Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 02-06-2016   Inquérito. Competência Internacional dos Tribunais Portugueses
1. Não tem o Ministério Público competência para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, nesse mesmo País.
2. Das normas contidas no art. 32.º do Código de Processo Penal, resulta que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao final do trânsito em julgado da decisão final.
3. O tribunal deve declarar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos arts. 4.º a 6.º do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, com as consequências legais dela resultantes – absolvição da instância.
Proc. 208/13.9TELSB-D.L1 9ª Secção
Desembargadores:  Maria da Luz Batista - Cláudio Ximenes - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Recurso n. ° 208/13.9TELSB-D.LI
9.a Secção TCIC
Acordam em conferência os juízes na Secção Criminal (9.ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
No processo comum nuipc.° 208/13.9TELSB-D.L1 do Tribunal Central de Instrução Criminal, (…), não se conformando com a decisão proferida pelo Mmo juiz de instrução junto do Tribunal Central de Instrução Criminal pelo qual “... se declarou incompetente para conhecer da arguida excepção de incompetência absoluta dos Tribunais portugueses e do Ministério Público para prosseguir as investigações em Portugal atento o arquivamento do inquérito preliminar que sob o n.° 06-A/2012 correu os respectivos termos na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria Geral da República de Angola onde foi visado pelos mesmos alegados factos, todos supostamente ocorridos em Angola, e não tendo sido denunciado no âmbito dos presentes autos... dela veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as conclusões que aqui se dão por reproduzidas, alegando, em síntese, que foram violadas as normas e os princípios ínsitos nos art.s 2°, 13°, 32°, 202° e 204°, da Constituição da República Portuguesa, no art. 8°, do Código Civil, no art. 4°, do Código de Processo Penal, e nos arts 96°, 97° e 99°, do Código de Processo Civil.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira

instância respondeu concluindo que deve o recurso ser julgado procedente devendo ser o despacho recorrido revogado e devendo ser determinado ao M.mo juiz a quo que aprecie do mérito do requerimento apresentado e que sobre o mesmo profira decisão.

Neste Tribunal o Exm° Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao artigo 417.° n.° 2 do C.P.Penal existindo resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Os presentes autos emergiram de certidão extraída do inquérito n.° 142/12.OTELSB em consequência do instituto da separação de processos.

O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n.° 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentada por (…), cidadão de nacionalidade angolana, queixa inicial e aditamento onde o ora recorrente não é denunciado, nem sequer mencionado.

Em 6 de Janeiro de 2012, ao abrigo do disposto nos Art.°s 73.° da Constituição da República de Angola e 32.° da Lei n.° 3/10, de 29 de Março, isto é, a denominada Lei da Probidade Pública, da República de Angola, o aqui assistente (…) apresentou, em Angola, denúncia contra, entre outros, o ora recorrente.
Posteriormente, o assistente veio juntar aos presentes autos cópia da queixa que, em Angola, apresentou contra o recorrente e outros e que ali deu origem ao inquérito preliminar que sob o n.° 06-A/2012 correu os respectivos termos na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria Geral da República de Angola.

Após a realização do respectivo inquérito preliminar na Procuradoria-Geral da República de Angola e a realização das diligências reputadas úteis, a referida queixa foi, no passado dia 7 de Fevereiro de 2013, objecto de despacho de arquivamento.

A certidão daquele douto despacho de arquivamento está junta aos presentes autos.
Os factos denunciados teriam ocorridos em Angola e unicamente Angola e consubstanciariam em tese o crime precedente de branqueamento de capitais especificamente exigido pela lei portuguesa;

Antes mais, cabe referenciar ter a juíza desembargadora relatora destes autos sido coautora e subscritora de recente acórdão tirado por unanimidade em 26-03-2015 no processo 147/13.3 TELSB-9 (inserido em www.dgsi.pt) em questão em tudo semelhante ao dos presentes autos.

No mesmo se escreveu, na parte relevante, que:

Os factos que deram origem aos presentes autos têm, pois, nessa parte, definido o seu lugar de consumação em País soberano, com o qual Portugal assinou Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal no âmbito da CPLP, em 23 de Novembro de 2005.

A primeira conclusão a retirar deste facto é a de que tendo os presentes autos partido de uma denúncia apresentada contra o aqui recorrente, cidadão angolano com residência em Luanda, por alegados factos ocorridos, supostamente, em Angola, não tem o M°P° português competência para abrir inquérito aos referidos factos.

Com efeito, a competência internacional dos Tribunais Portugueses encontra-se definida nos art°s 4 ° a 6° do Código Penal.

Como refere Pinto de Albuquerque em anotação ao art° 5° ... a aplicação espacial do direito penal a factos cometidos fora do território nacional assenta em cinco princípios: da nacionalidade, da defesa dos interesses nacionais, da universalidade, da administração supletiva da lei nacional e da aplicação convencional.

Nos termos do princípio da nacionalidade, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes cometidos pelos seus nacionais ou contra os seus nacionais, independentemente do lugar onde tenham sido cometidos.

Nos termos do princípio da defesa dos interesses nacionais, o estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.
Este princípio tem natureza complementar.
Nos termos do princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.

A reforma do C.P. de 1998 introduziu o princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.

Nos termos do princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional... in anotações ao referido art° 5° Comentário do Código Penal.

No caso vertente, o Estado Português poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (art° 159°), tráfico de pessoas (160°), rapto (161 °), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (art°s 171 ° e 172°) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175° e 176°) danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.

Ora, das informações trocadas posteriormente à denúncia apresentada inicialmente, por factos ilícitos ocorridos em Angola, e para cuja investigação o M°P° só seria, a nosso ver, competente, a pedido das autoridades angolanas, resulta ainda que os factos a que as autoridades portuguesas atribuem os proventos ilícitos obtidos pelo recorrente são objecto de um processo no BRASIL, processo esse com acusação deduzida.

O mandado de captura internacional foi, contudo, revogado pelo Tribunal superior.
Aliás, o despacho recorrido faz menção ao BRASIL e às investigações que aí decorrem.

Por outro lado, o M°P° faz ainda menção ao processo que correu termos em França onde indivíduos alegadamente ligadas ao recorrente transportavam dinheiro vivo, em viaturas de matrícula portuguesa, supostamente destinado ao Mónaco.

Quer isto dizer que os factos a que o detentor da acção penal atribui os proventos ilícitos de que o recorrente terá alegadamente beneficiado resultam, segundo o mesmo detentor da acção penal, de factos que se encontram a ser investigados, e que são objecto de processos em Países soberanos terceiros, um deles subscritor (Brasil) da mesma convenção de auxílio judiciário em matéria penal no âmbito da CPLP.
Logo, a prossecução da acção penal em Portugal viola o princípio do “ ne bis in idem , segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime, e do qual resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal no caso de o agente ter sido absolvido pelo Tribunal do estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena.
o ne bis in idem será, porventura, um dos princípios mais importantes e estruturantes de qualquer Estado de direito e do respectivo direito processual penal. Hassemer afirma mesmo que este princípio faz parte integrante dos direitos fundamentais processuais que são indisponíveis, no sentido de insusceptíveis de ponderação.

Um princípio desta importância deveria ter, após séculos, os seus contornos bem definidos... in Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, Vânia Costa Ramos, Ne bis in idem ...

Ora, decorrendo, segundo o detentor da acção penal, tais proventos de acções ilícitas em Países soberanos terceiros, cabe a esses Países, um deles subscritor da Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal, quer com Portugal, quer com Angola, pedir, se assim o entender, a apreensão dos bens que se vier a provar terem sido adquiridos em resultado da alegada actuação ilícita do recorrente.

É certo que a decisão recorrida fundamenta a apreensão cautelar das contas bancárias do recorrente no facto de o mesmo estar a ser investigado ainda pela alegada prática de branqueamento de capitais decorrentes dessas alegadas actividades ilícitas no Brasil, Angola e França, actividade essa ocorrida em Portugal.

Todavia, tal como o objecto do processo se encontra delimitado, essa apreensão cautelar teria de ser pedida pelas autoridades desses países, no âmbito dos respectivos processos, sob pena de violação do ne bis in idem , caso tivessem indícios suficientes que pudessem fundamentar tal pedido. - Decisão Quadro 2003/577/JAI, de 22 de Julho relativa à execução na União Europeia das decisões de congelamento de bens ou de provas, que a Lei n° 25/2009 veio a designar por decisão de apreensão - ` freezing order .

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que ... o Estado Português se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata ...da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de carácter jurídico penal, (sublinhado nosso).
Do que se trata é antes - e só - do reconhecimento do carácter supra nacional de certos bens jurídicos e que por conseguinte, apelam para a sua protecção a nível mundial. Deste modo, aponta Jescheck... como fundamentos do princípio, a solidariedade do mundo cultural face ao delito e a luta contra a delinquência internacional perigosa .

Neste sentido, vai logo o art° 5°, lb) ... ordenando a aplicação da lei penal portuguesa a crime que tutelam bens jurídicos carecidos de protecção internacional ... mas .... submete todavia a aplicação da lei penal portuguesa a uma dupla condição: que o agente seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado in Direito Penal, Tomo 1, Parte Geral, 9° capítulo, pág. 227 ...
E prossegue o mesmo Professor na obra citada, pág 229, III

o carácter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação extraterritorial da lei penal portuguesa revela-se ... na circunstância de ... a aplicação só ter lugar... quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação (art° 6°/1).

Trata-se aqui, antes de mais, de respeitar o princípio constitucional ne bis in idem segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (CRP art° 29°, 5) até porque uma tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para todas as pessoas e para todos os Tribunais, não apenas para cidadãos portugueses e para julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses.
(...)

Como ensina o Conselheiro Maia Gonçalves in CPP anotado... as regras do art° 19° e seguintes daquele diploma não se aplicam à competência internacional dos Tribunais Portugueses, ou seja, à aplicação no espaço da lei penal portuguesa, a qual é regulada nos art°s 4° a 6° do Código Penal. In nota 7 ao art° 19° citado.

De harmonia com o disposto nos art°s 4° do CPP e 96° do Código do Processo Civil actualizado, ... determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional,

A incompetência absoluta deve ser conhecida pelo Tribunal oficiosamente... art° 97° do CPC e implica a absolvição da instância - art° 99° do CPC.

Ora, analisado o despacho recorrido, verifica-se que a mesma decisão extrai de factos que ligam pessoas, e sociedades entre si, e à aquisição de imóveis em Portugal, a conclusão de que essas sociedades serviram para fazer circular dinheiro que adviria de actividades que constituem objecto de processo em País soberano, pelo simples facto de ter conhecimento de que existe um processo contra o recorrente.

O recorrente não foi constituído arguido, não foi ouvido sobre tais factos - os que constituíram o alegado branqueamento, e foi objecto de medida de apreensão de quantias constantes de contas bancárias ao abrigo do art° 181° do Código do Processo penal.
A nosso ver, mal.
Não só a aplicação do princípio do ne bis in idem impunha que se aguardasse o desfecho do processo a decorrer e que se terminar em absolvição impedirá novo processo em Portugal, como o aqui recorrente fez prova documental de que exerce em Angola, várias actividades ligadas à construção civil e ao comércio de diamantes, entre outras, actividades essas geradoras de fluxos consideráveis de dinheiro.... .

Em síntese conclusiva:

- O recorrente apresentou requerimento ao M.mo juiz de instrução, deduzindo a incompetência internacional em matéria penal dos tribunais portugueses.

- Esse requerimento mereceu despacho que se reconduz ao não conhecimento do mérito da questão que foi colocada à apreciação do tribunal: a de saber-se se os tribunais portugueses, em particular, o TCIC, é competente para conhecer dos factos que, para já, perfazem o objeto do presente inquérito.

- Das normas contidas no art. 32.° do Código de Processo Penal, resulta que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.

Ora, se assim é, então caberia ao M.mo juiz a quo ter conhecido da incompetência deduzida pelo recorrente, uma vez que se está perante um inquérito onde já existiu intervenção jurisdicional.

É certo que, no caso dos autos, o recorrente não assume a qualidade de sujeito processual, não tendo sido, ainda, constituído arguido, a nosso ver, mal.

Efectivamente, a Lei n° 48/2007, conquanto mantenha a obrigatoriedade da constituição como arguido, faz uma importante restrição; isto é, restringe aquela obrigatoriedade ao caso em que haja fundada suspeita de uma pessoa ter praticado um crime.

A ratio da Lei é a mesma que orientou a modificação do art. 58° n° 1, al. a), isto é, evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o MP desde logo, vislumbra a possibilidade de arquivar e arquiva o Inquérito - o que não foi o caso.

A questão da incompetência deduzida pelo recorrente está, deste modo, sub judice, cabendo a este Tribunal de recurso pronunciar-se sobre a mesma.

DECISÃO

Por todo o exposto, delibera este tribunal ad quem:

- Declarar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos art°s 4° a 6° do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, (…), nesse mesmo País, com as consequências legais dela resultantes - absolvição da instância.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Junho de 2016

Relatora: Maria da Luz Baptista
Adjunto: Cláudio de Jesus Ximenes


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