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Processo n.º 146/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I
Relatório
1.
Notificado da decisão instrutória contra si proferida no 3º Juízo do Tribunal
Judicial de Fafe, o arguido A. recorreu directamente para o Tribunal
Constitucional, com invocação da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82 de 15 de Novembro (LTC), pretendendo a 'apreciação da
inconstitucionalidade das seguintes normas e diplomas':
'[...]
- Lei de Autorização nº 49/91, de 3 de Agosto, por ofensa do disposto no n.º 2,
por referência à al. c) do n.º 1, do art. 165º CRP;
- Decreto-Lei nº 390/91, de 10 de Outubro, por ofensa dos mesmos preceitos da
CRP;
- conjunto normativo formado pelos arts 97.º. n.º 4. e 187.º n.º 1, CPP (na
versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), e 205.º, n.º 1 CRP,
interpretados no sentido de que dispensam o Juiz de Instrução Criminal de
concretizar através de factos os elementos da tipicidade do crime concreto cuja
investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas
autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal
crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime
ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de
recolha de prova, por ofensa do disposto, entre outros, nos arts 18.º, n.º 2, e
32.º, n.º 8 da CRP;
- conjunto normativo integrado pelos arts 97.º, n.º 4. 187.º, n.º 1, e 189.º CPP
(na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), na interpretação de acordo
com a qual constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de
concretização através de factos dos elementos da tipicidade do crime concreto
cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas
autorizadas, dos factos concretos que condensam os indícios da prática de tal
crime e, bem assim, dos factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime
ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de
recolha de prova, por ofensa do disposto, entre outros, nos arts 18.º, n.º 2, e
32.º, n.º 8 da CRP;
- art. 187.º, n.º 1, CPP na versão anterior à Lei 48/2007. de 29 de Agosto),
interpretado no sentido de considerara admissível a autorização de escutas
telefónicas sem a fixação do respectivo prazo, por violação dos arts 18.º, n.º
2, e 32.º, n.º 8, CRP;
- conjunto normativo formado pelos arts 94.º, n.º 6, 95.º n.º 99º, nºs 1 e 3,
a), CPP (na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), na interpretação
que considere tais preceitos inaplicáveis ao domínio da recolha de prova por
escutas telefónicas, por ofensa dos arts 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, CRP;
- art. 188.º, n.º 1, CPP (na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), na
interpretação que admita a prorrogação das escutas telefónicas sem prévia
audição das anteriores e a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de
vários dias, por um lado, entre as escutas efectuadas, sua selecção e entrega ao
Juiz dos respectivos autos e suportes magnéticos, e, por outro lado, entre
elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos
considerados com interesse e a sua apresentação ao Juiz e audição por este, por
ofensa das disposições conjugadas dos arts 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e
18.º, n.º 2, CRP;
- art. 188.º, 3, segunda parte, CPP (na versão anterior à Lei 48/2007. de 29 de
Agosto), por ofensa dos arts 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, nº 2, CRP;
- art. 187.º, CPP (na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), na
interpretação que permita a autorização das escutas telefónicas por um período
de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, em especial sem a
ocorrência da produção de quaisquer outras provas relevantes, por violação do
disposto nos arts 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, CRP;
- art. 187.º, n.º 1, parte final (na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de
Agosto), na interpretação que legitime a prorrogação de escutas de interesse
nulo ou residual, por ofensa dos arts 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 4, CRP.
As questões de constitucionalidade cuja apreciação o Requerente pretende
submeter ao escrutínio do Tribunal Constitucional foram por ele suscitadas no
requerimento de abertura de instrução que deu origem à decisão instrutória acima
referida.
O presente recurso deve ser recebido com subida imediata, nos próprios autos, e
efeito suspensivo - arts 310.º, n.º 1, segunda parte, CPP, e 78.º, n.º 4, LTC.'
2.
Por decisão sumária proferida nos autos foi decidido não conhecer do
recurso, com fundamento nas razões que se transcrevem:
“(…)
Conforme permite o invocado artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, cabe recurso para
o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Exige-se, no
entanto, que a decisão recorrida 'não admita recurso ordinário' e que a questão
de inconstitucionalidade tenha sido previamente suscitada perante o tribunal
recorrido, 'em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (artigos 70º n.º 2
e 72º n.º 2 da LTC).
Com fundamento nesta disciplina, o Tribunal tem entendido que o objecto de
recurso deve consistir em norma jurídica aplicada como ratio decidendi da
decisão recorrida e, ainda, que esta decisão represente, com força de caso
julgado, a decisão de uma questão jurídica que cumpra ao tribunal conhecer, pois
só assim o efeito decorrente do recurso de inconstitucionalidade será apto a
repercutir-se, de modo efectivo, no processo.
Deve, portanto, aceitar-se que o Tribunal não conhece de decisões que aplicam a
norma acusada de desconformidade constitucional de forma provisória, seja porque
o procedimento se limita a proteger cautelarmente os interesses de uma parte,
seja porque, dentro do mesmo processo, a decisão visa apenas permitir, com base
em indícios sujeitos a posterior confirmação e validação, uma decisão definitiva
sobre a questão em debate. São, portanto, razões ligadas ao carácter
instrumental do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC que
conduzem a recusar conhecer de decisão que não concretiza a solução definitiva
de uma questão, a par de razões tendentes a prevenir a banalização da
intervenção do Tribunal Constitucional, quando chamado a julgar pretensas
questões de inconstitucionalidade tratadas em decisões não definitivas.
Compreende-se, por isso, que o Tribunal Constitucional não possa conhecer, ao
abrigo da referida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, de normas penais ou
processuais aplicadas em despachos de pronúncia nas matérias cuja decisão não
tem efeito de caso julgado: na verdade, é no momento da sentença, e no
cumprimento do dever de proceder à enumeração dos factos provados e dos motivos
de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação da selecção e
exame crítico da prova – artigo 374º do Código de Processo Penal – que o
tribunal penal profere uma decisão definitiva sobre estas questões.
Ou seja; apesar de uma decisão interlocutória do Tribunal Constitucional quanto
à não inconstitucionalidade de uma qualquer norma, na decisão final o tribunal
comum pode legitimamente decidir não aplicar essa norma com fundamento na não
verificação dos seus pressupostos de aplicação. Ora, esta circunstância é bem
demonstrativa da inutilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional quando
sindica normas aplicadas em decisões não definitivas, como são os despachos de
pronúncia, mesmo quando decidem matéria relativa à legalidade da prova
recolhida.
É esta a razão pela qual a lei determina a irrecorribilidade da decisão
instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público, conforme dispõe o artigo 310º n.º 1 do Código de Processo
Penal, permitindo concomitantemente que a questão relativa à apreciação da
legalidade da prova seja discutível não só até à sentença, mas ainda no recurso
que dela couber – n.ºs 2 e 3 do citado artigo 310º.
Ora, a irrecorribilidade do despacho de pronúncia constitui um indício óbvio de
que as normas são nele aplicadas com carácter provisório. Em suma, o Tribunal
não pode conhecer do objecto do recurso.”
3.
Notificado da decisão sumária proferida, o recorrente apresenta-se a
reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, nos
seguintes termos:
“ (…) O douto despacho reclamado decidiu não tomar conhecimento do recurso
em mérito, em suma porque considera que “a irrecorribilidade do despacho de
pronúncia constitui um indício óbvio de que as normas são nele aplicadas com
carácter provisório”.
Como antecedente lógico dessa observação – onde se projecta a ideia de
inutilidade do objecto do recurso, por inutilidade de decisão que nele viesse a
ser proferida – invoca o douto despacho que o Tribunal Constitucional “não
conhece de decisões que aplicam a norma acusada de desconformidade
constitucional de forma provisória”, em especial “de normas penais ou
processuais aplicadas em despacho de pronúncia nas matérias cuja decisão não tem
efeito de caso julgado”.
Sem quebra do muito respeito devido, considera o Recorrente que a douta decisão
em apreço não fez correcta aplicação do Direito, incorrendo em erros de
argumentação que a Conferência pode e deve suprir.
Desde logo, por se afigurar evidente que a declaração de inconstitucionalidade
das normas que o Tribunal Constitucional venha – como se propugna – a proferir
não ser, de modo algum, nem provisória nem inútil.
Se, como se espera, o Tribunal declarar inconstitucionais as normas aplicadas no
despacho de pronúncia, é indiscutível que este terá de ser revogado, em
conformidade com essa declaração.
E parece também evidente que a consequência inevitável dessa declaração – que
passa a ser definitiva no processo – será a não pronúncia do Recorrente.
Daí que a decisão do Tribunal Constitucional não esteja maculada por
inutilidade.
Ainda que assim não fosse – quer dizer: ainda que daí não adviesse a não
pronúncia do Recorrente –, sempre seria certo que, nos limites circunscritos
deste processo, a decisão do Tribunal Constitucional formaria caso julgado e,
por consequência, as normas em causa não poderiam jamais voltar a ser aplicadas
na decisão final.
Neste condicionalismo, não procede o argumento da suposta inutilidade da decisão
a proferir.
Como se não aceita o argumento de que a pronúncia não forma caso julgado.
As normas aplicadas são parte integrante – e mesmo essencial – da decisão e
sobre esta – sobre a decisão de pronunciar – forma-se, sem sombra de dúvida,
caso julgado no que concerne à sua essência teleológica: submeter o Arguido a
julgamento.
Com esta dimensão, a declaração – aliás, explícita, no caso concreto – de
constitucionalidade das normas aplicadas é definitiva.
Com esta dimensão, quer-se dizer: para o único efeito útil da pronúncia, que é
submeter o Arguido a julgamento.
Ora, o Recorrente tem justificado interesse em evitar esse efeito deletério.
E pode – e escolheu – fazê-lo promovendo e obtendo a declaração de
inconstitucionalidade das normas invocadas para tal.
A tese acolhida na douta decisão reclamada conduziria, se fosse ratificada, a
conclusões clamorosamente absurdas.
Desde logo porque, absolutizando a provisoriedade dos pressupostos normativos da
pronúncia, tornaria, na prática, absolutamente inútil a instrução. Se o despacho
de pronúncia não é sindicável sequer ao nível da constitucionalidade das normas
nele aplicadas, para que serve, de facto, a instrução, uma vez que a decisão já
não é sindicável ao nível do juízo sobre a suficiência dos indícios?
Ademais – e sobretudo – porque, se fica vedada a intervenção do Tribunal
Constitucional para, nesta fase, proclamar a inconstitucionalidade das normas,
fica aberta a porta às maiores arbitrariedades.
Em bom rigor, possibilitar-se-ia, por exemplo, a pronúncia do Arguido por crimes
nem sequer previstos na lei.
Sendo o despacho de pronúncia insusceptível de recurso ordinário, como é, o
Arguido não teria nenhuma forma de esconjurar a sua sujeição a julgamento por um
tipo de crime não previsto na lei penal (p. ex., uma conduta despenalizada) ou
ao abrigo de uma qualquer norma incriminatória criada na acusação e sancionada
na pronúncia.
A linha de argumentação adoptada pelo douto despacho reclamado justificaria que
não pudesse ser conferida pelo Tribunal Constitucional a conformidade à Lei
Fundamental de qualquer norma, por mais aberrante ou insólita do ponto que vista
que agora nos interessa, aplicada numa decisão judicial diferente da sentença
final que, por definição, é a única sobre a qual se forma caso julgado material.
Seria esse o caso, por exemplo, da invocação duma norma penal inexistente ou dum
princípio de presunção de culpa ou de perigo de fuga para justificar a prisão
preventiva.
Tem o Recorrente por seguro que a interpretação restritiva do conjunto normativo
formado pelos arts 70.º, nºs 1, al. b), e, e 72º, nº 2, da LTC sancionada pelo
douto despacho em referência é, em si mesma, inconstitucional.
A interpretação, isto é, que considere insindicável pelo Tribunal Constitucional
uma norma jurídica aplicada numa decisão que não forme caso julgado sobre o
objecto do processo ou sobre a sua própria aplicação final no processo, não
obstante essa aplicação afectar directa e imediatamente direitos e garantias
fundamentais do Arguido.
Como acontece, no caso, presente, com o direito do Arguido de não ser sujeito a
julgamento por um crime inexistente ou mediante a aplicação extensiva dum dos
elementos da factualidade típica (o universo subjectivo duma norma
incriminatória).
Aquele conjunto normativo, assim interpretado, ofende, entre outros, o nº 1 do
art. 29º e o nº 1 do artº 32º CRP, e é inconstitucional, o que fica alegado.”
4.
Por seu turno, o Ministério Público emitiu, sobre a reclamação
deduzida, o seguinte parecer:
“(…)
1º
A questão suscitada pela douta decisão sumária, proferida nos autos,
consubstancia-se em determinar se poderá erigir-se em pressuposto genérico dos
recursos de fiscalização concreta a exigência de definitividade ou não
provisoriedade da decisão recorrida.
2º
Tal questão – não absolutamente pacífica na jurisprudência constitucional (cf.,
v.g., os Acórdãos nos 92/87, 267/91, 240/94, 15 1/85, 400/97, 664/97, 466/95,
221/00, 369/02, entre muitos outros) – tem levado maioritariamente à conclusão
que não é possível recorrer para o Tribunal Constitucional de decisões puramente
precárias – e, enquanto tal, insusceptíveis de autónoma impugnação no
ordenamento processual comum – necessariamente “consumidas” por uma ulterior
decisão (como sucede com o despacho de admissão de um recurso) ou que carecem,
em absoluto, de verdadeira autonomia, já que se integram na decisão
originariamente proferida (por exemplo, o despacho de sustentação); ou que são
desprovidas, em absoluto, de carácter imperativo ou vinculativo para as partes,
limitando-se a adverti-las para a eventualidade de certo efeito cominatório ou a
convidá-las a pronunciarem-se, querendo, sobre determinada questão.
3.º
No âmbito dos procedimentos cautelares, tem prevalecido o entendimento de que
não são impugnáveis perante o Tribunal Constitucional as decisões que decretam
ou rejeitam a providência, referentemente à questão de constitucionalidade das
mesmas normas que serão necessariamente objecto de apreciação na sentença a
proferir na causa principal, com fundamento na natureza estritamente
perfunctória, provisória e cautelar das ditas providências.
4.º
Temos, porém, fundadas reservas a que este entendimento maioritário se possa
estender a outro tipo de decisões, fora do âmbito das providências cautelares
cíveis, de modo a abranger irrestritamente o processo penal, nas fases
preliminares ao julgamento – contribuindo para tal convicção, por um lado, os
princípios constitucionais nesta sede convocáveis; e, por outro, uma essencial
diferença relativamente à problemática da “dupla apreciação” da
constitucionalidade da mesma norma, sucessivamente convocada e aplicada ao
dirimir a providência e ao julgar a causa principal.
5.º
É que, quanto à “inclusão” no tema probatório, pelo juiz que profere o despacho
de pronúncia, de provas alegadamente “proibidas”, embora seja certo que tal
decisão não constitui caso julgado formal, podendo e devendo o juiz do
julgamento valorar livremente a questão da admissibilidade de tais meios de
prova (artigo 310.º, nº 2), não deixa de ser certo que o acesso ao Tribunal
Constitucional, na sequência da prolação da pronúncia, tem evidentes e
relevantes reflexos na estratégia de defesa do arguido, permitindo-lhe
antecipar, no caso de interpretações normativas inconstitucionais, se as provas
poderão ou não ser utilizadas contra ele na fase de julgamento – não ocorrendo,
deste modo, qualquer inutilidade ou esvaziamento das finalidades típicas do
controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional.
6º
Por outro lado – e quanto a “questões prévias” que sejam atinentes à própria
subsistência da pretensão punitiva do Estado (existência de amnistia, prescrição
do procedimento criminal, invocada inconstitucionalidade das normas que integram
o tipo penal que suporta a acusação) – para além de ser discutível, face à
formulação do artigo 310.º, em que medida se forma ou não caso julgado formal
sobre a decisão que, na fase de pronúncia, as dirima – admitimos que a sua
fundamental relevância sobre o prosseguimento do processo e as garantias de
defesa iniba a sua “desvalorização”, como decisão puramente precária ou
provisória, e como tal insusceptível de controlo normativo por parte do Tribunal
Constitucional.
7.º
Acresce que, neste caso, (e ao contrário do que sucede no âmbito das
providências cautelares) nunca se verifica o risco de o Tribunal Constitucional
ficar sujeito a uma “dupla apreciação” da mesma questão, primeiro na providência
cautelar, depois no julgamento da causa principal (como decorrência da autonomia
da ambas as instâncias e da insusceptibilidade de o decidido em sede de
procedimento cautelar condicionar a decisão final de mérito): como é evidente, a
“unidade” do processo penal determina que o juízo de inconstitucionalidade que,
porventura, se forme em consequência de recurso subsequente à pronúncia faz caso
julgado, vinculativo do que se vier a decidir na sentença final.
8º
Consideramos, deste modo, que – salvo melhor opinião – a orientação maioritária
formada jurisprudencialmente quanto à recorribilidade para o Tribunal
Constitucional de decisões proferidas em procedimentos cautelares cíveis não
deverá ser irrestritamente transposta para as decisões penais, proferidas nas
fases anteriores ao julgamento, atenta a natureza do processo penal e os
reflexos do princípio constitucional das garantias de defesa no seu
desenvolvimento e a plena vinculatividade do acórdão proferido pelo Tribunal
Constitucional, ainda que em recurso subsequente à prolação do despacho de
pronúncia.”
Cumpre decidir.
II
Fundamentação
5.
Visa o recorrente, com invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC,
impugnar perante o Tribunal Constitucional o despacho de pronúncia que contra si
foi proferido no Tribunal Judicial de Fafe, mediante a invocação de que seriam
inconstitucionais dois diplomas – a Lei nº 49/91 de 3 de Agosto e o Decreto-Lei
nº 390/91 de 10 de Outubro – e diversas proposições alegadamente extraídas de
'conjuntos normativos' do Código de Processo Penal.
Na decisão sumária em análise decidiu-se não conhecer do recurso assim
interposto, antes mesmo de verificar se ocorrem os demais pressupostos que
permitem o seu julgamento, designadamente quanto a saber se, em sede de
fiscalização concreta, é possível apreciar directamente diplomas jurídicos, e se
os ditos 'conjuntos normativos' são verdadeiramente normas jurídicas e não
juízos jurisdicionais, irrecorríveis nesta sede.
Considerou-se, em suma, que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da LTC só cabe de decisões finais adoptadas na ordem jurisdicional onde
corre o processo e que o despacho de pronúncia em questão, proferido nos termos
do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, não constitui uma decisão
final para efeito de poder ser interposto recurso de inconstitucionalidade.
É contra este entendimento que se manifesta o arguido ora reclamante.
Mas sem razão.
Na verdade, há que reiterar que a intervenção do Tribunal Constitucional, quanto
ao recurso previsto na aludida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, é
reservada àqueles casos em que a decisão neles proferida é a decisão final.
Fica, por isso, excluído esse recurso nos casos em que a norma é aplicada a
título precário ou provisório, sujeito a confirmação posterior, como acontece no
caso em presença. Com efeito, afigura-se manifesto que pela forma como o
legislador disciplinou as regras do processo penal, a 'decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público',
não produz, ipso facto, alteração na esfera jurídica do acusado, pois tem uma
dupla função de natureza marcadamente garantística: a de comprovar a acusação do
Ministério Público e a de limitar o campo de conhecimento do tribunal de
julgamento. Os juízos operados quanto à selecção dos factos adquiridos e sua
qualificação jurídica, quanto à escolha do direito aplicável e quanto à
regularidade das provas – e é basicamente nisto que consiste a pronúncia do
arguido – só são verdadeiramente efectivos quando são adoptados pelo tribunal do
julgamento, na sua sentença, o que, aliás, permite explicar a opção do
legislador quanto à proibição de recurso ordinário da referida decisão.
O sistema adoptado no nosso Código de Processo Penal radica exactamente em tese
oposta à que é defendida pelo recorrente: a lei 'desvaloriza' a força jurídica
do despacho de pronúncia formulado nas referidas condições, ao impor a sua
irrecorribilidade, e transfere para uma fase posterior – a fase de julgamento –
a obrigação de o tribunal proceder à apreciação, com força de determinação
jurídica, de toda a matéria de que a pronuncia conhece. Tal tarefa abrange a
selecção dos factos incriminadores e da norma penal aplicável, e obriga a
conhecer das nulidades opostas à prova produzida, conforme resulta, sem margem
para dúvida, do n.ºs 2 e 3 do artigo 310º do Código de Processo Penal e do
disposto nos preceitos que regulam os requisitos da sentença (artigos 374º e
seguintes). Esta solução respeita a imposição constitucional quanto ao
estabelecimento de um sistema de garantias que protejam o arguido contra
acusações infundadas e ilegais; e deve reconhecer-se que a Constituição – tal
como o Tribunal por diversas vezes tem afirmado – não pretende garantir o
direito a não ser submetido a julgamento.
Neste contexto, o argumento da inutilidade da intervenção do Tribunal
Constitucional é um argumento impressivo que evidencia a inoportunidade da sua
intervenção nesta fase processual; seria, na verdade, indiscutivelmente inútil a
pronúncia do Tribunal quanto a normas que, afinal, o tribunal comum decidisse
não usar por entender que não ocorreriam os respectivos pressupostos de
aplicação.
Os restantes argumentos do arguido reclamante visam estimular uma reacção de
natureza intuitiva contra a eventualidade da ocorrência das 'maiores
arbitrariedades' que ficariam necessariamente incólumes por causa da não
intervenção do Tribunal Constitucional – assim colocado no papel de tribunal de
instância – nesta fase processual. Mas, tais razões são aqui deslocadas, pois
revertem-se essencialmente na norma do Código de Processo Penal – que o
recorrente não põe em causa – que proíbe o recurso ordinário destas decisões.
Assim, perante a evidência do sofisma, nada mais restará do que devolver ao
reclamante o qualificativo quanto a 'conclusões clamorosamente absurdas', nelas
incluindo a pretensa inconstitucionalidade da 'interpretação restritiva do
conjunto normativo formado pelos arts 70.º, nºs 1, alínea b) e 72º, nº 2, da LTC
sancionada pelo despacho', tese que, ao requerer na respectiva formulação um
juízo de certeza quanto a 'afectar directa e imediatamente direitos e garantias
fundamentais do Arguido', se destrói a si própria por ser manifesto que a
aplicação da norma não produz tal consequência.
6.
O Ministério Público começa por recordar, no seu parecer, que o Tribunal tem
efectivamente recusado conhecer de recursos interpostos de decisões puramente
precárias, essencialmente tomadas no âmbito dos procedimento cautelares cíveis,
desprovidas, em suma, de carácter imperativo. Mas manifesta 'fundadas reservas'
a que um tal entendimento se possa estender 'irrestritamente' ao processo penal,
nas fases preliminares ao julgamento; e entende, mesmo, que 'o acesso ao
Tribunal Constitucional, na sequência da prolação da pronúncia, tem evidentes e
relevantes reflexos na estratégia de defesa do arguido, permitindo-lhe
antecipar, no caso de interpretações normativas inconstitucionais, se as provas
poderão ou não ser utilizadas contra ele na fase de julgamento – não ocorrendo,
deste modo, qualquer inutilidade ou esvaziamento das finalidades típicas do
controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional.'
É preciso começar por fazer notar que a decisão sumária em crise não visou – nem
tal podia ser – 'estender irrestritamente ao processo penal, nas fases
preliminares ao julgamento' a jurisprudência do Tribunal quanto à
impossibilidade de conhecer de recursos interpostos em processos cautelares. Na
verdade, estamos em presença de um caso concreto, de um recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC do despacho de pronúncia
emitido pelo juiz de instrução no Tribunal de Fafe. A decisão de rejeitar o
recurso fundou-se na constatação de que as normas impugnadas foram aplicadas em
decisão sem carácter imperativo, ficando sujeitas a posterior ponderação que
lhes confira uma efectiva aplicação.
7.
O parecer sugere, todavia, um outro nível de considerações a propósito do modelo
legal em que o Tribunal se move nesta área de fiscalização concreta de
inconstitucionalidade de normas aplicadas nas decisões definitivas dos
tribunais.
Seria perfeitamente concebível um outro modelo de intervenção do Tribunal
Constitucional. Na verdade, na área da fiscalização concreta e, até, no acesso à
protecção dos chamados direitos fundamentais, seria pensável um sistema no qual
coubesse ao Tribunal o 'acompanhamento' próximo, cautelar, directo, não só da
actuação dos tribunais, como das demais autoridades públicas, sistema que
certamente haveria de proporcionar 'evidentes e relevantes reflexos na
estratégia de defesa do arguido, permitindo-lhe antecipar, no caso de
interpretações normativas inconstitucionais, se as provas poderão ou não ser
utilizadas contra ele na fase de julgamento'.
Simplesmente, esse não é o modelo do recurso de inconstitucionalidade previsto
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, nem essa é a fórmula que o
legislador – neste se incluindo o legislador constitucional – desenhou para
caracterizar a actividade do Tribunal Constitucional.
Ao definir o meio para provocar a intervenção do Tribunal Constitucional como um
recurso, assim rejeitando, por exemplo, as figuras do reenvio prejudicial, ou
até da queixa constitucional directa, o legislador pretendeu, essencialmente,
garantir o acesso directo dos tribunais à Constituição, impondo-lhes o dever de
apreciarem e decidirem, em primeira linha e em toda a sua extensão, as questões
de inconstitucionalidade levantadas pelas partes; assim se explicam as
exigências quanto à prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade e
quanto ao carácter definitivo da decisão jurisdicional recorrível para o
Tribunal Constitucional.
Conforme dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada,
Vol. III, Coimbra Editora, em anotação ao artigo 280.º (p. 754):
“ Diz-se, na verdade, que, na medida em que o sistema está exclusivamente
dirigido à fiscalização de normas, o controlo do Tribunal Constitucional não
está configurado constitucionalmente para controlar as intervenções ablativas
nas liberdades e direitos fundamentais praticadas pela Administração e pelo
poder judicial, não abrangendo por isso a esmagadora maioria das situações reais
de ofensa de direitos fundamentais. (…)
Naturalmente, em face dos limites de um controlo da constitucionalidade centrado
exclusivamente em normas jurídicas, pode ponderar-se a introdução de mecanismos
complementares de selecção dos recursos de constitucionalidade (...). Todavia,
não apresentando, apesar de tudo, o sistema português um défice significativo de
protecção em face das violações de direitos fundamentais praticados pelo poder
jurisdicional, e sendo já hoje o nosso Tribunal Constitucional um tribunal do
cidadão, não se pode olvidar que os custos advenientes da consagração em geral
de uma espécie de queixa constitucional ou de recurso de amparo (v.g. lentidão
da justiça e risco de inundação do Tribunal Constitucional com queixas
constitucionais ou recursos de amparo) são provavelmente superiores às vantagens
que poderiam resultar da adopção de uma solução desse tipo Noutro plano, além de
constituir um novo foco de conflito entre o Tribunal Constitucional e os demais
tribunais, a introdução de uma acção constitucional de defesa dos direitos
fundamentais menosprezaria a circunstância de o regime misto de fiscalização da
constitucionalidade consagrada em Portugal já consagrar o acesso pleno dos
cidadãos a órgãos de justiça constitucional para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos (n.º 1 do artigo 20.º e n.ºs 4 e 5 do artigo
268.º da Constituição). Efectivamente, os tribunais em geral são, igualmente,
órgãos de justiça constitucional, estando também vocacionados para assegurar uma
protecção plena dos direitos fundamentais dos particulares. Sem dúvida que o
problema assume especial gravidade quando estejam em causa violações de direitos
fundamentais causadas directamente por decisões jurisdicionais proferidas em
última instância. Mas, bem vistas as coisas, o argumento vale igualmente em
relação às decisões do Tribunal Constitucional, pois este órgão também não é
infalível e pode incorrer em vícios idênticos”.
(…) o n.º 3 do artigo 223.º da Constituição não tolera soluções legais que
subvertam o sistema de repartição de competências entre o Tribunal
Constitucional e os demais tribunais gizado pela Lei Fundamental. Ora, e este
aspecto parece claro, a introdução de uma queixa constitucional ou de um recurso
de amparo contra decisões jurisdicionais modifica substancialmente as relações
entre o Tribunal Constitucional e os demais tribunais (Rui Medeiros, A decisão
de inconstitucionalidade, pág. 359).”
Ora, o sistema que permite antecipar uma solução jurídica ditada pelo Tribunal
Constitucional antes mesmo que o tribunal comum a possa conhecer numa decisão
definitiva, assenta numa ideia que vincula o Tribunal Constitucional à protecção
directa de direitos fundamentais, como sua principal tarefa, no qual o Tribunal
joga o papel de único ou principal protagonista na garantia de protecção
jurisdicional desses direitos, mas que constitui, justamente, o sistema que o
legislador português quis afastar. Pelo contrário, o nosso modelo estende a
tarefa de protecção dos direitos fundamentais a todo o leque das instâncias
jurisdicionais, reservando unicamente ao Tribunal Constitucional a última
palavra quanto à interpretação e aplicação individualizada dos princípios
fixados na Constituição, usados como parâmetro ou critério de aferição face a
normas jurídicas aplicadas nas decisões dos tribunais.
Nada, portanto, mais longe desta realidade que um modelo que fizesse intervir o
Tribunal Constitucional na fase de emissão do despacho de pronúncia em nome dos
'reflexos na estratégia de defesa do arguido', onde se cruzam interesses muito
mais imediatos e práticos do que aqueles que compete ao Tribunal Constitucional
apreciar.
Acresce que, no caso presente, o legislador teve a preocupação – que
inequivocamente resulta, por exemplo, da referida regra da não recorribilidade
do despacho de pronuncia – de impor celeridade processual na fase em que o
arguido pronunciado aguarda julgamento. Esta preocupação radica num interesse
que a Constituição protege no seu artigo 20º n.º 4, sendo por isso perfeitamente
legítima, pelo deve ser acatada e respeitada; e seria incompatível com este
princípio abrir uma fase processual destinada à intervenção do Tribunal
Constitucional, ao menos nos casos – como o presente – em que o recurso é
interposto directamente, sem mediação de um tribunal de recurso.
8.
Posto isto, cumpre assinalar não serem legítimas as dúvidas – de resto, mais
sugeridas do que manifestadas – quanto à natureza processual do despacho de
pronúncia, o qual, não constituindo caso julgado, garante total liberdade de
decisão ao juiz do julgamento quanto à valoração das provas produzidas, quanto à
fixação dos factos provados e à sua qualificação jurídica, assim como na escolha
do direito que julgar aplicável a esta matéria. É nesta actividade que se
concretiza o princípio da liberdade de julgamento que a nossa lei pretende
consagrar (artigos 368º e ss do Código de Processo Penal.
Diz-se no n.º 1 do artigo 310º deste Código: 'A decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público,
formulada nos termos do artigo 283º ou do n.º 4 do artigo 285º, é irrecorrível,
mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou
incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente
para o julgamento.'
É este despacho, que a lei processual penal declara irrecorrível, que o
reclamante pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional, por via da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Ora, pelas apontadas razões, o Tribunal
entende que não deve conhecer de um tal recurso.
III
Decisão
9.
Em consequência, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada e indeferir a
reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 22 de Julho de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão
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