteúdo das comunicações
interceptadas, em directo (deslocando‑se às instalações onde está instalado o
computador terminal) ou podia mesmo, em qualquer altura, solicitar cassetes
áudio ou CDs.
De qualquer forma, o facto de a Sr.ª JIC não ter fixado prazo para a
apresentação dos autos de gravação das conversações telefónicas não significa
descontrolo judicial sobre as escutas telefónicas que haviam sido autorizadas
(aliás, como decorre dos elementos constantes deste processo de recurso, os
autos de intercepção e gravação foram sendo apresentados à Sr.ª JIC, no máximo
e, apenas em casos pontuais, à volta de 30 dias, mas sempre dentro dos prazos de
autorização das escutas telefónicas, atentas as prorrogações que foram sendo
concedidas pelos respectivos despachos judiciais).
Também a Sr.ª JIC não fixou prazos para a elaboração dos autos de
transcrição e, todavia, apesar das dimensões do processo (e número de escutas
telefónicas que estavam a decorrer), os mesmos foram sendo realizados em tempo
razoável, sempre antes do termo do inquérito (não tendo a data em que as
transcrições foram feitas interferido no direito de defesa do recorrente ou
limitado o seu direito de as examinar e, tão‑pouco, restringido o «direito à
inviolabilidade de um meio de comunicação privada»).
Aliás, o próprio arguido que exercer o direito que lhe assiste,
concedido pelo artigo 188.º, n.º 5, do CPP, na versão então vigente, tem «a
possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente
seleccionadas pelo juiz, quer por entender que as mesmas assumem relevância
própria quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido
das passagens anteriormente seleccionadas».
O que também significa que não é vedado ao juiz de instrução, por
sua iniciativa ou a requerimento, vir, mais tarde, a ordenar a transcrição de
conversações telefónicas gravadas, que anteriormente havia considerado
irrelevantes.
Tudo isto mostra a irrelevância do tempo que levou a elaborar, quer
os autos de gravação das intercepções telefónicas, quer os autos de transcrição
que constam dos autos (estes últimos, na sequência das decisões da Sr.ª JIC,
durante a fase do inquérito, antes de ser proferida a acusação pública).
Não existe, assim, qualquer nulidade por inobservância do formalismo
estabelecido no artigo 188.º, n.ºs 1 a 3, do CPP, na versão então vigente e,
assim, também não ocorre qualquer inconstitucionalidade (dado que não houve
violação dos invocados artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da
CRP).
Acompanhamos, assim, a decisão instrutória quando, pelos motivos que
vai indicando concretamente (para os quais remetemos), acaba por concluir que,
neste processo, a Sr.ª JIC assegurou «um acompanhamento contínuo, próximo
temporal e material da fonte», tendo presente o princípio da proporcionalidade,
garantindo sempre que a restrição dos direitos fundamentais afectados com as
escutas telefónicas (concretamente quanto ao recorrente, que é o que aqui nos
ocupa), se limitassem ao estritamente necessário tendo em vista, também, a
«salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e
punição do seu agente».
Quanto à invocada nulidade por prorrogação de prazos de intercepções
telefónicas, sem que tivessem sido ouvidas as anteriores gravações, esqueceu o
recorrente que a Sr.ª JIC, não obstante ter algumas sessões anteriores por
ouvir, já tinha, entretanto, ouvido outras gravações, designadamente de
conversações telefónicas de outros suspeitos e arguidos (que também estavam a
ser escutados, com autorização judicial da mesma magistrada), o que lhe
permitia aperceber‑se das interligações (uma vez que falavam uns com os outros)
que existiam entre as várias pessoas escutadas e, desse modo, concluir que
«havia razões para crer» que as prorrogações das escutas que estavam em curso
(ou seja, a sua continuação), relativamente ao recorrente, se revelavam «de
grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
O raciocínio do recorrente (de haver despachos a renovar e prorrogar
a autorização de escutas sem audição prévia das anteriores) só fazia sentido se,
no caso, ele fosse a única pessoa que estivesse a ser escutada (o que não foi
claramente o caso dos autos).
Aliás, basta ler os volumes relativos às diversas transcrições das
conversações consideradas relevantes (conferindo as datas em que essas
conversas tiveram lugar, mormente antes dos despachos que autorizaram as ditas
prorrogações) para se perceber que essas prorrogações não foram arbitrárias ou
caprichosas.
E repare‑se que a Sr.ª JIC ia ouvindo os CDs com as gravações das
conversações interceptadas, mesmo antes de seleccionar e indicar (nos despachos
judiciais que ia proferindo) aquelas que eram relevantes para a prova (e que,
depois, em tempo adequado e, até, compatível com o volume de gravações das
conversações telefónicas interceptadas que tinha para ouvir, mandava
transcrever).
Como é evidente, não foi no momento em que ordenou as transcrições
(na data dos respectivos despachos) que a Sr.ª JIC procedeu à sua audição: essa
audição vinha sendo analisada desde que recebia os CDs com as gravações das
conversações telefónicas interceptadas (juntamente com os respectivos «autos de
gravação») até à altura em que concluía a selecção das passagens relevantes para
a prova (passados dias, desde que recebera os CDs, como era de esperar, sob pena
de não ser credível – e até se poder questionar – que, de facto, os tivesse
ouvido).
Aliás, isso mesmo foi exarado em alguns dos despachos da Sr.ª JIC,
como acima já se salientou.
E não se esqueça que o juiz, quando indica os elementos recolhidos
que considera relevantes (e que, portanto, devem ser transcritos) – artigo
188.º, n.º 3, do CPP, na versão então vigente – faz a selecção, guiando‑se pela
imparcialidade, objectividade, independência, estando aberto a todas as
posições e soluções (portanto, quer considerando o ponto de vista da acusação,
quer o ponto de vista da defesa), tendo em atenção os princípios da liberdade,
da igualdade, da proporcionalidade e do respeito pela personalidade individual
(pois só assim cumpre o seu papel de garante dos direitos e liberdades dos
cidadãos, enquanto entidade distinta, imparcial e independente da acusação),
tendo presente que as finalidades do processo penal são a descoberta da verdade
material, a realização da justiça, bem como alcançar a paz jurídica (o que tem
de ser feito, v. g., com respeito pela dignidade humana e com o asseguramento
de todas as garantias de defesa).
Como lembra o Ministério Público, na resposta ao recurso: «a
reiteração de condutas sempre foi confirmada nas sessões telefónicas escutadas
que já tinha ouvido e de que tinha determinado a transcrição e, tendo em conta
que os campeonatos de futebol, em que os escutados intervinham, se prolongavam
por toda a época desportiva, bem como a particular forma de actuação dos
visados, continuava a haver fortes razões para crer que tais condutas se
prolongavam pelo menos até ao fim de tais campeonatos de futebol, o que só iria
ocorrer em Maio de 2004. E, de facto, sempre isso se confirmou ao longo das
intercepções, o que confirma o acerto do juízo efectuado nas prorrogações.»
Afirmações essas que também constam da decisão instrutória,
chamando‑se ainda à atenção: «Por outro lado, dos autos (das sessões
efectivamente escutadas, que é certo não foram todas) resultava já aquando dos
despachos de prorrogação que os utilizadores dos telefones sob intercepção
falavam uns com os outros, quer entre telefones interceptados, quer através de
telefones fixos ou móveis não interceptados, para telefones interceptados, pelo
que ao ouvir as sessões telefónicas referentes a uns facilmente se concluía que
havia fortíssimas razões para crer que a prorrogação das intercepções de uns e
outros telefones era necessária para os efeitos a que alude a parte final do n.º
1 do artigo 187.º do CPP».
Por isso, podemos acompanhar, relativamente ao recorrente, a decisão
instrutória quando afirma, a propósito das prorrogações das escutas: «Não foram
assim, e também por isto, violadas as disposições legais constantes dos artigos
187.º e 188.º do CPP, tal como não se verifica qualquer violação do princípio da
proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º da CRP, uma vez que a quantidade de
crimes a investigar e a comprovada reiteração das condutas criminosas dos
intervenientes legitimava, de forma não desproporcional, a compressão do seu
direito à palavra, à reserva da intimidade da vida privada, da correspondência
e das telecomunicações – cf. artigo 34.º da CRP».
Especificamente sobre a questão da excessiva duração das
escutas telefónicas (a que respeita a “nona questão” ora em apreço), lê‑se no
acórdão recorrido:
“Nesta matéria, repare‑se que apenas estão em causa as escutas
telefónicas relativas aos dois telemóveis com os números de telefone acima
identificados, da operadora F., utilizados pelo recorrente.
Por se concordar com a fundamentação da decisão instrutória,
transcreve‑se aqui a respectiva argumentação que se considera relevante: «Como
é por demais sabido, os prazos legalmente fixados para a duração do inquérito
são meramente ordenadores, sob pena de impedirem a realização e o culminar de
inúmeras investigações. É certo que no caso dos autos houve intercepções que se
prolongaram para além do prazo máximo legalmente fixado para a duração do
inquérito. Sucede, porém, que nem a lei impõe, pelo menos por agora, prazos
máximos para a duração das intercepções telefónicas, nem tão‑pouco a
complexidade dos autos permitia que se tivesse actuado de outra forma. Na
verdade, para além do elevado número de suspeitos (e depois arguidos), também o
número e a diversidade de crimes em investigação era de tal forma que não se
compaginava com o respeito pelo aludido prazo legal. Veja‑se que, apesar de
terem sido extraídas dos autos um elevado número de certidões (cerca de 80) para
continuação da investigação ou despacho final a desenvolver ou a proferir
noutras Comarcas, ainda assim são 27 os arguidos acusados nestes autos e
inúmeros os crimes em apreço. A tudo isto acresce ainda o facto da actividade
desenvolvida pelos arguidos se estender ao longo do tempo que duravam os
campeonatos de futebol. Reduzir a possibilidade de utilizar o meio de obtenção
da prova em apreço ao prazo máximo de duração do inquérito seria fazer com que a
investigação ficasse coarctada do principal meio de obtenção da prova (uma vez
que sempre seria física e humanamente impossível proceder à presente
investigação naquele prazo legal) e imediatamente votada ao insucesso.»
E adiante‑se mais o seguinte argumento, também relevante, utilizado
na resposta ao recurso do Ministério Público na 1.ª instância: «Acresce que a
actividade dos arguidos em causa se estendia ao longo do tempo que duravam os
campeonatos de futebol. Pelo que, coarctar a utilização de tal meio precioso de
investigação, só porque se ultrapassara o prazo máximo de duração do inquérito
(que não tem valor constitucional) seria impedir que a investigação fosse
efectuada, e, por isso, que o Ministério Público exercesse a acção penal, nos
termos do princípio da legalidade e da consequente oficiosidade, tal como o
impõe o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.»
Acresce que a questão colocada pelo recorrente não faz sentido desde
logo porque as escutas telefónicas ao arguido/recorrente aqui em questão sempre
foram controladas, passo a passo, pela Sr.ª JIC que as autorizou.
Aliás, se essa Magistrada tivesse considerado que não havia
interesse na continuação daquelas escutas telefónicas (naquele juízo de
ponderação vinculada – que foi efectuando em cada momento que autorizou a
prorrogação das escutas – entre, por um lado, o interesse público da
investigação criminal e, por outro, o direito à palavra falada e à privacidade
do recorrente) que estavam a ser feitas ao recorrente, assim o teria dito, como
o fez relativamente ao telefone da rede fixa (que apenas esteve sob escuta desde
a data em que foi autorizado – despacho proferido em 25 de Março de 2003 – até à
data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção – despacho judicial de 26
de Maio de 2003) e como o fez relativamente ao telemóvel n.º (…) (que apenas
esteve sob escuta desde a data em que foi autorizado – despacho judicial de 15
de Outubro de 2003 – até à data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção
– despacho judicial de 12 de Dezembro de 2003).”
E quanto à alegada prorrogação de escutas sem interesse
(a que respeita a “décima questão” ora em apreço), aduziu‑se no acórdão
recorrido:
“Ora, como já vimos, relativamente ao telefone da rede fixa
utilizado pelo recorrente, as escutas telefónicas apenas se prolongaram entre a
data em que foram autorizadas (despacho proferido em 25 de Março de 2003) e a
data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção (despacho judicial de 26
de Maio de 2003).
A cessação justificou‑se precisamente por, apesar da prorrogação que
existiu, ainda assim, não ter tido qualquer resultado útil.
Por isso, nada de mais adequado e ajustado, do que fazer cessar
aquela escuta telefónica, assim acautelando os direitos fundamentais do
arguido/recorrente que estavam em jogo com aquele meio de obtenção de prova.
O mesmo se diga em relação ao telemóvel com o n.º (…) (que, tendo
sido autorizada a sua intercepção telefónica por despacho judicial de 15 de
Outubro de 2003 foi, depois, determinada a cessação da mesma intercepção por
despacho judicial de 12 de Dezembro de 2003, pelos motivos aí indicados, ou
seja, cerca de 2 meses depois).
Situação diferente é a das escutas relativas aos mencionados
telemóveis da operadora F.. que o recorrente utilizava, como decorre, desde
logo, do teor das transcrições que constam dos volumes 12 a 14 deste processo de
recurso.
E, a este respeito, esclarece‑se bem na decisão instrutória: «quanto
ao facto de a M.ma Juíza de Instrução Criminal ter mantido a intercepção ao alvo
(…) até 26 de Maio de 2003, mesmo depois de ter mandado destruir os suportes
magnéticos das intercepções efectuadas entre a data do início da intercepção (4
de Abril de 2003) e a data do despacho de prorrogação (fls. 148), e sem qualquer
resultado útil. É certo que a intercepção do alvo em questão nada de útil trouxe
aos autos. Porém, o arguido era titular de um outro telefone em relação ao qual
foi determinada a intercepção na mesma data (…), tendo sido vários os resultados
úteis daqui surgidos (cf. fls. 112, 123, 137 e 148). Ou seja, apesar de aquele
número de telefone se ter revelado inútil para a investigação, o certo é que não
havia razões para ordenar de imediato a cessação da sua intercepção, uma vez que
o outro telefone propriedade do arguido em questão e também interceptado vinha
fornecendo elementos úteis à investigação. No momento em que foi verificado que
persistia a inexistência de conversas com utilidade, e ponderadas as
necessidades da investigação com a menor compressão possível dos direitos do
arguido, foi decidido fazer cessar a intercepção, o que ocorreu por despacho de
26 de Maio de 2003, tendo sido lavrado o auto de cessação a 28 de Maio de 2003,
ou seja, um mês e 24 dias após o início da mesma.»
De resto, como acima se referiu, as gravações de conversações
telefónicas que foram destruídas, no que respeita ao recorrente, foram
pontuais, não afectando de forma desproporcionada os seus direitos de defesa.
Não se pode, por isso, acompanhar o recorrente, uma vez que (além de
não indicar, no recurso, aspectos concretos em que tivesse ocorrido a violação
que aponta em termos abstractos), como acima se referiu, as escutas que lhe
foram efectuadas foram sendo sempre acompanhadas e controladas judicialmente,
de forma efectiva, contínua e próximo‑temporal.
A circunstância de apenas parte daquelas intercepções telefónicas
gravadas terem sido consideradas relevantes e, por isso, transcritas, não
inutiliza o entendimento do interesse na prorrogação das escutas judicialmente
autorizadas.”
Basta a leitura destas considerações do acórdão
recorrido para se concluir que o mesmo manifestamente não adoptou os pretensos
“critérios normativos” enunciados pelo recorrente nas terceira, quarta, quinta,
nona e décima questões de inconstitucionalidade suscitadas, tendo, pelo
contrário, sido afirmada a existência de efectivo controlo, de modo contínuo e
temporalmente próximo, das diversas fases de execução da intercepção de
conservações telefónicas, sua gravação, selecção e transcrição, por parte do
juiz de instrução, sem dilações que pusessem em risco a efectividade desse
controlo, e nunca tendo existido autorização de prorrogações das escutas sem
prévia ponderação judicial, designadamente pelo confronto com as escutas
simultaneamente feitas a outros intervenientes processuais, do interesse e
relevância para a descoberta da verdade da manutenção da intercepção das
conversações telefónicas do ora recorrente.
Por estas razões, não se conhece das terceira, quarta,
quinta, nona e décima questões de constitucionalidade suscitadas na alegação do
recorrente.
2.1.3. A sexta questão vem reportada ao conjunto
normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3,
alínea a), do CPP, na aludida versão, “interpretado no sentido de considerar
tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas
telefónicas”, por alegada ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da
CRP.
As citadas disposições determinam que nos “actos
processuais que tiverem de praticar‑se sob a forma escrita”, “é obrigatória a
menção do dia, mês e ano da prática do acto, bem como, tratando‑se de acto que
afecte liberdades fundamentais das pessoas, da hora da sua ocorrência, com
referência do respectivo início e conclusão”, e ainda a indicação do “lugar da
prática do acto” (n.º 6 do artigo 94.º), devendo o escrito a que houver de
reduzir‑se um acto processual ser no final “assinado por quem a ele presidir,
por aquelas pessoas que nele tiverem participado e pelo funcionário de justiça
que tiver feito a redacção” (n.º 1 do artigo 95.º), devendo o “auto” – definido
como o “instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se
desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais
tiver assistido quem os redige, bem como a recolher as declarações,
requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante
aquele” (n.º 1 do artigo 99.º) – conter, além dos requisitos previstos para os
actos escritos, a menção da “identificação das pessoas que intervieram no acto”
(alínea a) do n.º 3 do artigo 99.º).
Nas contra‑alegações do Ministério Público o não
conhecimento desta questão é propugnado por duas ordens de razões. Em primeiro
lugar, a alegação de que as referidas normas foram interpretadas “no sentido de
considerar tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por
escutas telefónica” constitui “uma afirmação genérica”, sendo certo que “nunca
se disse no acórdão que os autos lavrados no domínio das escutas telefónicas não
têm de obedecer aos requisitos constantes dos artigos 94.º, 95.º a 99.º do
Código de Processo Penal”, “nem o recorrente alguma vez pôs em causa um auto,
por ele não obedecer aos requisitos legais” – o que seria suficiente para não se
conhecer desta parte do recurso. Ao que acresce que, na motivação de recurso
para a Relação, o que o recorrente considerou inaceitável foi não ter sido
lavrado auto de audição das gravações, pelo juiz, quando essa obrigatoriedade
resultar dos preceitos do CPP atrás referidos; ora, o que estes preceitos
estabelecem é simplesmente quais são os requisitos a que devem obedecer os
“actos processuais que tiverem de praticar‑se sob a forma escrita”, aí não se
discriminando quais são os actos processuais que estão sujeitos a essa forma,
pelo que “qualquer questão que tenha a ver com a obrigatoriedade ou não de
alguns actos referentes às escutas serem reduzidos a escrito, tem de passar
necessariamente pelo artigo 188.º do CPP”, e “é aí que se diz que apenas deve
ser lavrado auto de intercepção e gravação (n.º 1) e de transcrição (n.º 3)”,
pelo que “uma eventual inconstitucionalidade consistente em não estar previsto
que seja lavrado auto de audição de gravação pelo juiz radicará sempre e
exclusivamente no artigo 188.º” – não tendo o recorrente incluído esta norma no
objecto desta parte do recurso, também por este motivo dela não deverá
conhecer‑se.
Em resposta a esta questão prévia, aduziu o recorrente:
“O que está em causa no recurso sub judice é a questão de saber qual
o âmbito normativo dos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3.
Pelo menos, foi desse enfoque que o recorrente colocou o problema,
ou seja, da perspectiva de analisar se essas normas abrangem ou não os actos
relativos à recolha de prova por escutas telefónicas.
Admite‑se que houvesse outra forma de colocar o problema,
enfocando‑o da perspectiva do artigo 188.º do CPP.
Mas trata‑se apenas e como ficou dito de uma outra forma de abordar
a questão, não havendo nenhum motivo que exclua a abordagem do recorrente que,
por isso, se reitera e considera válida.”
Como resulta da transcrição do acórdão feita no ponto
anterior, aí se entendeu que do artigo 188.º do CPP apenas resulta a
obrigatoriedade da elaboração do “auto de intercepção e gravação” (n.º 1) e do
“auto de transcrição” (n.º 3), não exigindo essa disposição legal nem a
elaboração de “auto de início da intercepção de comunicações” nem de “auto de
audição das gravações pelo juiz”. Não obstante, apesar de não legalmente
exigidos, a Polícia Judiciária por sistema elaborou autos de início de
intercepção das gravações, referindo‑se no acórdão que: “Nesses autos (cada um
deles relativo ao respectivo n.º de telefone aí identificado), consta quer a
identificação do inspector da PJ que iniciou as respectivas intercepções das
comunicações, bem como a referência à data (de início) e local onde se procedia
a tal intercepção de comunicações (obviamente o local onde iriam ser feitas as
gravações das respectivas conversações telefónicas interceptadas, enquanto não
fossem «canceladas»), a referência ao despacho judicial que as autorizava, bem
como a indicação de que o «conteúdo das comunicações interceptadas» podia, a
partir daquelas datas iniciais indicadas, «ser a todo o tempo verificado
directamente pela M.ma JIC, também através de cassetes áudio»”.
Do exposto resulta não ter o acórdão recorrido aplicado
o “critério normativo” ora questionado pelo recorrente: em parte alguma dessa
decisão se aceitou que os autos legalmente exigíveis no âmbito das escutas
telefónicas não estavam subordinados aos requisitos formais dos artigos 94.º,
n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do CPP. O que se disse foi
que o artigo 188.º do CPP não exigia a elaboração dos autos aludidos pelo
recorrente, pelo que a única forma adequada de, a este propósito, suscitar uma
questão relevante de inconstitucionalidade seria impugnar esta interpretação do
artigo 188.º do CPP, o que o recorrente não fez, como, aliás, ele próprio
reconhece.
Não se conhecerá, assim, da sexta questão de
inconstitucionalidade suscitada na alegação do recorrente.
2.1.4. A sétima questão respeita à norma contida na
segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na citada versão, “interpretada
no sentido de permitir a destruição dos elementos recolhidos através de escutas
telefónicas e dos respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado
tenha tido acesso a tais elementos nem tenha consentido na sua destruição”.
Como se consignou no recente Acórdão n.º 340/2008 desta
2.ª Secção:
“O Tribunal Constitucional, através dos Acórdãos n.º 660/2006, da
2.ª Secção, e n.ºs 450/2007 e 451/2007, ambos da 3.ª Secção, (…) pronunciou‑se
no sentido da inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
CRP, da norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na interpretação segundo a qual
permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de
telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público
conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que
o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua
relevância.
Atendendo à existência de vários votos de vencido apostos a esses
Acórdãos e para evitar divergências jurisprudenciais, determinou o Presidente
do Tribunal Constitucional, com a concordância do Tribunal, ao abrigo do artigo
79.º‑A, n.º 1, da LTC, a intervenção do Plenário, que, pelo Acórdão n.º 70/2008
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), embora com diversos votos
dissidentes, inflectiu aquela orientação, decidindo “não julgar
inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal,
na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no
sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de
escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido
dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a
sua defesa”.
A orientação assim definida foi posteriormente seguida pelos
Acórdãos n.ºs 128/2008, 204/2008 e 205/2008 e pela Decisão Sumária n.º 202/2008.
É essa mesma orientação que ora se reitera.”
Julga‑se, assim, improcedente a sétima questão de
inconstitucionalidade suscitada.
2.1.5. A oitava questão de inconstitucionalidade vem
reportada ao artigo 82.º da LTC, por alegada violação do n.º 3 do artigo 281.º
da CRP, “se interpretado no sentido de permitir que o Tribunal Constitucional
profira, em qualquer processo, decisão contrária ao juízo de
inconstitucionalidade duma norma que tenha sido proferido em três casos
concretos e, por conseguinte, no sentido de que, neste caso concreto, pode
pronunciar‑se pela constitucionalidade da segunda parte do n.º 3 do artigo
188.º da CPP na interpretação sub judice”.
Na contra‑alegação do Ministério Público propugna‑se o
não conhecimento desta questão, pelas seguintes razões:
“O recorrente levanta esta questão, pela primeira vez, nas alegações
produzidas neste Tribunal.
Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade é com o
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que se fixa o
seu objecto. Nas posteriores alegações ele apenas pode ser restringido, nunca
alargado.
Tanto bastaria para não se conhecer, nesta parte, do recurso.
Outras razões há, no entanto, que levam à mesma conclusão.
Aquilo a que o recorrente se refere é ao facto de, após terem sido
proferidos três acórdãos a julgarem inconstitucional o n.º 3 do artigo 188.º do
Código de Processo Penal (destruição dos elementos recolhidos através de escutas
telefónicas), o Plenário do Tribunal ter proferido decisão em sentido contrário
(Acórdão n.º 70/2008).
Ora, assim sendo, e a ter sido aplicado tal preceito, essa aplicação
ocorreu no processo onde foi proferido aquele acórdão e, obviamente, não neste
processo.
Mas verifica‑se que nem naquele foi aplicado porque a intervenção do
Plenário teve lugar ao abrigo do disposto no artigo 79.º‑A da LTC e não do
artigo do artigo 82.º da mesma Lei.
Por tudo isto, também não deve conhecer‑se do recurso, nesta parte.”
A esta questão prévia respondeu o recorrente nos
seguintes termos:
“O recorrente colocou nas suas alegações, pela primeira vez, a questão da
constitucionalidade do artigo 82.º da LTC.
Não parece, todavia, que a circunstância de essa questão não ter sido suscitada
no requerimento de interposição do recurso seja impeditiva da sua análise pelo
Tribunal Constitucional, por duas razões que se conjugam.
Por um lado, porque, à data da interposição do recurso, não eram conhecidas as
três decisões convergentes em que o recorrente funda a questão de
constitucionalidade que suscitou nas suas alegações.
Por outro lado, porque a interpretação do artigo 82.º da LTC contrária à por si
propugnada (no fundo, a que foi adoptada pelo Acórdão n.º 70/2008 do Plenário do
Tribunal Constitucional) constituiu para o recorrente uma verdadeira surpresa.
O recorrente considera que não era expectável que pudesse vir a publicar‑se uma
decisão que – salvo o devido respeito – implica uma ofensa clara e frontal do
disposto no artigo 82.º da LTC e, sobretudo, do n.º 3 do artigo 281.º da CRP.
Acresce que – e assim se aborda a outra objecção proposta pelo Ministério
Público – o recorrente não põe em causa directamente a constitucionalidade
desse acórdão do Plenário.
Nem o poderia pôr, como é óbvio, uma vez, por um lado, que esse aresto não foi
tirado neste processo e, por outro, que, apesar de ter vocação uniformizadora,
não tem força obrigatória geral.
A questão, tal como o recorrente a suscita, é algo diferente e assenta numa
espécie de inconstitucionalidade por omissão, passando por saber se o Tribunal
Constitucional, em cada processo concreto submetido à sua decisão, é ou não
obrigado a suprir a falta de decisão normativa imposta pelo artigo 281.º, n.º 3,
da CRP.
Trata‑se, se se quiser, de uma questão prévia à análise da constitucionalidade
duma norma concreta: a questão de saber se o Tribunal Constitucional tem outra
alternativa nessa análise que não seja a de decidir na conformidade das três
anteriores decisões de sentido convergente.
Seja como for, a questão colocada pelo recorrente não tem o perfil do recurso de
amparo, muito menos contra uma decisão proferida noutro processo.”
Aceita‑se que, ao colocar, nos termos em que o fez, a
presente questão de constitucionalidade, o recorrente não está a colocá‑la em
termos de recurso (isto é: de impugnação de uma decisão de outro tribunal que
teria aplicado norma inconstitucional), mas antes está a suscitar uma questão de
inconstitucionalidade visando evitar que o Tribunal Constitucional, ao decidir
o presente recurso, vá, ele próprio, de forma directa, aplicar norma que o
recorrente reputa inconstitucional. Isto é: uma vez que o Tribunal
Constitucional, como qualquer outro tribunal, não deve aplicar, nas suas
decisões, normas inconstitucionais, o que o recorrente pretende não é que o
Tribunal Constitucional controle a constitucionalidade de uma norma
efectivamente aplicada pela decisão recorrida, mas antes que se recuse, na
decisão do recurso, uma interpretação normativa que o recorrente reputa
inconstitucional.
Entende‑se, porém, que a aplicação – que acabou de ser
feita no ponto anterior – de uma interpretação normativa do artigo 82.º da LTC
que considera não estar o Tribunal Constitucional impedido de emitir, na
apreciação de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, um
juízo de não inconstitucionalidade de uma norma que já fora objecto de três
anteriores decisões no sentido da inconstitucionalidade, não viola o artigo
281.º, n.º 3, da CRP.
Na verdade, como se referiu no citado Acórdão n.º
340/2008:
“Como é sabido, a existência de três decisões do Tribunal
Constitucional, proferidas em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade, que tenham julgado inconstitucional determinada norma não
determina necessariamente que, no processo de «generalização» previsto no
artigo 82.º da LTC, a decisão do Tribunal não possa ser outra senão a
confirmação daqueles juízos de inconstitucionalidade. A «generalização» dos
juízos concretos de inconstitucionalidade não se produz automaticamente, sendo
a existência de três decisões concretas de inconstitucionalidade mero
pressuposto da instauração de um processo autónomo de fiscalização abstracta
da constitucionalidade da norma em causa, que seguirá os termos do esquema comum
dessa forma processual, designadamente com audição do autor da norma (que não
teve lugar nos processos de fiscalização concreta). Assim, estando‑se perante
um processo autónomo, nada impede que a decisão do Plenário seja divergente dos
juízos de inconstitucionalidade proferidos pelas Secções (decisões estas que
inclusivamente podem ser provenientes de uma mesma Secção e ter sido aí
aprovadas por uma maioria tangencial de três dos respectivos juízes, pelo que
não faria sentido impor o sentido dessa decisão ao Plenário, integrado por
treze juízes). Como refere Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, tomo
VI, 3.ª edição, Coimbra, 2008, p. 280), «uma automática declaração de
inconstitucionalidade, concomitante com a terceira decisão em concreto,
brigaria com a letra da Constituição, com o seu espírito e com a distinção de
competência das secções e do plenário» (posição reafirmada em Jorge Miranda e
Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, p. 811).
No sentido da não automaticidade da «generalização» dos juízos de
inconstitucionalidade também se pronunciaram J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 1025; e
José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição, Coimbra, 2007, p. 91 e nota 122) e constitui entendimento desde sempre
sustentado por este Tribunal, tendo‑se referido no Acórdão n.º 457/94: «O facto
de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos
concretos não conduz, por sua vez, e como pondera o Acórdão n.º 347/92 (…), na
esteira de outros, a uma declaração automática da sua inconstitucionalidade
com força obrigatória geral, mas implica reapreciar a questão pelo Tribunal
Constitucional: como então se observou, ‘é um novo processo de fiscalização
que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar’».
A existência de juízos concretos de inconstitucionalidade por parte
de Secções do Tribunal Constitucional, independentemente do número desses
juízos, não tem força vinculativa fora dos processos em que foram proferidos,
nem em relação aos restantes tribunais, nem sequer face ao próprio Tribunal
Constitucional, nada impedindo que, quer em Secção, quer em Plenário, e seja
este chamado a intervir ao abrigo do artigo 82.º ou dos artigos 79.º‑A ou 79.º‑C
da LTC, venha a obter vencimento posição no sentido da não
inconstitucionalidade. E, por outro lado – embora, em estrito rigor, não seja
juridicamente vinculativa –, a pronúncia do Plenário chamado a intervir ao
abrigo do artigo 79.º‑A da LTC, intervenção motivada justamente por o Tribunal,
colegialmente, a ter considerado «necessária para evitar divergências
jurisprudenciais», deva ser seguida em posteriores decisões do Tribunal, mesmo
pelos juízes que dela divergiram, ao menos enquanto se mantiver a composição do
Plenário e não sobrevierem alterações relevantes do quadro jurídico
existente.”
Julga‑se, assim, improcedente a oitava questão de
inconstitucionalidade suscitada.
2.2. Recurso da decisão instrutória
2.2.1. A primeira questão suscitada no âmbito do recurso
da decisão instrutória (décima primeira questão enunciada na alegação do
recorrente) respeita ao conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º,
374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal “interpretado no sentido de
incluir nas respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da
Federação Portuguesa de Futebol”.
Na contra‑alegação do Ministério foi suscitada – para
além da restrição do objecto do recurso às normas dos artigos 374.º, n.º 1, e
386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal (únicas efectivamente aplicadas na
decisão recorrida), com exclusão das dos artigos 372.º e 373.º desse Código – a
questão do não conhecimento desta questão, com os seguintes argumentos:
“3.2.2. A questão essencial que é trazida pelo recorrente é a de
saber se considerar‑se o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação
Portuguesa de Futebol como funcionário para efeitos do crime de corrupção
activa constitui uma interpretação daquelas normas, violadora do princípio da
legalidade, consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Estando nós no domínio de normas incriminadoras parece-nos óbvio que
vigorará, no caso, em pleno, o princípio da legalidade penal.
3.2.3. Uma vez que o que está em causa é a violação do princípio da
legalidade por uma certa interpretação normativa, poderia colocar‑se a questão
de competência do Tribunal Constitucional para conhecer do recurso.
Na verdade, poderá afirmar‑se que no caso dos autos o que o
recorrente verdadeiramente questiona, ratio constitutione, não é tanto um certo
sentido ou dimensão normativa que a decisão recorrida tenha extraído das normas,
mas, antes, o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido
concluir que o Presidente do Conselho de Arbitragem é funcionário para efeitos
do crime de corrupção activa (sobre a competência do tribunal nesta matéria, cf.
Lopes do Rego, «As Interpretações Normativas Sindicáveis pelo TC», in
Jurisprudência Constitucional, n.º 3).
Sobre esta controversa questão da competência do Tribunal e após
numerosa, diversa e diversificada jurisprudência, o Plenário proferiu
recentemente o Acórdão n.º 183/2008, que, por violação do princípio da
legalidade, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a),
do Código Penal e dos artigos 366.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos
na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do
procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Preliminarmente ao conhecimento da questão de fundo o Tribunal
decidiu ser competente para conhecer do pedido.
Nesse aresto e citando os Acórdãos n.ºs 412/2003 e 110/2007, o
Tribunal entendeu que para que houvesse um objecto apto à apreciação da
constitucionalidade bastaria que se estivesse perante um critério normativo,
dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a
propósito de uma pluralidade de situações concretas, sendo, pois, necessário que
a questão se colocasse com um grau suficiente de generalidade e abstracção, de
forma a poder dizer‑se que se tratava de uma interpretação normativa que não
dependia do circunstancialismo concreto dos factos.
Ora, no presente processo vem suscitada a questão da
inconstitucionalidade de normas penais enquanto aplicáveis a uma pessoa: o
Presidente do Conselho de Arbitragem. O que está em causa é saber se a
interpretação que considera que o Presidente do Conselho de Arbitragem é
funcionário para efeitos do crime de corrupção activa é ou não violadora do
princípio da legalidade.
Parece‑nos, portanto, que tal como a questão vem colocada, não se
vislumbra nela a existência de um qualquer grau de abstracção e generalização.”
A esta questão prévia respondeu o recorrente nos
seguintes termos:
“No que diz respeito à objecção desenvolvida sob o n.º 3.2.3,
dir‑se‑á que o recorrente colocou a questão aí abordada em termos normativos, na
medida em que o que propôs ao debate é a interpretação das normas contidas na
parte final dos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código
Penal, na perspectiva do âmbito subjectivo abstracto e genérico de aplicação de
tais normas, ou seja, da definição do universo de entidades e pessoas
abrangidas por elas.
A aplicação dessas normas a uma entidade concreta (a Comissão de
Arbitragem da FPF e qualquer dos seus membros) tem como pressuposto a
delimitação desse âmbito segundo critérios genéricos de interpretação cuja
constitucionalidade o recorrente submeteu à sindicância deste Tribunal.
Assim sendo, não saímos do domínio normativo e da solicitação de um
juízo de constitucionalidade abstracto e geral.”
No citado Acórdão n.º 183/2008 foi feita desenvolvida
exposição da problemática relativa à sindicabilidade pelo Tribunal
Constitucional da alegada violação do princípio da legalidade penal (ou fiscal)
imputada a interpretações analógicas feitas pelos restantes tribunais, tendo, a
esse respeito, expendido o seguinte:
“Sabe‑se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de
amparo ou de queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa
da constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não
normativos) dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos
fundamentais, constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o
Tribunal conhecer da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si
mesmas tomadas.
Mantém‑se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão n.º
674/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000)
que foi recentemente transcrito no já citado Acórdão n.º 524/2007 e que aqui se
repete:
«[…] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente
para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se
ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
operação equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em
raciocínios analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal
Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas,
efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da
legalidade.[…]
[…] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a
controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou
fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos
recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em
matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de
raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se
confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das
leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais
supremos de cada uma das respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível
atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
‘sentido natural’ (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação
do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial,
em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma
tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa
reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar
cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma
inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de
competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria
com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra
desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a
restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.»
Tudo isto é verdade e terá de se manter como boa jurisprudência.
De facto, como se disse, não vigora entre nós um sistema de recurso
de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de
fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal
conheça do mérito constitucional do acto casuístico de subsunção de um
pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstracta de uma certa
norma legal.
Contudo, o problema que agora se coloca − que é o de saber se não
haverá porventura uma violação do princípio da legalidade criminal quando se
considera que a declaração de contumácia constituía uma causa de suspensão da
prescrição à luz do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e do artigo
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 − tem uma especificidade que
não poderá ser negligenciada.
Esta especificidade do problema poderá ser explicada partindo de uma
distinção metodológica relativa ao referente da norma legal.
As normas podem referir‑se (i) a factos concretos cujo
circunstancialismo envolvente será sempre inabarcável, podem também referir-se
(ii) a realidades típicas não configuradas pelo legislador e podem, ainda,
referir-se (iii) a meras categorias normativas fixadas por lei (…).
Esta diferença é processualmente relevante.
Se no primeiro caso é líquido que a determinação do referente da
norma (factos concretos) está fora do domínio de actividade do Tribunal
Constitucional, já o mesmo não se poderá dizer, com igual certeza, no segundo
caso, em que o referente são factos típicos com um elevado grau de abstracção e,
menos ainda, no terceira hipótese, em que o referente sejam categorias legais.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade inclui a
possibilidade de apreciar a validade daquilo que geralmente se designam como
interpretações normativas, admitindo o artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional a possibilidade de «o juízo de constitucionalidade sobre a norma
que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em
determinada interpretação dessa mesma norma».
O controlo de constitucionalidade das «interpretações normativas»,
assim admitido, não atribui, porém, ao Tribunal a competência que ele não pode
ter, desde logo face ao disposto no artigo 221.º da Constituição. Um «tribunal
ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico‑constitucional» não pode, evidentemente, transformar‑se em instância
revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito
infra‑constitucional, substituindo‑se‑lhes na tarefa (que exclusivamente lhes
pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal. Tal
em caso algum poderá ocorrer; tal não ocorre seguramente no caso agora sub
judice.
Com efeito, e ao invés do que sucede quando se pergunta se
determinado conjunto de factos concretos é ou não susceptível de subsunção num
determinado tipo legal, quando se pergunta se a declaração de contumácia é ou
não susceptível de integrar o universo das causas legais de suspensão da
prescrição, não se está a determinar se uma expressão legal é ou não
susceptível de ter como referente um determinado conjunto de factos concretos,
mas sim um acto processual legalmente definido de forma geral e abstracta. O
referente é pois, em primeira linha, o conteúdo geral e abstracto de uma norma
legal e não um conjunto de factos concretos ou típicos.
Não se pergunta se um determina facto concreto com todo o seu
circunstancialismo se pode incluir no âmbito da norma. A esta pergunta não pode
o Tribunal Constitucional responder.
Não se coloca aqui, sequer, a questão de saber se um determinado
facto típico dotado já de um grau médio de abstracção está abrangido pelo âmbito
de uma norma − que era o que sucederia, por exemplo, se se perguntasse se a
«energia eléctrica» se pode considerar uma «coisa móvel» ou se o «ácido» se
poderá considerar uma «arma» para efeitos de um determinado tipo de crime
(veja‑se Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte geral, Tomo I: Questões
Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra 2007, p. 188 s.).
Pergunta‑se, sim, se um acto processual normativamente inventariado
em termos gerais e abstractos pela lei – a «declaração de contumácia» – é, ou
não, passível de ser assimilado pelos conceitos utilizados pelo texto do artigo
119.º na versão originária de 1982 e, em especial, se ela se poderá configurar
como um «caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei» ou como
uma hipótese de «“falta de autorização legal para continuar o procedimento».
Trata‑se apenas de saber se − em abstracto − será possível incluir o
conteúdo normativo constante de uma norma – o artigo 336.º do Código de
Processo Penal – no conteúdo normativo constante de outra norma – o artigo
119.º, n.º 1, do Código Penal, na versão originária de 1982.
Assim, os argumentos fundamentais invocados para não conhecer das
eventuais violações do princípio da legalidade não valem para este caso em que o
possível referente da norma é uma outra norma geral e abstractamente fixada por
lei.
(…)
Nos Acórdãos n.ºs 412/2003 e 110/2007, o Tribunal Constitucional
entendeu que, para que houvesse um objecto apto à apreciação da
constitucionalidade, bastaria que se estivesse perante um critério normativo,
dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a
propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Seria, pois, necessário que a questão se colocasse com um grau
suficiente de generalidade e abstracção, de tal modo que se pudesse dizer que
se trataria de uma interpretação normativa que não dependeria do
circunstancialismo concreto dos factos.
Se admitimos que este critério possa gerar dúvidas no que respeita a
realidades típicas sem previsão legal, já o mesmo não se poderá dizer quando
está em causa uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o
caso da declaração de contumácia.”
A situação em causa no presente recurso é
substancialmente diferente daquela que foi apreciada no Acórdão n.º 183/2008,
pois do que agora se trata é de saber uma concreta pessoa, a quem alegadamente o
recorrente teria dado ou prometido determinada vantagem, que não lhe era devida,
para ele praticar qualquer acto ou omissão contrários ao dever do cargo, e que
detinha a específica qualidade de presidente da Comissão de Arbitragem da
Federação Portuguesa de Futebol desempenha funções em “organismo de utilidade
pública” e, por isso, por força da parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo
386.º do Código Penal, é considerado “funcionário” para efeitos da lei penal.
A decisão recorrida respondeu afirmativamente à questão,
pelas razões desenvolvidas a fls. 859 a 884 destes autos (fls. 22 841 a 22 866
do processo principal), basicamente por entender que a Federação Portuguesa de
Futebol, como resulta claramente das disposições legais pertinentes, é uma
pessoa colectiva de direito privado à qual foi concedido estatuto de utilidade
pública, tendo, por efeito desta concessão, passado a prosseguir também fins de
natureza pública e praticar actos que implicam prerrogativas de autoridade
perante os clubes, jogadores, dirigentes, árbitros, etc., cabendo das decisões
dos seus órgãos, no uso de poderes públicos, recurso para os tribunais
administrativos.
O que o recorrente questiona é, pois, a correcção do
entendimento judicial de que a concreta pessoa que exercia as funções de
presidente da Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol e à qual
ele terá dado ou prometido dar vantagens pela prática de actos ou omissões
contrários ao dever do cargo desempenhava funções em organismo de utilidade
pública. Tratou‑se de entendimento que assumidamente se circunscreveu ao teor
literal do preceito em causa, sem qualquer alusão a argumentos de igualdade ou
maioria de razão, que denunciassem o recurso à analogia. Entendimento esse que,
aliás, era o perfilhado pela doutrina, designadamente no Comentário
Conimbricense do Código Penal (Parte Especial, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 812,
§ 23 da anotação ao artigo 386.º), que refere:
“Organismos de utilidade pública corresponde ao conceito, corrente
no direito administrativo, de pessoas colectivas de utilidade pública, isto é,
pessoas colectivas de direito privado que mereçam a qualificação de interesse
público, ou seja, a declaração de utilidade pública, independentemente do
substrato que lhes presidia. Podem ser pessoas colectivas de mera utilidade
pública, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas
de utilidade pública administrativa (…).”
Neste contexto, a questão ora em causa não é
recondutível às hipóteses em que se arguí a inconstitucionalidade, por violação
do princípio da legalidade penal, designadamente pelo proibido recurso à
integração analógica, de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e
susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de
situações concretas, como ocorria nas situações em que o Tribunal Constitucional
considerou admissível conhecer do objecto do recurso.
O que, em rigor, o recorrente pretende é que o Tribunal
Constitucional sindique a correcção da operação judicial de subsunção do caso
dos autos à previsão legal, o que, pelas razões expostas, é inadmissível.
Por estas razões, não se conhecerá da décima primeira
questão suscitada na alegação do recorrente.
2.2.2. Finalmente, a décima segunda questão vem
reportada à Lei n.º 49/91, de 3 de Agosto, que, ao não definir com rigor a
extensão e sentido da autorização legislativa concedida, ofenderia o disposto
no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, sendo
consequentemente inconstitucional o Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro,
emitido ao abrigo dessa inválida autorização (embora, quanto ao Decreto‑Lei,
como se assinala na contra‑alegação do Ministério Público, tendo o recorrente
sido pronunciado pela prática de 21 crimes dolosos de corrupção desportiva
activa previsto e punido nos artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, por referência aos artigos
2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, desse diploma, são apenas estas as normas
efectivamente aplicadas, pelo que exclusivamente elas poderão, nesta parte,
integrar o objecto do recurso).
A Lei n.º 49/91 tem a seguinte redacção:
“Artigo 1.º Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de
qualificar como crime comportamentos que afectem a verdade e a lealdade da
competição desportiva e seu resultado.
Art. 2.º O diploma a publicar ao abrigo da presente autorização
legislativa estabelecerá a definição dos comportamentos, acções ou omissões,
contrários ao princípio da ética desportiva, com o fim de alterar a verdade,
lealdade e correcção da competição desportiva ou o seu resultado, fixará as
respectivas sanções, até ao limite de quatro anos de prisão, com ou sem multa,
podendo o julgamento prever penas acessórias de suspensão da actividade
desportiva e de privação de receber subsídios oficiais.
Art. 3.º A presente autorização legislativa tem a duração de 90
dias.”
Como no recente e já citado Acórdão n.º 340/2008 desta
Secção se consignou:
“Relativamente à exigência constitucional de a lei de autorização
legislativa definir, não apenas o objecto e a extensão, mas também o sentido da
autorização (requisito apenas aditado na revisão constitucional de 1982), a
jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente aderido às
formulações avançadas no Acórdão n.º 358/92, segundo as quais:
«(…) o sentido de uma autorização legislativa, sendo um dos
elementos do ‘conteúdo mínimo exigível’ da lei de autorização, só é
efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de
autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do
acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o ‘sentido’ não tem
que exprimir‑se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo
menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher
a função paramétrica que a Constituição lhe confere.
Nesta ordem de ideias escreveu António Vitorino (op. cit., págs. 238
e 239): ‘O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera
conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os
poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas
matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não
constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios
orientadores (...), mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve
constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa
tripla vertente:
– por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a
expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na
perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem
jurídica vigente (é o sentido na óptica do delegante);
– por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos
fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando,
assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (é o sentido na óptica do
delegado);
– e, finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a
conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das
transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da
outorga da autorização (é o sentido na óptica dos direitos dos particulares,
numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional – as matérias
que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República).’»
Nesta mesma linha se insere o Acórdão n.º 213/95, no qual se lê:
«(…) dir‑se‑á que o objecto constitui o elemento enunciador da
matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual a amplitude
das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios base, as
directivas gerais, os critérios rectores que hão‑de orientar o Governo na
elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já,
não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro
limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação
das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
Assim sendo, a autorização há‑de conter os princípios, as normas
fundamentais que concedem unidade lógico‑política à disciplina a editar pelo
Governo, e há‑de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à
determinação das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar‑se.
E deve sublinhar‑se com especial destaque, que se o sentido da
autorização não tem de exprimir‑se em abundantes princípios ou critérios
directivos (que levados às últimas consequências poderiam até condicionar por
inteiro em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no
mínimo, como condição da sua própria verificação, ser suficientemente
inteligível a fim de poder operar como parâmetro de aferição dos actos
delegados e, consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador
delegado do essencial dos ditames do legislador delegante (cf., por todos, os
Acórdãos n.ºs 107/88 e 70/92, Diário da República, respectivamente, I série, de
21 de Junho de 1988 e II série, de 18 de Agosto de 1992).»”
Estes requisitos mínimos são satisfeitos pela lei ora em
apreço, que claramente indica o sentido da intervenção legislativa programada –
a qualificação como crime de comportamentos que afectem a verdade e a lealdade
da competição desportiva e seu resultado – não sendo exigível que a própria lei
contenha a definição dos diversos conceitos jurídicos que utiliza, como o de
competição desportiva, ética desportiva, actividade desportiva, etc., conceitos
cujo sentido, além de ser de apreensão comum, já resultavam de outros
instrumentos jurídicos vigentes (designadamente a Lei de Bases do Sistema
Desportivo – Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro). Aliás, a lei em causa, para além
desse sentido incriminador fundamental, enunciou claramente os valores a
proteger (a ética desportiva e a verdade, a lealdade e a correcção da
competição desportiva) e chegou ao detalhe de elencar as sanções aplicáveis e
seus limites (prisão até quatro anos, com ou sem multa, e penas acessórias de
suspensão da actividade desportiva e de privação de receber subsídios
oficiais).
O cumprimento do objectivo da imposição constitucional
em causa ainda foi reforçado, no caso em apreço, pela circunstância de a
Proposta de Lei n.º 174/V, que esteve na génese da Lei n.º 49/91, ter sido logo
acompanhada do projecto de decreto‑lei que o Governo se propunha editar no uso
da autorização legislativa solicitada (cf. Diário da Assembleia da República, V
Legislatura, 4.ª Sessão Legislativa, II Série‑A, n.º 14, de 14 de Dezembro de
1990, pp. 288‑290), como veio a fazer.
Conclui‑se, assim, que a Lei n.º 49/91 não padece de
inconstitucionalidade, por alegada violação do disposto no n.º 2, por
referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, e, assim sendo, também
improcede a imputação de inconstitucionalidade das normas aplicadas do
Decreto‑Lei n.º 390/91, inconstitucionalidade esta que, na tese do recorrente,
surgia como meramente consequente da pretensa inconstitucionalidade da lei de
autorização legislativa.
3. Decisão
Em face do exposto, decide‑se:
a) Não conhecer das 1.ª a 6.ª e 9.ª a 11.ª questões
suscitadas na alegação do recorrente;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º,
n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode
destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado
não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa
pronunciar‑se sobre o eventual interesse para a sua defesa;
c) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 82.º da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro, interpretado no sentido de permitir que o
Tribunal Constitucional profira, no julgamento de um recurso, juízo de não
inconstitucionalidade de uma norma que já fora objecto de juízos de
inconstitucionalidade em três decisões anteriores;
d) Não julgar inconstitucional a Lei n.º 49/91, de 3 de
Agosto, nem o Decreto‑Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro, emitido ao abrigo da
autorização concedida por essa Lei; e, consequentemente,
e) Negar provimento aos recursos, confirmando as
decisões recorridas, nas partes impugnadas.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos
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