Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 28-09-2023   A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha, nos termos do artigo 133.º/1 alínea a) do C.P.P.
(da inteira responsabilidade da relatora)
I. A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha, nos termos do artigo 133.º/1 alínea a) Código de Processo Penal tem como fundamento essencial a ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a também chamada prerrogativa da não auto-incriminação.
II. O que visa esta norma é a protecção do próprio arguido, como tal constituído e que mantenha esse estatuto, no momento em que é chamado a depor, que assim fica excluído da obrigação de depor como testemunha, se como tal for indicado, e liberto ainda dos deveres de prestação de depoimento e de o fazer com verdade sob pena de ser sancionado criminalmente.
III. Tendo, em relação a si o processo terminado com o decurso do prazo da suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos 281.º e 282.º Código de Processo Penal, nada impede a sua inquirição, no mesmo processo, como testemunha, no julgamento de outros co-arguidos.
Proc. 2/16.5GMLSB.L1 9ª Secção
Desembargadores:  Maria João Ferreira Lopes - Jorge Manuel Rosas de Castro - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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PC nº 2/16.5GMLSB
Acordam, em conferência, na 9 ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. No decurso da audiência de julgamento nos presentes autos foram proferidos, em acta, nos dias 22.10.2020 (8ª e 9ª Sessões de julgamento), 26.10.2020 (10ª Sessão de julgamento) despachos de idêntico teor, relativamente a 12 testemunhas da acusação convocadas para as sessões mencionadas, com o seguinte teor:
“A testemunha acabada de identificar foi constituída como arguida na fase de inquérito e, no final do inquérito, o Ministério Público optou pela suspensão provisória do processo e pelo ulterior arquivamento relativamente a esta pessoa.
Porquanto, julga-se verificado o impedimento relativo de intervir e depor como testemunha previsto no art. 133.º, n.º 2, do CPP, ficando a mesma desobrigada de o fazer porque nisso não consentiu expressamente nesta audiência.”
2. A seguir à prolação do primeiro destes despachos, ditou o MP para a acta o seguinte:
Não se conformando o Ministério Público com o ora determinado pelo Mm° Juiz Presidente, que dispensou o depoimento da testemunha DJF, não a tendo chegado a ouvir, por ter considerado que esta, em razão da pretérita qualidade de arguida de que esteve investida na fase de inquérito deste processo – que findou, quanto a ela, com um arquivamento definitivo dos autos por via da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo – estava impedida de depor neste julgamento como testemunha a menos que nisso expressamente consentisse, advertência que lhe foi feita antes do depoimento e visto que a testemunha optou por não prestar declarações e porque tal decisão integra a nulidade prevista na alínea d) do n° 2 do art.° 120°, do CPP, por constituir omissão de diligência que se reputa essencial para a descoberta da verdade, e viola também, a nosso ver, claramente, o disposto no art.° 133°, n° 1, al. a), do CPP, uma vez que a testemunha não reveste actualmente a qualidade de arguida e as declarações que viesse a prestar em julgamento sobre a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar nenhuma repercussão poderiam ter criminalmente contra si, por o processo não poder ser reaberto, e porque ao decidir nos termos em que decidiu o Mm° Juiz Presidente impediu que com o seu depoimento a testemunha contribuísse, conforme já assinalado, para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, desde já declara o MP que desta decisão interpõe recurso, a subir a final e nos próprios autos, sem prejuízo da oportuna junção da respectiva motivação.
3. Seguidamente a cada um dos despachos acima assinalados a Digna Procuradora da República renovou o requerimento anteriormente feito e acabado de transcrever.
4. Na sessão de 02-11-2020 (11ª Sessão de julgamento) relativamente a uma testemunha de acusação convocada para aquela sessão de julgamento foi proferido o despacho que a seguir se transcreve:
“A testemunha acabada de identificar foi constituída como arguido na fase de inquérito relativamente a factos típicos previstos na Lei do Jogo (DL 422/89) que vieram a integrar parcialmente o objecto da acusação deduzida nos presentes autos.
Efectivamente, no final do inquérito, o Ministério Público veio a reunir prova indiciária suficiente para a imputação criminal relativamente a esta pessoa e optou pela suspensão provisória do processo pelo período de 15 dias.
Posteriormente, decorridos 45 dias sobre a referida decisão, o Ministério Público, no mesmo despacho, arquivou previamente o presente procedimento criminal relativamente àquela nos termos do art. 282.°, n.° 3, do CPP e
passou a deduzir acusação contra aqueles que já figuravam como co-arguidos no mesmíssimo processo, arrolando aquela pessoa como testemunha para intervir neste julgamento.
Porém, à semelhança dos arguidos que vêem a sua situação ser resolvida mais depressa em processo separado relativamente ao mesmo crime ou crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, este ex-arguido, que viu a sua situação ser resolvida mais cedo no mesmo processo e que agora foi arrolado como testemunha, também só poderá depor como tal se nisso expressamente consentir (interpretação extensiva, por identidade de razão, do art. 133.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Reforma Penal de 2007).
O arguido não pode ser obrigado a falar com verdade sobre factos relativos à sua própria responsabilidade criminal consoante as fases do processo e a “manipulação” pretensamente lícita que venha a ser feita do seu estatuto processual de arguido ao longo do processo, inclusivamente com consequências criminais no plano da falsidade do depoimento, pois tal consubstanciaria uma violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana consagrado no art. 1.º da CRP e tal não foi a opção do legislador penal ordinário.
Mesmo nos casos de arquivamento no final do inquérito, em virtude da suspensão provisória do processo, tal situação justifica a ultra-actividade do estatuto processual de arguido para efeito da aferição da existência de eventual impedimento relativo a intervir no julgamento como testemunha relativamente aos co-arguidos que o acompanharam na fase de inquérito. A unidade e a coerência interna do sistema jurídico processual impõem que os outrora co-arguidos sejam para sempre co-arguidos entre si na sua relação com os factos típicos sob julgamento relativamente aos quais não são terceiros, sobretudo quando chegam a julgamento.
Não se venha falar, neste caso específico de arquivamento por virtude de suspensão provisória do processo, da inexistência distintiva de qualquer prejuízo para esta “testemunha”, ao contrário do que poderia suceder com a intervenção como testemunha do arguido já julgado e condenado, que ficaria sob a incidência de eventual interposição de recurso extraordinário de revisão, pois, mesmo no caso dos arguidos condenados por decisão transitada em julgado, a Constituição impede a renovação do procedimento penal em prejuízo da mesma pessoa (art. 29.º, n.º 5, da CRP).
O resultado hermenêutico agora alcançado torna-se mais evidente quando temos neste julgamento um co-arguido – nomeadamente o arguido PL - que não aceitou a suspensão provisória do processo no final do inquérito e continua a gozar do direito ao silêncio porque veio a ser acusado no mesmo processo pelo Ministério Público.
Porquanto, julga-se verificado o impedimento relativo de intervir e depor como testemunha previsto no art. 133.º, n.º 2, do CPP, ficando a mesma desobrigada de o fazer porque nisso não consentiu expressamente nesta audiência.”
5. A Digna Procuradora da República também relativamente a este despacho interpôs recurso em acta, remetendo para os fundamentos dos demais recursos já interpostos.
6. A Digna Procuradora da República apresentou, depois, a motivação dos recursos interpostos, pedindo a revogação das ditas decisões e substituição por outra em que se conclua que, por não estarem as testemunhas acima indicadas abrangidas pelo impedimento relativo previsto no art.0 1330, n0 2, do CPP, não cumpria obter o seu consentimento, antes se impondo colher o seu depoimento a que, de resto, estão legalmente obrigadas nos termos do art.0 1320, do CPP, por tal ser imprescindível para a descoberta da verdade.
Rematou o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“1. A presente motivação, porque subordinada a uma e à mesma questão de direito, é comum aos treze recursos interpostos, nos termos do disposto no art.° 411°, n° 1, al. c) e n° 3, segunda parte, do CPP, dos doutos despachos proferidos em acta pelo Mm° Juiz Presidente nos dias 22.10.2020 (8ª e 9ª Sessões de julgamento), 26.10.2020 (10ª Sessão de julgamento) e 02.11.2020 (11ª Sessão de julgamento), quando julgou verificado o impedimento relativo previsto no art.° 133°, n° 2, do CPP, relativamente a 13 testemunhas da acusação convocadas, respectivamente, para aquelas datas, por na anterior fase de inquérito deste processo – que findou quanto a todas as testemunhas sem excepção por um despacho de arquivamento definitivo dos autos por aplicação do instituto da suspensão provisória do processo nos termos do art.° 282°, n° 3, do CPP –, terem sido constituídas arguidas e não terem prestado em audiência o seu consentimento para depor na qualidade de testemunhas depois de previamente advertidas pelo tribunal de que não estavam obrigadas a depor a menos que nisso expressamente consentissem;
2. Na sequência do entendimento assim perfilhado foram todas as 13 testemunhas, que se encontravam nessas condições, dispensadas de prestar declarações, a saber:
- DJF
- DMC
- ARP
- CCA
- LMR
- JFS
- ADS
- PAP
- AFN
- JLS
- MJA
- JPM
- JMS
3. Os despachos proferidos em acta com os referidos fundamentos, em que se prescindiu do depoimento de 13 testemunhas da acusação, estão feridos da nulidade prevista na alínea d) do n° 2 do art.° 120°, do CPP, por tal constituir omissão de diligências que se reputam essenciais para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, tanto mais quanto certo é que nesta audiência de discussão e julgamento os arguidos que estão a ser julgados e contra quem tais depoimentos podiam reverter, optaram por adoptar uma atitude silente;
4. Circunscreve-se, por isso, o inconformismo do MINISTÉRIO PÚBLICO ao decidido pelo Tribunal a quo quando, nas situações aqui sub judice, julgou erradamente verificado, relativamente a cada uma das supra-identificadas testemunhas, o impedimento relativo previsto no art.° 133°, n° 2, do CPP;
5. Sucede, porém, que ao subscrever aquele entendimento e não obstante o muito respeito que nos merece, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no art.° 133°, n° 2, do CPP, uma vez que, se por um lado, as treze testemunhas indicadas pela acusação não revestiam a qualidade de arguidas no momento em que foram, respectivamente, chamadas a depor em julgamento, por os autos terem sido quanto a todas, sem excepção, arquivados na fase de inquérito por força da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não podendo, fosse a que título fosse e independentemente das declarações que tais pessoas viessem a prestar em julgamento, voltar a ser reabertos contra elas – art.° 282°, n° 3, do CPP – , por outro lado, não revestindo nesse momento a qualidade de arguidas e não se encontrando, por isso, impedidas de depor como testemunhas, também não cabia, por ser irrelevante, perguntar-lhes previamente se nisso consentiam;
6. Todas as testemunhas em apreço foram constituídas arguidas nos autos;
7. Todas estas pessoas foram indiciadas ou por crimes de prática ilícita de jogo ou por crimes de presença em local de jogo ilícito ou por crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos artigos 108°, n° 2, 110° e 111° do DL n° 422/89, de 02.12;
8. A todas estas pessoas foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo com fundamento no disposto no art.° 281°, do CPP, e determinado, em 21.12.2018, e em momento prévio à dedução da acusação contra os demais arguidos, o arquivamento dos autos, nos termos do art.° 282°, n° 3, do CPP, em face do cumprimento das injunções impostas;
9. Tal como expressamente previsto pelo n° 3 do art.° 282°, do CPP, o processo arquivado com tal fundamento não pode ser reaberto;
10. Estas pessoas perderam, por isso, definitivamente, a qualidade de arguidos com o arquivamento dos autos contra si instaurados;
11. Assim sendo, a cessação do impedimento (que existiu enquanto subsistiu a qualidade de arguidos) a depor nos autos como testemunhas ocorreu, simultaneamente, com a cessação definitiva dessa qualidade;
12. Uma vez cessada a qualidade de arguidos deixou de subsistir qualquer razão para que os depoimentos destas 13 testemunhas não fosse obrigatoriamente prestado sem necessidade do seu consentimento;
13. Ou seja, o regime do impedimento relativo previsto pelo n° 2 do art.° 133°, do CPP, é-lhes inaplicável tout court;
14. Com efeito, a qualidade de coarguido, pressuposta nos n°s 1 e 2 do art.° 133°, do CPP, resulta da circunstância de se responder criminalmente conjuntamente com outrem que nesse momento detém essa mesma qualidade;
15. Tal não era a situação das testemunhas dos autos;
16. Mercê da sua especial razão de ciência sobre a matéria dos jogos de fortuna ou azar e do crime de branqueamento, foram estas treze pessoas arroladas como testemunhas da acusação deduzida contra os demais arguidos, também, e além do mais, pela prática de jogo ilícito e branqueamento;
17. Ao aceitarem a sua culpa diminuta nos factos, na fase de inquérito, e ao sujeitarem-se ao cumprimento das injunções impostas, estas pessoas não só evitaram a sua submissão a julgamento, a sua condenação e o consequente registo criminal que se seguiria como alcançaram a garantia de uma solução processual insusceptível de vir a ser alterada e muito menos em seu desfavor;
18. Daí que as declarações que prestem em julgamento como testemunhas, para além de não as visarem a elas, senão muito colateralmente, pois que se centram nos factos típicos praticados pelos arguidos e só pelos arguidos em primeira linha, são insusceptíveis de produzir sobre si qualquer efeito auto-incriminatório útil capaz de reavivar o seu anterior estatuto processual de arguidos. São inteiramente, nesse particular, declarações sem consequências e que por isso não carecem da invocação dos efeitos da ultra-actividade conferida pelo ex- estatuto de arguidos;
19. Idêntica solução terá de ser alcançada sempre que o procedimento criminal respeitante a determinado arguido cesse por decisão absolutória transitada em julgado, desistência da queixa, ou mediante a concordância do ofendido e do arguido, nos termos previstos pelo art.° 206°, n° 1, do CP, ou quando o procedimento criminal seja extinto por prescrição (artigos 118° e 121°, n° 3, do CP) ou amnistia (artigos 127°, n° 1 e 128°, n° 2, primeira parte, do CP) ou ainda quando finde por arquivamento por dispensa da pena (art.° 280°, n°s 1 e 2, do CPP) ou ainda nos termos do art.° 277°, n° 1, do CPP, ou seja, sem possibilidade de reabertura do inquérito;
20. Em todas essas situações, a protecção da testemunha por via da ultra-actividade do seu extinto estatuto de arguido, enquanto expressão do privilégio contra a autoincriminação e do direito ao silêncio, perde a sua razão de ser, porque deixou de ser necessária: a testemunha não precisa se defender;
21. De outra forma, a norma adjectiva convocada pelo caso em apreço e a teleologia que a domina funcionaria apenas, e afinal, para favorecer incongruentemente os arguidos que estão sob julgamento e postergar a realização da justiça!
22. O dever de respeito pela liberdade de declaração, subjacente ao espírito da lei e ao impedimento relativo nela previsto, cessa, por isso, quando a protecção conferida à testemunha, ex-arguido, não seja reclamada pelas circunstâncias do caso concreto, ou seja, sempre que haja a garantia de que as declarações que venha a prestar contra outrem sejam insusceptíveis de comprometer a sua própria posição processual por não estarem associadas a quaisquer consequências criminais, contra-ordenacionais ou tutelares educativas que ao Estado importasse impulsionar;
23. Nestes casos, a obrigação de declarar contra si próprio está isenta de consequências, para além daquelas que são próprias da qualidade de testemunha por força do disposto no art.° 132°, do CPP;
24. E assim sucede, inequivocamente, para além dos casos acima enunciados sem preocupação de exaustão, sempre que, por aplicação do regime da suspensão provisória do processo, o procedimento criminal finde por arquivamento dos autos nos termos do art.° 282°, n° 3, ou do art.° 307°, n° 2, do CPP, consoante o processo esteja na fase de inquérito ou de instrução;
25. O processo penal tem em vista viabilizar a realização da justiça penal com o máximo aproveitamento possível de todo o material probatório, pelo que seria comunitariamente insuportável postergar tal valor em determinados casos, como o da recusa de audição e valoração dos depoimentos das testemunhas dos autos, sob o falacioso pretexto da violação da sua dignidade enquanto pessoas, nem se vislumbra em que medida tal pudesse suceder à luz do disposto nos artigos 125° e 126°, do CPP, e atento o enquadramento jurídico vindo de expor;
26. A inquirição destas 13 testemunhas, que têm conhecimento directo dos factos típicos que integram a prática dos crimes de exploração de jogo ilícito e de branqueamento por banda dos arguidos que estão sob julgamento, revela-se, pois, indispensável à descoberta da verdade;
27. Ao proferir as decisões recorridas, nos treze aludidos despachos, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação e de aplicação, o artigo 133°, n° 2, do CPP;
28. As decisões recorridas devem, pois, ser revogadas, e substituídas por outra em que se conclua que, por não estarem as testemunhas acima indicadas abrangidas pelo impedimento relativo previsto no art.° 133°, n° 2, do CPP, não cumpria obter o seu consentimento, antes se impondo colher o seu depoimento a que, de resto, estão legalmente obrigadas nos termos do art.° 132°, do CPP, por tal ser imprescindível para a descoberta da verdade.
(...)7. Tais recursos vieram a ser admitidos a 20-11-2020 e o arguido APA,
respondeu, pugnando rejeição do recurso por manifestamente improcedente e manutenção das decisões recorridas, tendo para tal, em síntese, apresentado as seguintes razões:
- o Ministério público em desde de audiência, aquando da interposição dos recursos invocou a violação do artigo 133.º/1, a) do CPP sendo que só no momento da apresentação das respectiva motivação mencionou a violação, pelas decisões recorridas, do estatuído no n.º 2 do mesmo artigo, colocando-se em questão da existência de um vício procedimental devido ao facto do Ministério Público invocar na sua motivação uma argumentação e uma base legal distintas das que invocou no requerimento em sede de audiência, alterando assim os fundamentos aduzidos para recorrer da decisão do Tribunal a quo;
- pelo que, ao invocar a violação, pelo Tribunal recorrido, do artigo 133.º, n.º 2 do C.P.P., o M.P. não acompanha o requerimento de interposição de recurso apresentado em audiência, uma vez que tinha sido o mesmo fundamentado com a violação do disposto no artigo 133.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P., com base no facto de as testemunhas não revestirem atualmente a qualidade de arguidos;
- devendo o recurso apresentado pelo Ministério Público ser rejeitado por manifesta improcedência, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P.;
- ignora o Ministério Público que, com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto ao artigo 133.º, n.º 2 do C.P.P., o preceito em questão passou a conter a expressão “mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado”, referindo-se assim, inequivocamente, a pessoas que já tenham assumido a qualidade de arguido em determinado processo, mas que posteriormente nesse mesmo processo já não o assumem, sendo que a introdução da dita expressão preceito do artigo, alterou substancialmente o seu âmbito;
- com a referida alteração legislativa, o legislador foi claro no sentido de que aquele que já não é arguido, mas foi anteriormente no mesmo processo ou em processo conexo, continua a beneficiar do direito ao silêncio que assiste a tal sujeito processual, não deixando assim “entrar pela janela o que se quis fazer sair pela porta”;
- a suspensão provisória do processo aplicada anteriormente aos arguidos e atuais 13 testemunhas sobre as quais incide o recurso interposto pelo Ministério Público equivale a uma decisão transitada em julgado após a separação de processos tal como vem tratada no n.º 2 do artigo 133.º do C.P.P., operando, por essa via, a possibilidade das referidas testemunhas só poderem depor se nisso expressamente consentirem, sendo que tal consentimento não ocorreu no caso dos autos;
- não tem provimento a nulidade invocada pelo Ministério Público, ao tentar sustentar que, por via dos despachos proferidos pelo Tribunal a quo, foram libertadas da obrigação de prestar depoimento 13 testemunhas da acusação, daí retirando que tais despachos se mostram feridos da nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do C.P.P., por tal constituir omissão de diligências que se reputam essenciais para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, sendo que o recorrente nem sequer fundamenta tal essencialidade, tendo, aliás, prescindido de outras duas testemunhas que se encontravam na mesma situação daquelas, conforme Ata da 19.ª Sessão datada de 03/12/2020;
- o Tribunal a quo limitou-se a aplicar uma norma legal que determina a verificação de um impedimento, não estando aqui em causa qualquer omissão de diligência, nos termos invocados pelo M.P.
8. O arguido BMS, por sua vez, respondeu ao recurso do M.P., também defendendo que o mesmo deve ser julgado não provido, sustentando que os despachos recorridos, se encontram devidamente fundamentados e por nos mesmos ser efetivada uma correta aplicação do direito, alegando em síntese que:
- os despachos recorridos não merecem qualquer censura, sendo de concluir por não verificada uma qualquer nulidade, mormente a alegada e prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P., visto que o impedimento de o arguido depor como testemunha radica não só na ideia de proteção do próprio arguido, constituindo expressão do privilégio contra a auto-incriminação, mas também na consagração da plena “ultra actividade do impedimento em causa”, ou seja, que aquele que já não é arguido, mas foi anteriormente no mesmo processo ou em processo conexo, continue a beneficiar do direito ao silêncio que assiste a tal sujeito processual, não deixando assim “entrar pela janela o que se quis fazer sair pela porta”;
- a nova redação conferida ao n.° 2 do artigo 133.° do C.P.P. pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, definiu ser exigível o consentimento mesmo nos casos em que os arguidos (de um mesmo processo ou de um processo conexo) já tenham sido condenados por sentença transitada em julgado, sendo que no caso sub judice, os co-arguidos não deram o seu consentimento expresso à prestação de depoimento na qualidade de testemunhas;
- tendo as referidas testemunhas possuído o estatuto de co-arguidos, não se poderá impor a sua inquirição como testemunhas, e que esses depoimentos sejam utilizados como meios de prova na formação da convicção do Tribunal.
9. Estes recursos foram admitidos e no cumprimento do artigo 414.°/4 CPP o Tribunal a manteve integralmente as decisões recorridas, pelos fundamentos constantes das mesmas, e que, segundo o respectivo entendimento, dispensam a invocação de quaisquer outros argumentos na sua sustentação.
10. Prosseguidos os autos os seus termos normais, veio a ser proferido Acórdão a 19-11
21, relativamente aos arguidos
APA, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 3, do Código Penal;
- um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro;
- um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo art. 256.°, n.° 1, alínea d), do
Código Penal;
- um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.°, n.° 1, do Código Penal;
- um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art. 103.°, n.° 1, al. b), e n.° 3, e art.
104.°, n.° 2, al. b), do RGIT;
- um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art. 103.°, n.° 1, al. b), e n.° 3, e art.
104.°, n.° 3, do RGIT;
- um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e n.° 3, do RGIT, e art.
202.°, al. b), do Código Penal;
- quarenta e cinco crimes de atestado falso, p. e p. pelo art. 260.°, n.° 5, do Código Penal;
- um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- dois crimes de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal.
Foi condenado;
- na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa
simples, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal;
- na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 150 (cento e cinquenta) dias de
multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e
p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89;
- na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de burla tributária
agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e 2, do RGIT, e pelo art. 202.°, al. a), do Código Penal;
- na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência
simples, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal.
- em cúmulo jurídico na pena única de 4 (quatro) anos de prisão e 150 (cento e cinquenta)
dias de multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), cuja execução se suspendeu igual período de
tempo, sob condição de pagamento da importância de € 13 144,22 à Segurança Social no prazo de um
ano a contar do trânsito em julgado do acórdão.
Foi absolvido dos restantes crimes que lhe foram imputados.
FDA, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro;
- um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo art. 256.°, n.° 1, alínea d), do
Código Penal;
- um crime de falsidade de testemunho agravada, p. e p. pelos artigos 360.°, n.° 1, e 361.°,
n.° 1, alínea c), do Código Penal;
- dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art. 103.°, n.° 1, al. b), e n.° 3, e art.
104.°, n.° 2, al. b), do RGIT;
- um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e n.° 3, do RGIT, e art. 202.°, al. a), do Código Penal;
- quarenta e cinco crimes de atestado falso, p. e p. pelo art. 260.°, n.° 5, do Código Penal; - um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1 e 2, do Código Penal; - um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal;
- um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.° e 25.° do DL n.° 15/93;
- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, n.° 1, al. d), da Lei n.° 5/2206.
Foi condenado:
- na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal;
- na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão e 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89;
- na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e 2 do RGIT, e pelo art. 202.°, al. a), do Código Penal;
- na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal;
- na pena de 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, n.° 1, al. d), da Lei n.° 5/2006;
- na pena de 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.°, n.° 2, do DL 15/93;
- na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros) sendo que a pena de prisão foi suspensa na respectiva por igual período de tempo, sob condição de pagamento da importância de € 8 466,63 à Segurança Social no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
Foi absolvido dos restantes crimes que lhe foram imputados.
JAP, vindo-lhe imputada a prática de
- Um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- Um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro;
- Um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e n.° 2, do RGIT, e art.
202.°, al. a), do Código Penal;
- Quarenta e um crimes de atestado falso, p. e p. pelo art. 260.°, n.° 5, do Código Penal;
- Um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- Um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal.
Tendo sido condenado:
- na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e 120 (cento e vinte) dias de multa à
taxa diária de € 10,00 (dez euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo
art. 108.°, da Lei n.° 422/89, tendo-se suspendido a execução da pena de prisão por igual período de
tempo;
Absolveu o arguido da prática do demais imputado.
DRC, vindo-lhe imputada a prática de:
- Um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 3, do Código Penal;
- Um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1 e 2, do Código Penal.
Foi absolvido da prática destes ilícitos.
BMS, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro;
- um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.°, n.° 1, do Código Penal;
- dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art. 103.°, n.° 1, al. b), e n.° 3, e art.
104.°, n.° 2, al. b), do RGIT;
- um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1 e 2, do Código Penal.
Tendo sido condenado:
- na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 150 (cento e cinquenta) dias de
multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de material de jogo, p. e p. pelo
art. 115.°, n.° 1, da Lei n.° 422/89, sendo que a execução da pena de prisão foi suspensa por igual
período de tempo.
Foi absolvido dos demais ilícitos que lhe foram imputados.
ROC, vindo-lhe imputada a prática de:
- Um crime de corrupção passiva, p. e p. pelo art. 373.°, n.° 1, do Código Penal, pelo qual
foi condenado na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspendeu por
igual período de tempo.
PAN, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro.
Foi condenado:
- na pena de 9 (nove) meses de prisão e 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.°
422/89, tendo-se suspendido a execução da pena de prisão por igual período de tempo.
CCB, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 3, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro;
- três crimes de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.°, n.° 1, do Código Penal;
Tendo sido condenado:
- na pena de 9 (nove) meses de prisão e 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.°
422/89, sendo que a execução da pena de prisão foi suspensa por igual período de tempo.
PXM, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro.
Tendo sido absolvida da prática destes ilícitos.
MFM, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro.
Foi condenada:
- na pena de 2 (dois) meses de prisão e 20 (vinte) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.°
422/89;
- substitui-se a pena de prisão pela pena de 60 dias de multa;
- e condenada a arguida na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros).
JPT, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro.
Tendo sido absolvida da prática destes crimes.
MCN, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89, de 2 de
Dezembro.
Foi condenado:
- na pena de 9 (nove) meses de prisão e 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.°
422/89, sendo que execução da pena de prisão foi suspensa por igual período de tempo.
CSG, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.0, n.0s 1 e 2, do Código Penal;
- um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.0, da Lei n.0 422/89, de 2 de
Dezembro.
Foi condenada:
- na pena de 2 (dois) meses de prisão e 20 (vinte) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.0, da Lei n.0
422/89;
- substitui-se a pena de prisão pela pena de 60 dias de multa;
- e condenada a arguida na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00
(cinco euros).
CLC, vindo-lhe imputada a prática de
- cinco crimes de prática ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 110.0, da Lei n.0 422/89, de 2 de
Dezembro;
- um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382.0, do Código Penal.
Foi condenado:
- na pena de 1 (um) ano de prisão de prisão, pela prática de um crime de abuso de poder,
p. e p. pelo art. 382.0, do Código Penal;
- na pena de 2 (dois) meses de prisão e 20 (vinte) dias de multa à taxa diária de € 10,00
(dez euros), pela prática de um crime de prática ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 110.0, da Lei n.0 422/89;
- na pena única de 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão e 20 (vinte) dias de multa à taxa
diária de € 10,00 (dez euros), cuja execução foi suspensa pelo mesmo período de tempo.
Foi absolvido do demais imputado.
ALS, vindo-lhe imputada a prática de:
- um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.0, n.0s 1 e n.0 3, do RGIT, e art.
202.0, al. b), do Código Penal;
- dois crimes de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.0, n.0s 1 e n.0 3, do RGIT, e
art. 202.0, al. a), do Código Penal;
- um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335.0, n.0 1, al. a), do Código Penal.
Foi condenada:
- na pena de 1 (um) ano de prisão, pela prática, como cúmplice, de um crime de burla
tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT, e pelos artigos 27.º e 202.º, al. a), do
Código Penal (subsídios por doença de APA);
- na pena de 9 (nove) meses de prisão, pela prática, como cúmplice, de um crime de burla
tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT, e pelos artigos 27.º e 202.º, al. a), do
Código Penal (subsídios por doença de FDA);
- na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência, p. e
p. pelo art. 335.º, n.º 1, al. a), do Código Penal;
- na pena única de de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se
suspendeu por igual período de tempo.
Foi absolvida do demais imputado.
FJR, vindo-lhe imputada a prática de um crime de acesso
ilegítimo, p. e p. pelo art. 6.º, n.ºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, foi absolvido da
prática deste crime.
No mesmo acórdão decidiu-se ainda:
- julgar totalmente improcedentes os pedidos cíveis e, consequentemente
- absolver-se os arguidos APA, FDA e BMS dos
pedidos;
- julgar extintos os arrestos preventivos decretados;
- determinar-se o levantamento imediato de todas as apreensões inerentes a estes
arrestos.
- determinar-se o cancelamento dos registos destes arrestos.
- julgar-se totalmente improcedentes os incidentes de perda alargada de bens a favor do
Estado e, consequentemente:
- absolver-se os arguidos APA, FDA, DRC
e BMS dos pedidos;
- julgar-se extintos os arrestos decretados;
- determinar-se o levantamento imediato de todas as apreensões inerentes a
estes arrestos;
- determinar-se o cancelamento dos registos destes arrestos.
11. Deste acórdão foi interposto recurso pelo M.P., defendendo a revogação do acórdão nos pontos por si analisados e substituída a decisão nos termos por si propostos rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“1. O Ministério Público vem recorrer do douto acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, que, pondo termo à causa, decidiu, no segmento decisório que ora releva, considerar verificado o impedimento de depoimento como testemunha, das testemunhas DJF, ARP, CCA e JPM, nos termos do artigo 133.°, n.° 2, do Código de Processo Penal; absolver as arguidas PXM e JPT de um crime de exploração ilícita de jogo (previsto e punível pelo artigo 108.° da Lei n.° 422/89, de 02-12), de que cada uma das arguidas vinha pronunciada; absolver os arguidos APA de dois crimes de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pelos artigos 103°, n.° 1, alínea b) e n.° 3 e 104.°, n.° 2, alínea b), ambos do Código Penal) e um crime de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pelos artigos 103°, n.° 1, alínea b) e n.° 3 e 104.°, n.° 3, ambos do Código Penal), o arguido FDA de dois crimes de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pelos artigos 103°, n.° 1, alínea b) e n.° 3 e 104.°, n.° 2, alínea b), ambos do Código Penal) e o arguido BMS de BMS, de que todos vinham pronunciados; julgar totalmente improcedentes os pedidos cíveis e consequentemente absolver os arguidos APA, FDA e BMS dos pedidos e julgar extintos os arrestos preventivos decretados e determinar o levantamento imediato de todas as apreensões inerentes aos arrestos e o cancelamento dos registos; condenar o arguido APA, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo artigo 108.º da lei n.º 422/89, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e na pena de multa de 150 dias à taxa diária de 20 € e o arguido FDA, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo artigo 108.° da lei n.° 422/89, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão e na pena de multa de 160 dias à taxa diária de 10 €; condenar o arguido APA na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sob condição de pagar a importância de 13.144,22 € à Segurança Social, no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado e na pena de multa de 150 dias de multa à taxa diária de 20 € e absolve o referido arguido da prática do demais imputado na pronúncia; condenar o arguido FDA na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sob condição de pagar a importância de 8.466,63 € à Segurança Social, no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado e na pena de multa de 175 dias de multa à taxa diária de 10 € e absolve o referido arguido da prática do demais imputado na pronúncia; e condenar o arguido BMS na pena única de 1 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, e na pena de multa de 150 dias de multa à taxa diária de 20 € e absolve o referido arguido da prática do demais imputado na pronúncia.
2. No caso concreto, o recurso ora interposto vem impugnar matéria de facto e de direito, sendo as questões que ora se suscitam, relativas aos temas seguintes: Do impedimento de depoimento como testemunha, nos termos do artigo 133.°, n.° 2, do Código de Processo Penal; Da matéria de facto não provada quanto aos crimes de exploração ilícita de jogo de que os arguidos APA, FDA, PXM e JPT foram pronunciados; Da matéria de facto não provada quanto aos crimes de fraude fiscal qualificada de que os arguidos APA, FDA e BMS foram pronunciados; Da medida da pena aplicada aos arguidos APA, FDA e BMS e da absolvição do pedido de indemnização cível a favor do Estado quanto aos arguidos APA, FDA e BMS e da declaração de extinção do arresto preventivo decretado.
3. Quanto ao impedimento de depoimento como testemunha, nos termos do artigo 133.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, relativamente ao qual o Ministério Público já anteriormente interpôs recurso, discordamos da interpretação da norma jurídica contida no artigo 133.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, perfilhada pelo Tribunal a quo, reiterando-se aqui a impugnação de tal entendimento quanto aos depoimentos das testemunhas DJF, ARP, CCA e JPM, os quais, caso tivessem sido prestados, poderiam ter contribuído mais decisivamente para a corroboração de toda a factualidade que foi imputada aos arguidos condenados pelo crime de exploração ilícita de jogo, mas que também teriam sido decisivos para a condenação de arguidos que foram absolvidos deste mesmo crime.
4. Os quatro recursos foram oportunamente interpostos para as atas respetivas após o Tribunal a quo ter considerado verificado o impedimento dos depoimentos, com o seguinte fundamento “A testemunha acabada de identificar foi constituída como arguida na fase de inquérito e, no final do inquérito, o Ministério Público optou pela suspensão provisória do processo e pelo ulterior arquivamento relativamente a esta pessoa. Porquanto, julga-se verificado o impedimento relativo de intervir e depor como testemunha previsto no art. 133.°, n.° 2, do CPP, ficando a mesma desobrigada de o fazer porque nisso não consentiu expressamente nesta audiência.”
5. Sucede que o artigo 133.° do Código de Processo Penal, que consagra os impedimentos legais vigentes a observar relativamente a certas pessoas aí indicadas que sejam convocadas a prestar depoimento na qualidade de testemunhas, todavia, os impedimentos previstos no artigo 133.°, n.° 1, al. a) e n.° 2, do Código de Processo Penal apenas operam quando as pessoas em causa mantiverem a qualidade de arguidos no mesmo ou noutro processo separado ou conexo ou, se se quiser, para efeitos do n.° 2, a qualidade de condenados, atenta a redação introduzida após a revisão do Código de Processo Penal , operada pela Lei n° 48/2007, de 29.08. 6 ̶ Assim, tais decisões, a nosso ver, integram a nulidade prevista na alínea d), do n° 2, do artigo 120.°, do Código de Processo Penal, por constituir omissão de diligência que se reputa essencial para a descoberta da verdade, e violam também, a nosso ver, claramente, o disposto no artigo 133°, n.° 1, al. a), do Código de Processo Penal, uma vez que as quatro testemunhas não revestem atualmente a qualidade de arguidos e as declarações que viessem a prestar em julgamento sobre a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar nenhuma repercussão poderiam ter criminalmente contra si, uma vez que o inquérito que foi suspenso provisoriamente e já arquivado pelo cumprimento não poder ser reaberto, e porque ao decidir nos termos em que decidiu o Mm.° Juiz Presidente impediu que com o seu depoimento a testemunha contribuísse, para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.
6. Com efeito, verifica-se que as quatro testemunhas indicadas pela acusação não revestiam a qualidade de arguidos no momento em que foram, respetivamente, chamadas a depor em julgamento, por os autos terem sido quanto a todas, sem exceção, arquivados na fase de inquérito por força da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não podendo, fosse a que título fosse e independentemente das declarações que tais pessoas viessem a prestar em julgamento, voltar a ser reabertos contra elas – art.° 282°, n° 3, do CPP – , não se encontrando, por isso, impedidas de depor como testemunhas, nem a tal se podendo recusar, também não cabia, por ser irrelevante, perguntar-lhes previamente se nisso consentiam.
7. Por conseguinte e quanto a este ponto, o Ministério Público não se conforma com o decidido pelo Tribunal a quo que, a nosso ver, julgou erradamente verificado, relativamente a cada um dos quatro depoimentos, o impedimento relativo previsto no artigo 133.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, fazendo uma errada interpretação e aplicação desta norma legal.
8. Como consequência da verificação do impedimento de depor das referidas testemunhas, nem toda a factualidade que foi imputada aos arguidos APA e FDA quanto aos crimes de exploração ilícita de jogo, foi considerada provada, e foram absolvidos deste mesmo crime outros arguidos, como sucedeu com as arguidas PXM e JPT, quando se crê que, caso tais depoimentos tivessem sido prestados, os factos de que as mesmas testemunham tinham conhecimento, poderiam ser considerados como provados e os arguidos condenados pelos mesmos.
8. O Ministério Público considera incorretamente julgados os factos não provados e subjacentes à prática dos crimes de fraudes fiscal qualificada de que os arguidos APA, FDA e BMS foram pronunciados, uma vez que tais factos deveriam ter sido considerado provados com base na prova documental/pericial corresponde ao vasto conjunto documental analisado e elaborado pela Autoridade Tributária e pelo Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), constante dos Apensos A, B (informações bancárias), G (documentação da Autoridade Tributária) e L (documentação do GRA) e no depoimento das testemunhas LC, inspetor tributário, que elaborou a informação final da Autoridade Tributária e CSG, inspetora da Polícia Judiciária a exercer funções no GRA, que elaborou o relatório final do GRA.
9. O Tribunal a quo absolveu os arguidos mencionados dos crimes de fraude fiscal qualificada, tendo fundamentado tal decisão ao referir que “não foi produzida prova de que todos os incrementos verificados nas contas bancárias dos arguidos APA, FDA e BMS tivessem sido originados pelas receitas geradas com a exploração ilícita do jogo. (...) Mas acima de tudo, importa dar conta de que os valores alegados relativos aos rendimentos globais líquidos de todos os arguidos envolvidos não coincidem com o apuramento feito no seio da AT (fls. 443-459 do volume 2 do Apenso L).(...) Acresce que a AT não apurou diretamente os rendimentos atendíveis em falta e limitou-se a analisar as declarações de rendimentos das pessoas singulares. Por outro lado, não se pode aceitar que os saldos existentes nas contas bancárias também co-tituladas pelos cônjuges e outros familiares próximos dos arguidos sejam imputados a estes últimos a 100/prct. no plano exclusivo da imputação criminal e à margem dos pressupostos do instituto da perda alargada. Neste contexto de manifesta incerteza, torna-se inviável formular um juízo probatório positivo num domínio de exigência de certeza para além de qualquer dúvida razoável. (...) No caso concreto, não se provaram os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de fraude fiscal relativamente a todos os arguidos, nomeadamente as vantagens patrimoniais concretamente alegadas na pronúncia por referência aos exercícios fiscais de 2016 e 2017, devendo os mesmos ser absolvidos.”
10. Sucede porém que, para que os elementos típicos do crime de fraude fiscal qualificada se mostrem preenchidos e se considere, em consequência, cometido o crime de fraude fiscal qualificada, não é necessário que ficasse provado que os acréscimos auferidos pelos arguidos fossem concretamente oriundos da exploração ilícita de jogo ou até de qualquer atividade outra ilícita levada a cabo pelos mesmos, uma vez que, na verdade, quer os rendimentos lícitos, quer os ilícitos, têm de ser declarados à Autoridade Tributária, dada a obrigatoriedade da sua declaração, quer para efeitos de tributação, quer para meros efeitos declarativos fiscais.
11. Assim o impõe o desde logo o chamado princípio da neutralidade axiológica previsto no artigo 10.º da Lei Geral Tributária (DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro), segundo o qual “O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses actos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis.” E tal verifica-se também por imposição do artigo 1.º do Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS), ao determinar que “O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de atos ilícitos (...)”
12. A lei penal incriminatória quanto ao crime de fraude fiscal simples e qualificada funda-se nas normas fiscais e sua infração, e no que respeita à fraude fiscal simples ou qualificada, nem o direito fiscal, nem por conseguinte o direito penal, distinguem entre rendimentos lícitos e ilícitos no que concerne aos proventos económicos do sujeito passivo, relativamente aos quais incide sobre o respetivo o ónus declarativo. Na verdade, para efeitos fiscais, conclui-se que é apenas a vantagem patrimonial incongruente que é definida como ilícita, seja ela proveniente de atividade que em termos penais seja lícita ou considerada ilícita.
13. E mesmo havendo suspeitas quanto à origem de determinados rendimentos mas não sendo possível provar de forma inequívoca a sua proveniência ilícita ou lícita, atualmente existem mecanismos legais que salvaguardam os
interesses tributários e enquadram devidamente tais situações, sendo tais rendimentos enquadrados na alínea d) do n.° 1 do artigo 9.° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), enquanto rendimentos da categoria G, ou seja, acréscimos patrimoniais não justificados, determinados nos termos dos artigos 87.°, 88.° ou 89.°A da Lei Geral Tributária, considerando-se que que existem acréscimos patrimoniais não justificados quando os rendimentos declarados em sede de IRS forem inferiores aos rendimentos auferidos efetivamente, podendo, em consequência, ser avaliados indiretamente para efeitos de tributação.
14. Quanto à questão sobre a competência da Autoridade Tributária e não do GRA para a avaliação patrimonial dos rendimentos incongruentes dos arguidos, não cabia à Autoridade Tributária, a quem incumbe somente a análise dos documentos fiscais, fazer a avaliação dos rendimentos atendíveis, que são de natureza financeira e não meramente fiscal, uma vez que tal tarefa cabe ao elemento do GRA designado para o efeito e especializado em análise de ativos financeiros, pertencente à Polícia Judiciária e que está encarregue de elaborar o relatório do GRA, nos termos previstos nos artigos 2.°, 3.° e 4.°, todos da Lei n.° 45/2011, de 24 de Junho, que criou o Gabinete de Recuperação de Ativos.
15. É pois ao GRA que compete a investigação financeira e consequentemente o apuramento das incongruências, em parceria com a Autoridade Tributária, a quem logicamente compete apurar os rendimentos declarados com os quais as incongruências vão ser confrontadas para apuramento da vantagem patrimonial ilícita. E constata-se que foi CM, inspetora da Polícia Judiciária que aliás prestou depoimento, esclarecendo o teor do seu relatório, quem procedeu à análise financeira e apuramento da vantagem patrimonial em causa auferida pelos arguidos e cuja contabilização e respetivas conclusões constam detalhadamente do relatório do GRA.
16. Quanto à questão acerca dos valores alegados relativos aos rendimentos globais líquidos de todos os arguidos envolvidos não coincidirem com o apuramento feito no seio da AT, a testemunha LC esclareceu ter havido uma retificação relativamente a um dos valores respeitantes ao arguido APA, que a mesma esclareceu devidamente e que quase nenhum impacto tem relativamente à vantagem patrimonial auferida por este arguido.
17. Quanto à questão relativa à análise das contas bancárias cotituladas pelos arguidos visados, a mesma foi devidamente esclarecida pela testemunha CM, inspetora da inspetora da Polícia Judiciária a exercer funções no GRA e que elaborou o relatório final do GRA, que explicou o procedimento seguido quando se tratavam de contas bancárias cotituladas, sendo que, caso o cotitular fosse cônjuge ou membro de união de facto, são analisados todos rendimentos de ambos para avaliar qual a percentagem de rendimentos a imputar ao visado; caso o cotitular fosse terceira pessoa, é considerada metade dos rendimentos como sendo auferidos pelo visado e em qualquer dos casos era sempre analisada se a conta bancária era utilizada só por um dos cotitulares ou não e mais importante ainda, se os respetivos eram auferidos pelo titular arguido nos autos, de acordo com o descritivo.
18. Na verdade, conforme se alcança de fls. 479 do relatório do GRA, quanto às contas cotituladas pelo arguido APA e pela sua filha, só foram considerados os créditos que, pelo seu descritivo, eram utilizados pelo arguido, nas contas cotituladas por este arguido e por MJ, só foram tidos em consideração os créditos na proporção de 50 /prct. e nenhuma das contas das sociedades em que o arguido é gerente e sócio foram consideradas.
19. Contudo, refira-se que, caso se discorde deste critério de imputação de rendimentos, o facto é que nem todas as contas bancárias visadas e relativamente às quais foram contabilizados rendimentos incongruentes, eram cotituladas e ainda que fossem apenas consideradas as contas bancárias dos arguidos, em que estes constam como únicos titulares, os rendimentos incongruentes aí auferidos, pelo menos no que toca aos arguidos FDA e BMS e que superam o limiar dos 100.000,00 € já bastariam, por si só, para consubstanciar a prática dos crimes de fraude fiscal qualificada de que foram pronunciados.
20. De facto, quanto ao arguido FDA, mesmo não tendo em consideração os movimentos e saldos das contas bancárias cotituladas, o valor incongruente supera os 100.000,00 € relativamente aos períodos fiscais correspondentes a 2014 (127.022,68 €), 2015 (139.008,09 €), 2016(143.297,47 €) e 2017 (162.287,60€), conforme dados constantes da informação fiscal da Autoridade Tributária, a fls. 9672-9673 dos autos. E o mesmo sucede com o arguido BMS relativamente aos períodos fiscais de 2014 (126.435,42€), 2015 (146.960,13 €), 2016 (149.714,03€) e 2017 (187.927,04€), conforme dados constantes da informação fiscal da Autoridade Tributária, a fls. 9674 dos autos.
21. Nesta medida, consideramos que deveriam ter sido considerados provados os factos subjacentes à prática dos crimes de fraude fiscal qualificada e em consequência, deveriam os arguidos APA, FDA e BMS ter sido condenados pelos mesmos.
22. Tal como referido a propósito da absolvição do crime de fraude fiscal qualificada, e pelos mesmos motivos de facto e de direito, o Ministério Público considera terem sido incorretamente julgados os factos considerados não provados e que em consequência, levaram também à absolvição dos arguidos APA, FDA e BMS dos pedidos de indemnização cível deduzidos a favor do Estado – Autoridade Tributária e à declaração de extinção do arresto preventivo decretado, defendendo que os mesmos também devem, por consequência, ser condenados pelos pedidos de indemnização cível deduzidos a favor do estado – Autoridade Tributária e por inerência, não deverá ser declarado extinto o arresto preventivo anteriormente decretado, mas sim considerado ainda válido e ser, por consequência, mantido, com todas as consequências legais ao nível da sua apreensão, registo e perdimento a favor do Estado, conforme anteriormente peticionado pelo Ministério Público.
23. Neste âmbito, também discordamos da interpretação das normas jurídicas contidas nos artigos 40.º, 50.º e 70.º, todos do Código Penal, perfilhada pelo Tribunal a quo, não concordando com as referidas penas parcelares aplicadas aos arguidos APA e FDA pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, dada a sua reiteração ao longo do tempo e os elevados proventos económicos auferidos pelos arguidos através dessa atividade, pugnando pela aplicação de penas de prisão correspondentes à moldura máxima aplicável a este ilícito e penas de multa não inferiores a 200 dias, uma vez que não se concebe que à elevada ilicitude e culpa dos arguidos, na sua conduta, possa corresponder pena inferior, não se vislumbrando qualquer atenuante.
24. E também não concordamos com os fundamentos da escolha da pena única aplicada aos arguidos APA, FDA e BMS, pelo que entendemos que deverá ser revogada a douta sentença recorrida, também no que a esta parte concerne e ser agravada a mesma, caso seja procedente o presente recurso quanto aos crimes de fraude fiscal qualificada.
25. Com efeito, atendendo à conduta ilícita dos arguidos APA, FDA e BMS, integradora de vários ilícitos graves ao longo de um período temporal longo - o que, caso o presente recurso seja considerado procedente, se dará como provado igualmente quanto aos crimes de fraudes fiscal qualificada – considera-se que a aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução, ainda que subordinada a condição no caso dos arguidos APA e FDA, não é suficiente para assegurar as necessidades de prevenção geral e especial subjacentes ao caso concreto, pelo que o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não decidiu bem ao conceder a estes arguidos ainda a oportunidade de cumprimento de uma pena não privativa da liberdade.
26. No que à prevenção especial diz respeito, constata-se que, quanto ao arguido APA muito embora não tenha antecedentes criminais, a verdade é que é ele quem tem a responsabilidade mais gravosa pela comissão dos factos ilícitos em causa e quanto ao arguido FDA, constata-se que o mesmo já tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza tendo já sido condenado duas vezes em matéria de exploração de jogo ilícito.
27. Desta maneira, constata-se, ao contrário do decidido, que são prementes as necessidades de prevenção geral e especial, pois aquelas não se satisfazem com a aplicação, de pena substitutiva da pena de prisão, sob pena de ficar patente um sentimento geral de insegurança e impunidade e é notório que os arguidos revelam uma personalidade não conforme ao Direito, pelo que só a execução de uma pena de prisão os determinará a afastar-se da criminalidade.
28. Em conclusão, o Ministério Público crê ainda que, caso tivessem sido prestados os depoimentos cujo impedimento se impugna no presente recurso, teria sido possível dar como provada a factualidade inerente ao crime de exploração ilícita de jogo, imputada aos arguidos APA e FDA, com maior abrangência, e em consequência, as referidas penas parcelares, relativas ao crime de exploração ilícita de jogo, deveriam ser agravadas e ser-lhes aplicada pena parcelar correspondente à moldura máxima aplicável, de dois anos de prisão e pena de multa de 200 dias.
29. E caso seja considerado procedente o presente recurso quanto aos crimes de fraude fiscal qualificada de que os arguidos APA, FDA e BMS foram pronunciados, atento o montante das vantagens económicas auferidas e sua omissão, a forma de consumação e a proveniência criminosa da vantagem patrimonial e o respetivo período temporal em que foi auferida e oculta da Autoridade Tributária, as penas parcelares de prisão a aplicar aos mesmos, devem ser situadas pelo menos a um nível intermédio entre a moldura mínima e a moldura mínima aplicável por cada um dos crimes.
30. Pelo exposto, entende-se que estão reunidos os pressupostos para que aos arguidos APA, FDA e BMS, venham a ser fixadas, em cúmulo jurídico, pena única de prisão efetiva não inferior a 7 anos, relativamente ao arguido APA, pena única de prisão efetiva não inferior a 5 anos relativamente ao arguido FDA e pena única de prisão não inferior a 4 anos de prisão eventualmente suspensa, na sua execução, relativamente ao arguido BMS, sendo estas as únicas que eficazmente permitirão assegurar as elevadas necessidades preventivas que se fazem sentir no caso concreto.
(...)No mesmo recurso o M.P. declarou manter interesse no recurso interlocutório, mas
apenas quanto ao depoimento das testemunhas DJF, ARP, CCA e JPM, tendo desistido do mesmo recurso quanto aos depoimentos das demais nove testemunhas (JMS, DMC, LMR, JFS, ADS, PAP, AFN, JLS e, MJA).
12. O arguido ROC recorreu do acórdão, defendendo dever ser absolvido pela prática do crime pelo qual foi condenado ou, caso assim não se entenda, ser alterada a pena de prisão em que o arguido foi condenado, sendo esta substituída por pena de prisão no seu limite mínimo legal ou próxima do mesmo suspensa na sua execução por igual período, rematando o corpo das motivações com as conclusões que a seguir se transcrevem:
“1 - No âmbito dos presentes autos, veio a final ser proferido Acórdão, a 19 de Novembro de 2021, decidindo condenar o arguido na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, pela prática de um crime de corrupção passiva simples, p. e p. pelo art. 373.º, n.º 1, do Código Penal.
2 - O arguido entende não ter sido devidamente levada em conta, a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a documental, tendo a mesma sido apreciada de forma errada aquando da motivação da decisão sobre a matéria de facto.
3 - Salvo o devido respeito, não teve, o Tribunal a quo o cuidado e o rigor de analisar toda a prova produzida na sua plenitude e cuja valoração era legalmente passível e exigível. Dos próprios factos provados resulta erro de julgamento da matéria de facto, que põe em causa a decisão de condenar o recorrente.
4 - Discordamos da valoração efetuada por aquele Tribunal porque consideramos que a prova produzida não foi apreciada corretamente de acordo com as regras da experiência e da lógica e com consideração pelos circunstancialismos do caso concreto.
5 - Da análise da prova produzida, no nosso modesto entendimento, não se compreende como poderia ter dado o tribunal a quo como provado que o arguido cometeu o crime pela qual vinha pronunciado.
6 - Para prova dos factos respeitantes ao arguido, o Tribunal fundou a sua convicção, essencialmente, no teor das conversações telefónicas transcritas nos autos.
7 - Dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, se o Tribunal a quo os tivesse valorado como deveria não tinha concluído da forma como concluiu.
8 - Não pomos em causa que as intercepções telefónicas depois de transcritas tenham o valor de prova documental e como tal estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova.
9 - Sucede porém, que no caso concreto vêm desacompanhadas de qualquer outro elemento probatório, o que no nosso modesto entender não são suficientes para passar de uma mera presunção para uma certeza, uma vez que nada existe a suportar a veracidade das mesmas.
10 - As referidas intercepções, ainda que interpretadas da forma que o douto Tribunal a quo interpretou, necessitam sempre de ser acompanhadas de outros elementos probatórios que permitam assegurar que o ali mencionado tem correspondência com a realidade, o que no caso sub judice não existiu.
11 - Não pode assim a ora recorrente concordar com a matéria dada como provada, impugnando-se assim os factos provados quanto ao arguido pois que atenta a prova produzida em sede de audiência de julgamento e bem assim a carreada nos autos, não podia o Tribunal a quo concluir da forma que concluiu.
12 - As conversas gravadas deverão ser sempre acompanhadas e corroboradas por outro meio de prova, sob pena de existirem condenações com base no que parece ser.
13 - Se o Tribunal a quo tivesse apreciado a globalidade da prova como podia e devia, a decisão seria outra, pois que não resulta dos autos qualquer elemento de prova, que permita concluir que os factos aconteceram para além de qualquer dúvida, não sendo no nosso modesto entendimento suficiente para condenar o arguido, a existência de conversas mais ou menos suspeitas entre os arguidos.
14 - Quanto muito todas as questões aqui levantadas deviam criar uma dúvida séria, devendo o Tribunal a quo ter aplicado o princípio do “in dubio pro reo” e em consequência absolver o arguido.
15 - Verifica-se assim erro de julgamento da matéria de facto e violação do princípio do “in dubio pro reo” e do princípio da presunção de inocência.
16 - À cautela e caso V.ª(s) Ex.ª(s), Venerandos Desembargadores, assim não entendam, sempre se dirá que, que a pena aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo mostra-se desadequada e desproporcional.
17 - Apurou-se em suma que o arguido é primário, estando familiar, profissional e socialmente inserido, factos esses, que militam a favor do arguido.
18 - A pena a aplicada ao arguido, atento o atrás referido, deve ser no mínimo legal ou próximo do mesmo, uma vez que no nosso modesto entendimento permite acautelar todas as necessidades de prevenção geral e especial, que no caso concreto se fazem sentir.
(...)13. Também do acórdão final foi interposto recurso por parte dos arguidos APA
e DAP, defendendo estes:
- ser nulo o acórdão, por violação do estatuído no artigo n° 2 do art. 374° do c.p.p, devendo tal nulidade ser declarada e, em consequência, determinar-se a prolação de novo acórdão;
- ser nula a decisão, nos termos dos artigos 379.º/1, a) c.p.p., por, em vários segmentos, não se mostrar devidamente fundamentado;
- ser declarado o vício de contradição insanável entre os factos provados e a fundamentação, em consequência devem alguns dos factos provados ser expurgados da decisão recorrida, com as devidas consequências para efeitos de medida concreta da pena;
- ser julgada procedente, por provada, a impugnação da matéria de facto nos termos acima expostos e, em consequência, absolver: o arguido recorrente FDA do crime de exploração ilícita de jogo, do crime de burla tributária, do crime de tráfico de influência e do crime de detenção de arma proibida; o arguido APA do crime de corrupção activa, do crime de burla tributária e do crime de tráfico de influência;
- caso assim não se entenda, as penas devem ser reduzidas, mantendo-se a suspensão na sua execução. Concluem o corpo das motivações com as conclusões que a seguir se transcrevem:
“1. Nos presentes autos, foi o arguido APA condenado na pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art.° 374.°, n.° 1, do C.P.; na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e 150 dias de multa à taxa diária de € 20,00, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art.° 108.°, da Lei n.° 422/89; na pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art.° 87.°, n.°s 1 e 2, do RGIT, e pelo art.° 202.°, al. a), do C.P.; na pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art.° 335.°, n.° 2, do C.P.. e, em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos de prisão – suspensa na execução por igual período de tempo, sob condição de pagamento da importância de € 13.144,22 à Segurança Social no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão – e em 150 dias de multa à taxa diária de € 20,00.
2. O arguido FDA foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art.° 374.°, n.° 1, do C.P.; na pena de 1 ano e 9 meses de prisão e 160 dias de multa à taxa diária de € 10,00, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art.° 108.°, da Lei n.° 422/89; na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art.° 87.°, n.°s 1 e 2 do RGIT, e pelo art.° 202.°, al. a), do C.P.; na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art.° 335.°, n.° 2, do C.P.; na pena de 9 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.° 86.°, n.° 1, al. d), da Lei n.° 5/2006; na pena de 30 dias de multa à taxa diária de € 10,00, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 40.°, n.° 2, do DL 15/93 e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão – suspensa na execução por igual período de tempo, sob condição de pagamento da importância de € 8.466,63 à Segurança Social no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão – e em 175 dias de multa à taxa diária de € 10,00.
3. Desde logo, compulsada a decisão recorrida, em sede de Relatório, resulta a menção de que os Arguidos Recorrentes apresentaram contestação e mais nenhuma menção se faz a este articulado.
4. Na verdade, em sede de contestação, os Arguidos Recorrentes alegaram um conjunto de factos e apresentaram também documentos, sobre os quais o acórdão recorrido é totalmente omisso.
5. Alguns dos referidos factos, nomeadamente os alegados para contestar a prática de crime de burla tributária, em concreto, a existência de doença, a validade dos CIT e a submissão a juntas médicas, contrariam de forma frontal e sustentada matéria essencial de parte da pronúncia que veio a merecer acolhimento no acórdão de que agora se recorre.
6. O acórdão recorrido devia, ainda que sumariamente, reproduzir os argumentos de defesa dos Arguidos Recorrentes, e explicar porque os considerou ou não, e qual a prova que sobre os mesmos incidiu, de molde a que os intervenientes processuais pudessem aferir das razões de sustentação da matéria dada ou não por provada e da própria formulação da convicção do Tribunall.
7. Analisada a decisão recorrida, rapidamente se percebe que o Tribunal a quo não levou em linha de conta a defesa dos Recorrentes quanto à existência de doença e ao facto de estes terem sempre comparecido em juntas médicas que atestaram a sua situação de doença.
8. Com efeito, os factos alegados na contestação deveriam ter sido atendidos na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pelos Recorrentes como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa.
9. Assim, tendo o Acórdão Recorrido incumprido o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos da contestação que os Arguidos Recorrentes entenderam como relevantes para a estratégia da defesa e para a boa decisão da causa, como lhe ordena o normativo do n° 2 do art.° 374° do C.P.P, deverão V. Exas. declarar a nulidade da decisão e, em consequência, determinar a prolação de novo acórdão, expurgado do apontado vício em cumprimento do disposto nas alíneas a) e c) do n°1 do art.° 379° do mesmo diploma legal.
10. Relativamente ao crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo art.0 108.0, da Lei n.0 422/89, o Acórdão recorrido consigna, e bem, a limitação probatória referente aos conteúdos de intercepções telefónicas que não podem ser valorados para efeito de perseguição de crimes que não constem do catálogo definido na lei (art.0 artigos 187.0, n.0s 1 e 7, e 190.0, do CPP).
11. Não se compreendem um conjunto significativo de factos dados como provados, os quais resultaram exclusivamente das escutas telefónicas, as quais, não podiam ser valoradas (como decide, acertadamente, o Tribunal a quo), como sejam os factos 370, 440, 450, 460, 470, 480, 520, 530, 580, 590, 610, 620, 630, 640, 680, 690, 700, 710, 720, 730, 880, 890, 910, 940, 1070, 1290, 1300, 1310, 1330, 1350, 1360.
12. Se por um lado, alguns dos factos dados como provados estão em contradição com a própria fundamentação (vício a que alude o art.0 4100, n0 2, b) do C.P.P.), face à importante limitação probatória reconhecida na decisão, por outro lado, ainda que não fosse tal contradição, tais factos nunca podiam ter sido dados como provados atenta essa mesma limitação probatória que mais não é do que a impossibilidade de valoração de prova das transcrições, pelo menos para o crime de jogo ilícito, nos termos do art.º 126º nº3 do C.P.P.
13. Assim, salvo melhor opinião, em face do vício suscitado, e sem prejuízo do disposto no art. 426º do C.P.P., devem tais factos provados ser expurgados da decisão recorrida, com as devidas consequências para efeitos de medida concreta da pena.
14. Não questionando as condenações que recaíram sobre os Arguidos APA e JAP quanto ao crime de exploração ilícita de jogo (com excepção da medida concreta da pena que abordaremos infra por entendermos excessiva, até em face da alteração factual supra referida), entende o Recorrente FDA que quanto a si a mesma carece de evidente fundamentação.
15. O Mº.Pº. para conseguir acusar o Recorrente FDA por este crime fê-lo por duas vias, a primeira apontando a familiaridade que une os Arguidos Recorrentes, a segunda pelo facto de, formalmente, o Recorrente FDA encontrar-se como gerente de direito num dos espaços comerciais – “...” – onde foram apreendidas máquinas de jogo e onde este, aparentemente, se desenrolava.
16. Não obstante a defesa ter mostrado à saciedade que, efectivamente, o Recorrente FDA não se dedicava à exploração ilícita de jogo, resultou da prova produzida que mesmo o referido espaço comercial “...” - o tal onde FDA surge como gerente de direito - era explorado, de facto, pelo seu tio APA, conforme resulta dos factos provados 15º, 17º, 18º, 21º, 22º, 25º.
17. De tais factos não se consegue retirar a exploração ilícita de jogo por parte do Recorrente FDA, porquanto este (i) não contabiliza ganhos nem perdas, (ii) não recolhe os lucros do jogo, (ii) não recebe quaisquer lucros, (iv) não diligencia pela colocação ou fornecimento de quaisquer máquinas, (v) nem sequer os seus veículos são utilizados para as esconder.
18. Nem se diga que, por exemplo, no facto provado nº 7 se consigna que o estabelecimento “...” estava sob directa supervisão do Recorrente FDA, pois para além de tal facto carecer de conteúdo, isto é, de se determinar o que é “supervisão directa”, muitos outros factos dados como provados contrariam essa alegada “supervisão directa”.
19. Com efeito, muitos dos factos dados como provados, nomeadamente os supra identificados e ainda os factos provados 277º, 278º, 329º, 330º, 332º, 334º, 340º, 377º, 378º, 395º, 472º, 593º, 594º e, ainda o 577º, não obstante encerrarem uma contradição entre si, permitem ainda assim descortinar quem, de facto, geria os estabelecimentos comerciais, entre os quais o “...”.
20. Ora, explora jogos de fortuna e azar quem, efectivamente, solicita ou coloca as máquinas nos espaços comerciais, cuida pela sua manutenção e, finalmente, retira os alegados proventos.
21. Concluir que o Recorrente FDA praticou o referido crime sem que nos factos provados se lhe impute qualquer actividade de exploração é, salvo melhor opinião excessivo.
22. Por esse motivo, deverá ser declarada a nulidade por falta de fundamentação por violação dos artigos 374°, n° 2, e 379°, n° 1, alínea a), do C.P.P..
23. Ainda que assim não se entenda, à cautela, sem conceder, impugnam-se os seguintes factos dados como provados: 2° na parte “FDA” e “colocaram máquinas de jogo de fortuna ou azar em três dos referidos estabelecimentos de restauração e bebidas, tendo como fim último a obtenção de elevados ganhos em dinheiro.”; 7° na parte “recorria aos Arguidos FDA e JAP, sendo estes Arguidos que mantinham a direta supervisão dos três estabelecimentos comerciais onde se desenvolviam os jogos de fortuna ou azar: a) ““...”” – sob direta supervisão de FDA”; 222° na parte “FDA, que recebem os lucros das mesmas.”; 314° na parte “FDA, tomando este decisões inerentes à gestão quotidiana daquele”.
24. Estes factos foram incorrectamente dados como provados porquanto a prova produzida impunha um sentido diverso – mas essa caiu no esquecimento e nem sequer vem referida na fundamentação da decisão.
25. O único elemento que permite, em abstracto, responsabilizar criminalmente o Recorrente FDA pela exploração ilícita de jogo é o facto de aquele ser o gerente de direito do estabelecimento “...”.
26. Em virtude da relação familiar e de proximidade entre os Recorrentes APA e FDA, desde há muitos anos que a gerência de direito do “...” está registada em nome do Recorrente FDA, isto é, é ele o respectivo titular para efeitos legais.
27. Não obstante, foi sempre e até aos dias de hoje, o Recorrente APA quem efectivamente, geria e gere, supervisiona e dirige, de facto, o “...”; ou seja, por outras palavras, o Recorrente FDA tem no “...”, nada mais, nada menos, que o seu nome a constar da documentação legal.
28. Ora, é entendimento pacífico na jurisprudência, e que perfilhamos, que o gerente responsabilizável é aquele que tem poder efectivo, real, decisório para vincular a sociedade e determinar as opções que esta tem de realizar no decurso da sua existência. Só quem tem poderes efectivos de gerência – em concreto, o Recorrente APA – está em condições de “responder” pelas opções tomadas na exploração dos jogos de fortuna ou azar. O mero gerente de direito – o Recorrente FDA – não está nessas condições, não tem esses poderes de facto.
29. A prova testemunhal produzida em julgamento corrobora, nos precisos termos acima enunciados, não só a inexistência de ligação efectiva do Recorrente FDA ao “...” como também a ausência daquele nos factos que se subsumem à exploração ilícita de jogo. Porém, da fundamentação da decisão não há um único resquício, a mais singela referência a estas provas!
30. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida reportam-se aos depoimentos prestados em julgamento por: JCPS, Cabo-Militar da Guarda Nacional Republicana, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09h51m27s e termo às 11h30m46s, conforme acta de audiência de discussão e julgamento n° 2, datada de 24-09-2020; SASP, Militar da Guarda Nacional Republicana, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14h31m45s e termo às 16h56m38s, conforme acta de audiência de discussão e julgamento n° 3, datada de 28-09-2020.
31. Referiu a testemunha JS (aos minutos 00:51:12 a 00:51:40; 00:53:48 a 00:55:50; 00:56:09 a 00:57:53 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu) que, no “...”, o Recorrente FDA tem apenas “o seu nome na papelada” e que a sua real responsabilidade é a Churrasqueira de Sintra. É o Recorrente APA quem gere a actividade ilegal de jogo, quem põe ou manda pôr as máquinas a funcionar, quem recolhe o dinheiro das máquinas e quem as manda ocultar, quem é contactado quando é necessário dar um prémio a algum jogador. Refere ainda que os funcionários do “...” são contratados pelo Recorrente APA.
32. Referiu a testemunha SP (aos minutos 00:40:04 a 00:41:19; 01:15:49 a 01:16:34 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu) que nunca viu o Recorrente FDA ir buscar dinheiro às máquinas de jogo, que era o Recorrente APA quem prevalecia e que era o dono dos estabelecimentos, e, enfatizando de novo, disse: “era o senhor APA que era dono de tudo, apesar de ter o SP e o FDA à frente, era o senhor APA que é o dono de tudo.”, expressão esta que corresponde cabalmente ao acima exposto.
33. Não há um único elemento nos autos que implique o Recorrente FDA no crime de exploração ilícita de jogo e mesmo aquele único em que o Tribunal se baseou – a gerência do “...” – é improcedente na medida em que só é responsabilizável pelas actividades de jogo ilegal aquele que tem, efectivamente, o poder de decisão.
34. Assim, deverão os factos acima identificados e dados como provados passar a constar da factualidade dada como não provada, nos termos da prova produzida em audiência e, em consequência, ser o Recorrente FDA absolvido da prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art.° 108.°, da Lei n.° 422/89.
35. O Tribunal a quo decidiu, quanto ao crime de corrupção activa, condenar o Recorrente APA, entendendo que este funcionou como corruptor activo do co-Arguido ROC, este enquanto corruptor passivo.
36. A tese erigida pelo acórdão recorrido é sustentada no facto de ROC, na qualidade de funcionário público, por ser agente da P.S.P., passar informações sobre vigilâncias que pudessem ter lugar nos estabelecimentos comerciais do Recorrente APA em troca de valores, fosse em numerário, fosse em refeições.
37. Todavia, compulsados os factos dados como provados em relação a este crime, designadamente os factos 380, 780, 960, 1390, 1400 e 1410, entre outros, os mesmos comprometem essencialmente a relação entre o Recorrente FDA e o co-Arguido ROC, nunca o arguido APA.
38. Contudo, o Tribunal recorrido vem ainda assim a dar como provados um conjunto de três factos (240, 450 e 800), que não só surgem desgarrados de toda a dinâmica factual, como só um deles, o facto provado 800 surge explicado (e mal) em sede de fundamentação.
39. Para os factos 240 e 250, inexiste qualquer elemento na Fundamentação que suporte as supraditas conclusões vertidas sob a forma de factos provados, sem, no entanto, escrever uma linha sobre o percurso lógico dedutivo que lhe permitiu alcançar tal conclusão, em violação do art°. 374° n.° 2 do C.P.P., o que implica, nos termos do art°. 379° n.° 1 alínea a) C.P.P., o que, salvo melhor opinião, fulmina o acórdão recorrido do vício de nulidade, por falta/insuficiência de fundamentação, ainda para mais tratando-se esta questão, como vimos, de questão que foi essencial para que fosse o Recorrente APA condenado pelo respectivo crime.
40. Cautelarmente, sem conceder, impugnam-se os seguintes factos dados como provados: 24° na parte “APA” e “recorriam ao Arguido ROC, Agente da PSP de MM…, para os avisar da existência de fiscalizações por parte da PSP.”, 45° na parte “numa clara alusão ao pagamento de quantia indeterminada como contrapartida da informação fornecida por ROC pelas informações que o mesmo presta.”, 80° na parte “referindo-se a ROC” e “fazendo alusão ao aniversário de ROC.”
41. Se no que concerne aos factos 240 e 450 da factualidade dada como provada, inexiste qualquer fundamentação no acórdão recorrido, pelo que não se compreende como é que o Tribunal recorrido alcançou aquela factualidade dada como provada, já quanto ao facto provado 800 a transcrição da conversa telefónica para o Alvo ..., constante do produto n.0 27949, junto do Apenso F, Vol. 2, impunha decisão diversa da recorrida (art0. 4120 n0 3 al. b) do C.P.P.).
42. Em sede de fundamentação, o Tribunal a quo, a páginas 278 do Acórdão recorrido considera que há uma escuta que permite dar como provado o facto 800 e daí extrair ou estender o crime também para o Recorrente APA.
43. Contudo, o Tribunal Recorrido não analisa a transcrição da referida escuta telefónica, bastando-se com a interpretação que o OPC/MP fazem da mesma, sendo que, salvo melhor opinião, é a transcrição que é a prova e que tem de ser escrutinada e valorada e não a interpretação que dela se faz.
44. Na verdade, compulsada a referida transcrição da escuta telefónica do Apenso F, Vol. 2, para o Alvo ..., produto n.0 27949, não se retira de lado algum a quem o Arguido FDA diz que deu dinheiro.
45. Desta mera conversação entre padrinho (Recorrente APA) e afilhado (Recorrente FDA), ambos exploradores de estabelecimentos comerciais onde é razoável conceber que a todo o momento efectuam pagamentos a alguém, o Tribunal a quo extrai que “dar dinheiro ao outro” significa, necessariamente, que o “outro” é ROC e que “ele fez anos” respeita, forçosamente, também a ROC uma vez que o seu aniversário ocorreu há 4 dias atrás! Tudo isto não passa de uma mera conjectura!
46. Acresce que, há manifesto erro no advérbio de modo utilizado pela polícia/M.°P.° e que mereceu acolhimento, sem qualquer fundamentação, pela decisão recorrida – “IMEDIATAMENTE” – quando estamos a falar de dia 03 para dia 07... convenhamos que o “IMEDIATAMENTE” tem de ser bastante flexível!
47. Dito isto, não decorre de nenhuma prova, tanto que não é dado como provado, que o Recorrente APA saiba qual a fonte de onde provêm as informações e, muito menos, que pague, em dinheiro ou em géneros, a qualquer pessoa para esse fim!
48. Na verdade, entre os Arguidos APA e ROC não há qualquer relação sinalagmática, isto é, entre eles não existem, provadas, prestações recíprocas e interdependentes segundo as quais o primeiro entregue ao segundo qualquer tipo de compensação e o segundo informe o primeiro da existência de fiscalizações.
49. Esse sinalagma, segundo a decisão recorrida existiria entre os Arguidos FDA e ROC, mas já não parece defensável em relação ao Recorrente APA porquanto os factos provados nem sequer referem quaisquer condutas típicas do crime de corrupção activa por parte deste.
50. Para o Recorrente APA ser responsabilizado pelo crime de corrupção activa, era necessário que o Tribunal recorrido tivesse dado como provado que aquele Recorrente sabia que as informações que recebia relativamente à existência de fiscalizações tinham como fonte o Agente da PSP ROC e que tivesse ainda dado como provado que o Recorrente APA entregava e proporcionava a ROC qualquer tipo de contrapartida!
51. Não o tendo feito, não há qualquer sinalagma que coloque o Recorrente APA dentro do aludido esquema de corrupção!
52.Também é curioso notar que, perante uma investigação criminal que se arrastou durante 2 (dois) anos e com recurso ininterrupto a escutas telefónicas, a convicção do Tribunal recorrido relativamente à participação do Recorrente APA no esquema da corrupção se tenha formado pelo conteúdo de uma única escuta telefónica da qual, como acima dissecámos, não se extrai o que se pretende extrair.
53. É, por isso, legítimo retirar do exercício motivacional que o Tribunal recorrido não faz que, caso o tivesse feito, o princípio do in dubio pro reo, apontaria o único caminho possível a ser seguido pelo Tribunal a quo, o que faria com que também, por esse corolário, tivesse de ser ABSOLVIDO.
54. Assim, deverão os factos provados 24.°, 45.° e 80.° passar a constar da factualidade dada como não provada, porquanto a prova acima aludida que impõe, inelutavelmente, que se dê como não provado o facto 80.° terá necessariamente de importar igual destino aos factos 24.° e 45.° nas partes assinaladas, puramente conclusivas, que, como se viu, não encontram respaldo na prova produzida determinando, em consequência, a ABSOLVIÇÃO do Recorrente APA, na medida em que os factos provados não confirmam que o Recorrente praticou os comportamentos típicos do crime de corrupção ativa, p. e p. pelo art.° 374.°, n.° 1 do C.P.
55. No que concerne ao crime de tráfico de influência, p. e p. pelo artigo 335.°, n.° 2, do C.P, o Tribunal recorrido sustentou toda a factualidade dada como provada tendo por base, apenas e só, as transcrições telefónicas.
56. Sem prejuízo de, compulsada a fundamentação do acórdão recorrido a págs. 281 ser manifestamente insuficiente a motivação que lhe subjaz para sustentar a condenação de ambos os Recorrentes (pelo que também neste segmento a decisão recorrida enferma do vício de falta de fundamentação por violação dos artigos 374°, n° 2, e 379°, n° 1, alínea a), do C.P.P.); É NO ENTANTO APREENSÍVEL QUE TODOS OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS PARA ESTE CRIME foram obtidos por meio de escutas telefónicas – cuja prova é proibida porque não se trata de crime de catálogo para efeitos de aplicação do art.° 187° C.P.P.
57. Não foi produzida qualquer prova válida para suportar a condenação dos Recorrentes pelo crime de tráfico de influência, na medida em que, relativamente à actuação entre os três Arguidos (os aqui Recorrentes e AS) não há, para efeitos de crime de tráfico de influência, um único facto provado que resulte de meios de prova diversos de intercepções telefónicas.
58. Uma vez mais, o Tribunal a quo não conseguiu abstrair-se do conteúdo das escutas – in casu, legalmente inadmissíveis (art°. 187° n° 1 e 126 n° 3 do C.P.P.), porquanto nem sequer foram, como é lógico, requeridas no Inquérito para efeitos de perseguição do crime em presença – e condenou os Recorrentes APA e FDA nas penas, respectivamente, de 2 anos e 1 ano e 9 meses de prisão!
59. Assim, não havendo prova diversa daquela que resulta das intercepções telefónicas e não havendo outros meios de prova que tenham por objecto a prova do crime de tráfico de influência, só resta concluir que se impõe, logicamente, a ABSOLVIÇÃO dos Recorrentes APA e FDA quanto à prática do referido crime.
60. Quanto ao crime de burla tributária, a condenação dos Recorrentes APA e FDA resulta dos factos 349° a 498° dados como provados e cuja significativa maioria dos elementos probatórios assenta exclusivamente em conteúdos de intercepções telefónicas.
61. Entendem os Recorrentes que, não só o recurso às escutas telefónicas por forma a provar o crime em apreço não podia ter procedido nos moldes em que, efectivamente, procedeu, como também não podem as escutas telefónicas ser um meio de prova exclusivo que ignora a concorrência e existência de outros meios de prova.
61. Foi só na última fase deste processo criminal e após delimitação temporal dos factos integradores do crime de burla tributária, pois segundo o Tribunal recorrido (e bem) apenas importa considerar o período de 1 de Janeiro de 2016 a 28 de Fevereiro de 2018, que, tendo unicamente por base os montantes monetários em causa, o Tribunal de julgamento decidiu que o conteúdo de todas as escutas telefónicas eram provas admissíveis para suportar a condenação dos Recorrentes pelo crime de burla tributária.
62. Ou seja, foi a jusante, e não a montante, que conhecendo, através das escutas, os valores monetários em causa, o Tribunal a quo considerou estar-se perante crimes de burla tributária agravada, o que permite enquadrar o crime na alínea a) do artigo 187° n.° 1 do C.P.P. e recorrer a escutas telefónicas como meios de prova.
63. Segundo a testemunha FB, Militar da Guarda Nacional Republicana – Cabo, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas início às 14:53:35 horas, interrompido às 16h40m, retomado às 17:00h e termo às 17:56:09, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 15.ª, datada de 16-11¬2020, relevando em concreto os minutos 00:07:19 a 00:08:15 (cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), investigava-se um eventual crime de tráfico de estupefacientes (que, convém esclarecer que nunca existiu e foi apenas uma forma que a GNR arranjou de escutar livremente todos os Recorrentes, por ser um crime de catálogo), quando através dessas intercepções telefónicas, foram investigados outros crimes, entre eles, crime de exploração de jogo ilegal, e a própria burla tributária aqui em causa, entre todos os outros que vieram a figurar na acusação/pronúncia!
64. Ora, face a esta factualidade dos “conhecimentos fortuitos” confessada e confirmada por uma das principais testemunhas de acusação, naturalmente que cabia ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre a validade das escutas, sobre a sua valoração enquanto meio de prova.
65. É consabido que quando estão em causa conhecimentos obtidos de forma acidental (conhecimentos fortuitos), e porque extravasam o objecto da investigação e podem complementar ou dar origem a outra investigação criminal, incidindo sobre diferente factualidade, o artigo 187°, n° 7, do C.P.P. impõe, na decorrência, aliás, de todo o encadeamento de princípios ínsitos à admissibilidade das intercepções telefónicas enquanto meio de obtenção de prova, a existência de um novo controle judicial, o qual, e bem, foi levado pelo Tribunal recorrido, na medida que careciam de avaliação os pressupostos legais da admissibilidade do meio de prova em toda a sua extensão.
66. Ora, estando em causa, no domínio em que nos encontramos, fundamentalmente, o direito à reserva da vida privada, o direito à inviolabilidade das telecomunicações e o direito à palavra, a regra é a da proibição de produção e valoração das gravações resultantes das escutas telefónicas.
67. O legislador fornece o elenco dos meios de obtenção de prova que são proibidos. Ou melhor, é proibida a produção de prova através desses meios. Até aqui estamos em linha de total concordância com o Tribunal recorrido, isto é, no controle judicial das referidas intercepções telefónicas enquanto meio de valoração de prova.
68. Com o que os Recorrente já não podem concordar, nem acompanhar o Tribunal recorrido, é com o momento em que este se colocou para realizar esta operação de controlo e validação das escutas enquanto meio probatório. E neste conspecto, com se verá, o Tribunal recorrido não conseguiu distanciar-se do facto de ter tido conhecimento do conteúdo das referidas escutas telefónicas.
69. Ora, o crime de burla tributária é, na sua forma simples, um crime que não permite a investigação através de intercepções telefónicas. Todavia, o Tribunal recorrido admite e valora este meio de prova para os Recorrentes
APA e FDA, por considerar que se trata de um crime na sua forma agravada (atento o valor), pelo que, a valoração das intercepções telefónicas, segundo o Tribunal recorrido é, neste caso, válida.
70. A questão podia e devia ter sido equacionada por outro prisma: nos termos da lei processual penal, o Tribunal recorrido para aquilatar da validade e admissibilidade das escutas telefónicas tem de colocar-se no momento em que as mesmas foram solicitadas, ou, no caso, do conhecimento fortuito de um alegado crime de burla tributária.
71. É que, nesse momento, quando pela primeira vez os investigadores “apanham” no radar das intercepções telefónicas a possível prática de um crime de burla tributária, nem os próprios a qualificaram, isto é, desconheciam se se tratava de um alegado crime de burla tributária agravada.
72. E, como o devido respeito, o que o Tribunal recorrido fez – para salvar a valoração das escutas telefónicas para os Recorrentes APA e FDA, foi colocar-se a jusante, isto é, não só depois de conhecer o teor das escutas em relação a este ilícito (notícia de crime) e de todas as posteriores operações aritméticas feitas, esquecendo que no momento em que aquela foi admitida (a montante), não só o objecto do processo (investigação) não tratava de tal crime como, pior, tomou-se por via das referidas intercepções telefónicas contacto com um ilícito que se considerou ser na sua forma simples e, como tal, insusceptível de ser considerado crime de catálogo.
73. Ora, foi nestes termos que o Tribunal a quo condenou os Recorrentes APA e FDA! Primeiro, tomou conhecimento integral do conteúdo das escutas sem aferir da validade da sua intercepção; depois, faz uma delimitação temporal. E nesses mesmos termos, resultou a absolvição do arguido JAP.
74. Ora, do ponto de vista processual, trata-se de um raciocínio que não pode ser efectuado a posteriori (isto é, após o Tribunal recorrido tomar conhecimento integral dos conteúdos das intercepções telefónicas), mas sim a priori, no momento em que o Julgador admite ou não a intercepção telefónica, tendo por base um alegado crime que não é de catálogo.
75. Mas não só o requisito de se tratar, ou não, de um crime de catálogo é nesse momento atendível, pois é imperativo observar ainda o disposto nos art.° 187° e 188° do C.P.P.
76. Serve isto por dizer que os Recorrentes não têm quaisquer dúvidas que para a salvação (incorrecta) das referidas intercepções telefónicas enquanto valoração probatória permitida, o Tribunal recorrido recorreu a um juízo ex post dessas mesmas escutas, isto é, quando das mesmas já era possível extrair um crime que por ser, alegadamente, qualificado, permitiu passar o crivo do catálogo, pois tal juízo ex ante não o permitia.
77. Assim, consideram os Recorrentes que: i) o alegado crime de burla tributária não motivou nem fundamentou as escutas telefónicas, uma vez que se tratou de conhecimento fortuito (conforme admitido em audiência pelo principal investigador): i) à data, mesmo esse conhecimento fortuito não podia ser admitido e/ou valorado, porquanto se suspeitou de uma burla tributária simples, pelo que, tais escutas não podiam ser valoradas.
78. No mais, acompanhamos o Tribunal recorrido na medida em que o desrespeito pelos requisitos e condições de admissibilidade legal das escutas telefónicas origina uma forma de obtenção de prova proibida, por força do disposto no artigo 1260, n.0 3, do Código de Processo Penal, logo sendo inadmissíveis, não podendo ser utilizadas.
79. Consequentemente, por se considerar que, in casu, as escutas telefónicas enfermam prova proibida e que, como tal, não podem ser valoradas como prova do crime de burla tributária impugnam-se expressamente os factos 3700, 3730 a 3760, 379, 3830 a 3910, 3930, 4000, 4010, 4050 a 4070, 4120 a 4210, 4240 a 4260, 4290 e 4300 por assentarem, exclusivamente, em conteúdos de intercepções telefónicas.
80. Perante essa impugnação, entendem os Recorrentes que os restantes factos provados não são suficientes para, per si, preencherem o tipo de ilícito criminal em causa, pelo que se impõe a absolvição dos Recorrentes APA e FDA quanto aos crimes de burla tributária.
81. Não obstante, ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sem conceder, entendem os Recorrentes que, em julgamento, foi produzida prova que não permite confirmar as referidas imputações criminais, mas que parece ter sido ignorada pelo Tribunal a quo assoberbado pelo conteúdo das escutas telefónicas – em nosso ver, legalmente inadmissíveis como tivemos oportunidade de expor.
82. Impugnam-se os seguintes factos dados como provados: o parágrafo imediatamente anterior ao facto 349º ao qual não corresponde número, na parte “delinearam um plano tendente a obter para todos um enriquecimento a que sabiam não terem direito”; 349° na parte o que sabiam não corresponder à verdade.; 354° na parte “os Arguidos APA e FDA e ALS acordaram com esta que ALS e sem que fosse necessário seguirem os trâmites supra descritos nem padecessem de qualquer doença”; 359° na parte “nunca foi precedida de consulta presencial, nunca tendo os Arguidos comparecido naquele Centro de Saúde nem a qualquer consulta médica com a arguida”; 362° na parte “bem sabendo que os respetivos teores não correspondiam à verdade”; 363° na parte “bem sabendo que os respetivos teores não correspondiam à verdade”; 365° na parte “situação enganosa que foi provocada junto da administração da segurança social.”, 483° na parte “bem sabendo todos que tal não correspondia à verdade, o que queriam e conseguiram.”; 484° na parte “mantinham-se no exercício das respetivas atividades profissionais e auferiam os respetivos vencimentos”; 486° na parte “não obstante saber que o teor dos mesmos não correspondia à verdade, uma vez que nunca consultou os Arguidos”; 487° na parte “CIT’s e deu ainda indicações a ALS para que as transmitisse aos Arguidos (o que esta fez) acerca do que estes deveriam explicar aos seus colegas, caso fossem convocados para Junta Médica, bem cientes ambas de que os seus papéis na execução deste plano eram essenciais à obtenção, pelos Arguidos, dos mencionados subsídios, o que quiseram e conseguiram”; 488° na parte “obtendo estes, assim, uma vantagem patrimonial a que sabiam não terem direito, provocando tal actuação o correspondente prejuízo àquela entidade estatal, o que queriam e conseguiram obter”; 489° na parte “não correspondem à verdade, não reflectindo uma situação real de doença daqueles, tanto mais que estes continuaram a exercer as respectivas funções nos seus estabelecimentos comerciais, não demonstrando padecer das respectivas incapacidades”; 491° na parte “quando na verdade trabalhavam nos estabelecimentos comerciais que gerem e exploram comercialmente, prestaram falsas declarações, induzindo em erro a Administração da Segurança Social, criando, desta forma, uma convicção naquele organismo estatal que não corresponde à verdade e quando os beneficiários a elas não tinham direito, o que bem sabiam, daí resultando um enriquecimento ilegítimo destes e consequente prejuízo causado à Segurança Social, nos valores supra indicados, o que queriam e conseguiram”; 493° na parte “sem que os Arguidos compareçam na consulta e bem sabendo que os mesmos não padeciam das patologias que constam dos CIT’s emitidos”; 494° na parte “sem que fosse necessário seguirem os trâmites supram descritos nem padecessem de qualquer doença;” 496.° na parte “sem que os visados sequer se dirigissem a este estabelecimento de saúde e fossem consultados pela Dr.ª MJ”. 497.° na parte “uma vez que não existia qualquer consulta nem a arguida procedia ao preenchimento dos registos clínicos daqueles visados”; 498° na parte “obterem um benefício que não lhe era devido, bem sabiam que o teor dos mesmos não correspondia à verdade e que ao utilizarem os mencionados CIT’s da forma supram descrita colocavam, como colocaram, em causa a credibilidade, confiança e fé pública associada à emissão de atestados médicos e ao que atestam, lesando dessa forma os interesses do Estado e fazendo crer à Segurança Social que os mesmos atestavam factos verdadeiros, o que quiseram e conseguiram.”
83. Estes são os factos essenciais ou nucleares que o Tribunal recorrido, de forma incorrecta, considerou como provados quando a prova produzida, não só não o permitia, mas sobretudo quando foi produzida prova em sentido contrário e, pasme-se, prova importante oficiosamente ordenada produzir pelo Tribunal recorrido ao abrigo do art°. 340° do C.P.P. que dela não retirou as devidas consequências.
84. As provas que impõem decisão diversa da recorrida são: os depoimentos prestados por MJFRBC, médica, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09h48m24s horas e termo às 10h13m20s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 16.ª, datada de 19-11¬2020; PATL, Inspetor da IGAS, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10h41m28s e termo às 11h24m48s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 12, datada de 05-11¬2020; JDRC, Inspetora da IGAS, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09h55m39s e o seu termo pelas 10h39m38s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 12, datada de 05-11-2020; ETOML, assistente técnica no Centro de Saúde de A…, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14h10m15s e o seu termo às 14h28m48s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 13, datada de 05-112020; MAVC, assistente técnica, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14h49m50s e termo às 15h17m50s,
conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 14, datada de 09-11-2020; MSSG, administrativa no Centro de Saúde de A… encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14h20m50s e termo às 14h48m08s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 14, datada de 09-11-2020; CMMJ, reformado, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10h27m44s e termo às 10h38m59s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 19, datada de 03-12-2020; JMAF, motorista de pesados de mercadorias, encontrando-se o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14h16m23s e termo às 14h37m48s, conforme ata de audiência de discussão e julgamento n° 20, datada de 03-12-2020.; e relevam ainda o Relatório de Inspeção IGAS fls. 6492 e 9267 e os Relatórios, juntos pela Segurança Social, de fls. 6186-6199 e 11348-11373.
85. Em julgamento, explicou a testemunha MJC (em concreto, aos minutos 00:05:26 a 00:06:00 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), que a fundamentação incompleta dos CIT é uma prática comum entre o pessoal médico e que isso não decorre de uma qualquer intenção de ocultar ou disfarçar os fundamentos que levam à emissão do CIT, mas sim de uma falta de sensibilização daqueles para o efeito. Também assim resulta das fls. 9275 verso do referido Relatório.
86. Aliás, constatando que a médica arguida Dra. MJR tem 2583 utentes associados enquanto médica de família (cfr. Relatório da IGAS fls. 9269 verso) é perfeitamente concebível que a incompletude dos mesmos resulte também do volume de utentes associados enquanto médica de família e à gestão do tempo de que pode despender para cada um deles. E também neste sentido confirmou a testemunha PL (em concreto, aos minutos 00:05:38 a 00:06:55 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), constatando o elevado número de utentes associados à Dra. MJR.
87. Ora, como confirmou a referida testemunha, um CIT com fundamentação insuficiente não significa que o utente visado não tenha, de facto, incapacidade para o trabalho! Um CIT, tenha ou não fundamentação bastante, não significa absolutamente nada acerca da real situação clínica do utente, mas significa tão-somente que a descrição dessa incapacidade e situação clínica, por parte do médico, não estão suficientemente detalhadas nesse documento.
88. Nesse sentido corroborou a testemunha JR, (em concreto, aos minutos 00:04:24 a 00:06:53 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), que da verificação do CIT não se consegue apurar se o utente tem ou não tem uma patologia. Consegue-se apenas ver se esse documento está ou não está completamente preenchido.
89. Por essa razão, em momento algum disse a referida médica perita nomeada pelo IGAS, que elaborou o Relatório, que os Recorrentes não apresentavam a patologia indicada, constatando apenas que os CIT – vários que não apenas os dos aqui Recorrentes – não estavam suficientemente completos.
90. Por outro lado, uma vez passado o CIT pelo médico do Centro de Saúde, existem outros médicos que reavaliam a situação clínica dos utentes e que confirmam, ou não, a manutenção da incapacidade para o trabalho e, consequentemente, a manutenção do recebimento de subsídios de doença.
91. Serve isto por dizer, que relativamente à manutenção da situação de incapacidade temporária dos Recorrentes, a arguida Dra. MJR não foi a única médica que avaliou os Recorrentes enquanto pacientes e que decidiu pela manutenção da sua incapacidade para o trabalho.
92. Como é normal nestas situações de doença prolongada – e como é também de conhecimento geral – a averiguação do estado de saúde dos pacientes e a consequente manutenção do recebimento de subsídios de doença tem sempre de passar pelo crivo da própria S.S., através das designadas juntas médicas e Comissões de Verificação do Sistema SVIT nas quais médicos designados pela própria S.S. atestam a subsistência da incapacidade.
93. Neste sentido, corroborou a testemunha Dra. MJC, (em concreto, aos minutos 00:21:04 a 00:22:33; 00:22:58 a 00:24:02 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), dizendo que não lhe causava estranheza que as pessoas fiquem de baixa por longos períodos de tempo, mas que nessas situações as pessoas são chamadas às juntas médicas para verificar a manutenção da situação de incapacidade – sendo essa a válvula de escape do sistema.
94. Não se compreende, portanto, como se dá como provado que os Recorrentes não padeciam de qualquer doença quando estes foram a várias juntas médicas – aliás, juntas aos autos –, as quais, como o próprio Juiz Presidente recorrido, e bem, denominou de “válvulas de escape”, e aí, perante um colectivo de médicos é decidido manter a situação de incapacidade e ainda assim fazer de conta que esta prova não foi produzida, já nos parece inaceitável.
94. A incapacidade dos Arguidos Recorrentes para trabalhar foi confirmada, TODAS as vezes, por médicos que não a médica arguida Dra. MJR (cfr. os correspondentes Relatórios, juntos pela Segurança Social, de fls. 6186-6199 e 11348-11373 cujos médicos atestam expressamente a subsistência de incapacidade dos Recorrentes)!
95. Pelo que não se concebe como é que o juízo técnico-científico dos médicos é posto em causa – sem qualquer fundamentação contrária de igual jaez – de tal modo que resulta na condenação dos Recorrentes APA e FDA pelo crime de burla tributária nas penas de 2 anos e de 1 ano e 9 meses de prisão, respectivamente.
96. Diz ainda a decisão recorrida que os Recorrentes APA e FDA não tinham qualquer incapacidade para o trabalho, pese embora beneficiassem de CIT nesse sentido, uma vez que aqueles eram por diversas vezes vistos fora da sua residência, a frequentar os seus locais de trabalho.
97. Porém, tal como é confirmado pela testemunha MJC, (em concreto, aos minutos 00:13:008 a 00:13:51 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu ), as pessoas a quem é passado um CIT não têm que permanecer na sua residência.
98. Naturalmente, os arguidos nunca tiveram recomendação clínica para permanecerem resguardados na sua habitação. Mas diga-se, ainda, que uma parte da actividade profissional dos Recorrentes – a gestão de estabelecimentos comerciais – implica, na prática, um verdadeiro acompanhamento daquilo que se passa nesses estabelecimentos. Não sendo, assim, de estranhar que os mesmos, pontualmente pudessem estar ainda que por escasso tempo presentes, precisamente, para acompanhar/gerir, não envolvendo, por isso, nesta parte qualquer esforço ou trabalho fisicamente esgotante que colocasse em causa a dita incapacidade.
99. Na verdade, a decisão condenatória não conseguiu abstrair-se das escutas telefónicas e obnubilou por completo a restante prova produzida, tanto que para este crime – como para os outros – não há UMA única referência à prova testemunhal e documental produzida e analisada em julgamento. A fundamentação da condenação assenta puramente em escutas telefónicas!
100. Ora, no presente caso é mais grave quando a prova produzida – repete-se, oficiosamente produzida pelo Tribunal recorrido – infirma aquele que é o entendimento que o Tribunal a quo fez das conversações telefónicas.
101. Repare-se que estamos num domínio onde, salvo melhor opinião, não são meras transcrições de escutas telefónicas que permitem avaliar do estado clínico de alguém! Saber se determinada pessoa/Recorrente padece, ou não, de uma maleita, não é um escrutínio que o Tribunal recorrido possa fazer através de escutas telefónicas.
102. O Recorrente APA, para além de sofrer de hipertensão arterial há muito diagnosticada e para a qual toma medicação diária, sendo constantemente seguido pelo seu cardiologista, em Outubro de 2016, vem a ser-lhe diagnosticado uma fibrilação auricular, caracterizada por um tipo de arritmia cardíaca, que impossibilita que o sangue seja bombeado eficientemente para o coração, desencadeando a formação de coágulos dentro do coração. Inclusivamente, o Arguido Recorrente sofreu um ataque cardíaco em pleno bloco operatório, no Hospital da Luz, quando se preparava para ser submetido a uma intervenção cirúrgica relativamente simples.
103. É, por essa razão e em virtude do agravamento de todos estes problemas de saúde, que o Recorrente solicitou vários pedidos de marcação de consultas, no centro de saúde a que pertence, uma vez que se sentia fisicamente debilitado.
104. Neste sentido, corrobora a testemunha JF, (em concreto, aos minutos 00:03:45 a 00:04:04; 00:07:15 a 00:07:45 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), referindo que Recorrente APA tinha que recorrer a si para o ajudar nas entregas dos carros que vendia, em virtude de a sua doença não o permitir. Diz ainda que já há alguns anos que o Recorrente APA se revela um homem mais desanimado, tendo conhecimento de que tem problemas cardíacos.
105. Por sua vez, o Recorrente FDA, no ano de 2015, foi acometido por um episódio de surdez neuro-sensorial súbita, ao ouvido esquerdo, levando-o inclusivamente a ser acompanhado no Hospital CUF em Cascais e a realizar tratamentos em câmara hiperbárica por forma a atenuar sequelas e retomar a audição.
106. Também assim confirmou a testemunha CJ, (em concreto, aos minutos 00:09:23 a 00:10:45 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), que também já foi submetido ao mesmo tipo de tratamento e falava várias vezes com o arguido sobre o assunto sabendo e conhecendo a situação clínica deste que acompanhou.
107. Ora, nos períodos em que a sua doença se agudizava, não era possível ao Recorrente FDA continuar a trabalhar no restaurante, sobretudo junto ao grelhador (a sua actividade habitual), por se encontrar exposto a um ambiente barulhento durante muitas horas seguidas.
108. Note-se que, não obstante não ter resultado da prova produzida que os Recorrentes não tenham comparecido em todas as consultas médicas no Centro de Saúde, é preciso dizer que não é obrigatória a presença do utente nessa consulta para a emissão do atestado de incapacidade temporária.
109. Desde logo, cruzadas as informações da Tabela 4 e da Tabela 5 do Relatório da IGAS de fls. 6492, apura-se que ao longo de 6 anos foram emitidos 46 CIT para o Arguido APA e, nesses mesmos 6 anos, existem 49 RAC (CONSULTA) correspondentes. Para o Arguido FDA foram emitidos 48 CIT e, nos mesmos 6 anos, existem 49 RAC.
110. A testemunha MC, (em concreto, aos minutos 00:06:48 a 00:10:02 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), explicou que para confirmar as consultas era necessário que o utente em questão, ou qualquer pessoa que se apresentasse com o documento de identificação desse utente, se dirigisse ao balcão de atendimento para efectuar, junto da assistente técnica, o RAC dando, desse modo, conhecimento ao médico de que o utente já se encontrava na sala de espera. Referiu ainda, o que aliás é de conhecimento geral, que no meio de tanta confusão e de tanta gente não consegue confirmar se o utente titular do documento de identificação apresentado se encontra efectivamente a aguardar na sala de espera, mas o seu trabalho consiste apenas em confirmar a consulta quando lhe é apresentado o documento.
111. Também a testemunha MG, (em concreto, aos minutos 00:06:13 a 00:06:34; 00:07:35 a 00:08:03; 00:08:26 a 00:09:25 – cujo depoimento no corpo da motivação se transcreveu), disse que a marcação de consultas depende da autorização da médica respectiva e que quando a arguida se dirigia ao balcão de atendimento para marcar consultas, o utente em questão teria que estar a aguardar na sala de espera porque no guichet só pode estar uma pessoa. Também refere que não tem como saber se os utentes aguardam de facto na sala de espera, nem sequer se sobem no elevador para as consultas, até porque estão sempre muitas pessoas na sala de espera.
112. Ora, se dos autos e dos depoimentos das testemunhas não resultou qualquer prova sobre a ausência dos Recorrentes nas consultas médicas do Centro de Saúde, não pode ser o Tribunal a quo sem base probatória a concluir que os Recorrentes nunca estiveram presentes!
113. Repete-se e sublinha-se que, na sequência das emissões das baixas médicas, os Recorrentes sempre foram notificados para comparecer regularmente nas comissões de verificação, vulgarmente designadas por juntas
médicas, compostas por médicos nomeados pela Segurança Social e que, como tal, são isentos e completamente imparciais.
114. Os factos acima impugnados só resultaram provados porque o Tribunal, sem apresentar a mais singela fundamentação, desconsiderou por completo a ampla factualidade que os Recorrentes alegaram em sede de contestação.
115. Face ao exposto, sem prejuízo das limitações de prova e vícios da decisão assinalados, devem os factos dados como provados passarem ao elenco dos não provados e, em consequência, serem os Arguidos Recorrentes absolvidos do crime de burla tributária de quem vêm condenados e bem assim do PIC que o acompanha.
116. Por fim, quanto à condenação do arguido FDA pelo crime de detenção arma proibida, entende o Recorrente FDA que o Tribunal a quo não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163° n°. 2 do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada.
117. Dessa errada interpretação, resultou a condenação do Recorrente pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86° n.° 1 alínea d), da Lei n.° 5/2006, a qual foi cominada na pena de 9 (nove) meses de prisão (!).
118. O elemento probatório subjacente à condenação, que resulta dos factos provados 527°, 528° e 529°, é o Relatório Pericial de fls. 9687 a 9688, cujo excerto se transcreve: “O aparelho foi apresentado em razoável estado de conservação, sem bateria e carregador próprio, pelo que não foi possível realizar o teste de descarga para medição dos valores de tensão elétrica desenvolvidos.”.
119. Sem grandes delongas, o Recorrente FDA vem condenado numa pena de 9 (nove) meses de prisão por deter um aparelho que o Relatório Pericial qualifica de arma, para efeitos de aplicação da Lei n.° 5/2006, mas que, simplesmente, não é submetido a qualquer teste, nem é averiguada a sua capacidade efectiva de produção de descarga eléctrica.
120. A perícia não conseguiu tirar nenhuma conclusão acerca da idoneidade do aparelho para produzir descargas eléctricas, nem sequer mediu os valores de tensão eléctrica envolvidos. Por conseguinte, não pode ser o Tribunal a quo quem tira essa conclusão! Trata-se de uma condenação que carece de qualquer suporte probatório e, por conseguinte, não tem respaldo legal!
121. Ora, com o devido respeito pelo Tribunal a quo, mas não se compreende onde está inserida, no art.° 86° n.° 1 alínea d), da Lei n.° 5/2006, a criminalização da detenção do aparelho que o Recorrente FDA utiliza apenas como lanterna e que não funciona – mas este aspecto importantíssimo não foi constatado. É que é pressuposto do crime em causa que o aparelho funcione efectivamente!
122. Evidentemente, o único meio de prova subjacente à condenação – a perícia – não conclui absolutamente nada relativamente à aptidão da produção de descarga eléctrica nem relativamente à sua capacidade agressora, pelo que a imputação criminal jamais pode proceder, impondo-se a absolvição do arguido FDA.
123. Face ao exposto, entende-se que deve o arguido FDA ser absolvido dos crimes de exploração ilícita de jogo e detenção de arma proibida; deve o arguido APA ser absolvido do crime de corrupção activa; e devem os arguidos FDA e APA ser absolvidos dos crimes de burla tributária e tráfico de influência.
124. Ainda que não se entenda dar razão, integral ou parcial, ao acima exposto, consideram todavia os Recorrentes que o Tribunal a quo pecou por algum excesso na determinação das penas aplicadas aos Arguidos, que extravasam em muito a medida da culpa, atendendo ao facto de que a pena deve ser medida de acordo com a necessidade de tutela dos bens jurídicos que se exprime no caso concreto.
125. Na determinação das penas a aplicar aos Arguidos, deve o Tribunal seguir o disposto nos artigos 40º, 71º e 72º do C.P., tendo, nomeadamente, em conta a culpa do agente e também tendo em conta as circunstâncias que depõem a favor dos Arguidos, nomeadamente as suas condições pessoais e socioeconómicas e o grau de ilicitude dos factos e as suas consequências.
126. A determinação da medida concreta deve ser proporcionalmente compatível com a prevenção geral (que depende da natureza e do grau de ilicitude do facto face ao maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), e adequada a satisfazer as exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento).
127. O Arguido APA, viúvo, pai e avô, tem 74 anos de idade e é oriundo de um agregado familiar convencional e organizado, sem registos de problemas relevantes com impacto no seu processo de integração social. É um Arguido primário, que nada tem averbado no seu Registo Criminal, sendo confrontado pela primeira vez com o sistema judicial. No seu meio socioresidencial, é visto como um homem trabalhador, dedicado à comunidade, disposto a ajudar os outros e apresenta um percurso de vida pautado pela correcção e pelo exemplar enquadramento familiar, social e profissional.
128. Já o Arguido FDA tem 46 anos de idade e é pai de um filho de 13 anos de idade com quem mantém fortes laços afectivos. À semelhança do seu tio e padrinho APA, que é visto como um pai para si, é tido como um homem trabalhador e empenhado na comunidade.
129. Em primeiro lugar, no crime de exploração ilícita de jogo, não só não se pode concordar com a dosimetria das penas aplicadas, como muito menos se pode aceitar que ao Arguido FDA se aplique a pena de prisão de 1 ano e 9 meses ao mesmo tempo que ao Arguido APA se aplica a pena de prisão de 1 ano e 6 meses.
130. Não podemos também ignorar que o legislador não imprime a gravidade ou a repressão ao crime de exploração ilícita de jogo que, a título de exemplo dado pelo Tribunal a quo, imprime ao crime de furto simples (e que pode ser o simples furto de um chocolate num supermercado).
131. O mesmo Tribunal apelida até a exploração ilícita de jogo de “bagatela criminal.”
132. Quanto à medida concreta da pena encontrada para o crime de burla tributária agravada, salvo melhor opinião, também nos parece desajustada por ultrapassar a medida da culpa dos Recorrentes.
133. Acresce que, no caso, mesmo a confirmarem-se tais condenações, inexistem particulares exigências de prevenção especial, desde logo, porque os Arguidos são primários quanto à natureza deste crime e, como é bom de verificar pelos factos dados como provados quanto à sua personalidade, estão perfeitamente inseridos na sociedade em termos sociais, familiares e económico-profissionais.
134. Relativamente ao crime de corrupção ativa simples, a cominação da pena de 2 anos de prisão para o Arguido APA é notoriamente exagerada quando comparada com a pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada ao Arguido FDA, não só porque entendemos que o Arguido APA não praticou o referido ilícito criminal, mas porque 2 anos de prisão extravasa, em muito, a medida da culpa.
135. O crime de tráfico de influência simples, ao abrigo do qual se condena o Recorrente APA a uma pena de 2 anos de prisão e o Recorrente FDA 1 ano e 9 meses de prisão, revela-se, nos mesmo termos, uma pena excessiva face às concretas finalidades de prevenção.
136. Por fim, a cominação de uma pena de 9 meses de prisão ao Arguido FDA pela detenção de arma proibida é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta as concretas exigências de prevenção especial e geral que se fazem sentir, entendendo-se suficiente a mera censura da detenção de uma lanterna eventualmente apta à produção de descarga eléctrica.
137. Entendem os Recorrentes, que para os crimes de tráfico de influência e detenção de arma proibida, deve ser observado o critério do artigo 70º do Código Penal segundo o qual o Tribunal deve dar preferência à pena não privativa de liberdade porquanto esta se revela adequada e suficiente para assegurar as finalidades da punição. Nesses termos, dever-se-ão substituir as penas de prisão por penas de multa.
138. Em qualquer caso, deve manter-se a suspensão das mesmas, porquanto as exigências de prevenção especial e geral e as finalidades das punições se mostram plenamente satisfeitas.
139. Assim, para o Arguido Recorrente APA, - admitindo como supra se disse, que nenhuns dos anteriores argumentos procedem e que a condenação pelos crimes que vem condenado se mantém – entende-se que deverá ser condenado nas seguintes penas parcelares concretas: i) a pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1, do C.P.; i) na pena de 1 ano de prisão e 150 dias de multa à taxa diária de € 20,00, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.º, da Lei n.º 422/89; iii) na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT, e pelo art. 202.°, al. a), do Código Penal; iv) na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art°. 335.°, n.° 2, do Código Penal.
140. Em cúmulo jurídico das penas, deverá o Arguido Recorrente ser condenado numa pena única não superior a 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução bem como na já determinada pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 20,00.
141. Nos mesmos termos, para o arguido FDA – admitindo como supra se disse, que nenhuns dos anteriores argumentos procedem e que a condenação pelos crimes que vem condenado se mantém - entende-se que deverá ser condenado nas seguintes penas parcelares concretas: i) na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art.° 374.°, n.° 1, do C.P.; ii) na pena de 8 meses de prisão, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art.° 108.°, da Lei n.° 422/89; ii) na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art.° 87.°, n.°s 1 e 2, do RGIT, e pelo art.° 202.°, al. a), do Código Penal; iv) na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art.° 335.°, n.° 2, do Código Penal.
142. Em cúmulo jurídico das penas, deverá o Arguido Recorrente ser condenado numa pena única não superior a 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução bem como na já determinada pena de 30 dias de multa à taxa diária de € 10,00, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 40.°, n.° 2, do DL 15/93.
(...)”
14. O arguido BMS recorreu igualmente do acórdão, pedindo a revogação do acórdão recorrido e absolvido o recorrente por ter existido erro notório na apreciação da prova e no enquadramento jurídico dos factos e, bem assim, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou, caso assim não se entenda, ser a pena de prisão aplicada ao arguido ser substituída por pena de multa ou outra pena não privativa da liberdade.
Para o efeito formula as seguintes conclusões:
“A. Analisado atentamente o douto Acórdão recorrido, entende o Recorrente que, de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não se vislumbram factos probatórios suficientes, concretos e objetivos que permitissem dar como provada a factualidade apurada e que fundamentou o douto Acórdão ora recorrido, em particular no que respeita ao preenchimento dos elementos típicos objetivos do crime de material de jogo, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro na apreciação da prova, bem como no enquadramento normativo efetuado quanto ao consagrado no art. 115.° do DL n.° 422/89, de 2 de dezembro que reformula a Lei do Jogo.
B. Ora, diga-se, desde logo, que, o crime material de jogo, previsto no art. 115.° do DL n.° 422/89, de 2 de dezembro, sendo certo que constitui uma forma de tutela antecipada, relativamente ao crime de exploração previsto no art. 108.° do mesmo diploma, não poderá “abarcar” toda e qualquer conduta que, por si só, não preencha os elementos objetivos do crime de exploração, e, nessa medida, punir o agente pela referida tutela antecipada do crime material de jogo.
C. Sendo que, por material de jogo, sempre se deverá entender todo o material e demais utensílios, cujo modo de ser das suas particularidades, das suas características próprias e prontidão de uso, apontam, caraterizadamente, para a sua utilização na prática de jogos (neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu douto Acórdão de 07-03-2012, proferido no Proc. 191/09.5EACBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt).
D. Refere o Tribunal a quo que, em suma, o Recorrente tinha a “função” de transportar, transacionar e divulgar material de jogo de fortuna ou azar, porquanto o mesmo, alegadamente, teria perfeito conhecimento sobre o modo de funcionamento, atualização e manutenção das máquinas referidas nos autos, o que, no seu entender, consubstanciaria a prática do aludido crime de material de jogo.
E. Ora, atendendo aos elementos objetivos do tipo (falta de autorização da Inspeção Geral de Jogos; qualquer das modalidades de ação/condutas descritas no ato de fabricar, publicitar, importar, transportar, transacionar, expuser ou divulgar material; tendo por objeto da ação material, utensílios e componentes que sejam destinados à prática de jogos de fortuna ou azar), facilmente se constata que, o “mero transporte” e a “mera posse” de tais materiais e equipamentos não constam como elementos objetivos do crime material de jogo (vide, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10-09-2015, no Proc. 2553/11.9TAVLG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
G. Isto posto, salvo o devido e merecido respeito, verifica-se que, em momento algum, se produziu prova objetiva, certa e segura que permitisse fundamentar que todas as deslocações do Recorrente a estabelecimentos comerciais, ou eventuais encontros com exploradores, se destinavam à manutenção, colocação ou substituição de máquinas de jogo ilegal, apuramento de contas e divisão de lucros, tão pouco que tivesse o ora Recorrente procedido ao fabrico, publicitação, importação, transação, exposição ou divulgação de um qualquer material e utensílios que sejam caraterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar, tal qual os mesmos vêm definidos no DL n.° 422/89, de 02 de Dezembro.
H. Sendo certo que, pese embora o constante dos relatórios de diligência externa, revistas, buscas e, bem assim, os relatórios periciais juntos aos autos a fls... pelo OPC, a verdade é que, não se apurou, relativamente a todas as “máquinas” e equipamentos descritos nos autos, que os mesmos fossem efetivamente aptos e destinados (somente) à exploração de jogos de fortuna ou azar, tão pouco foi possível estabelecer um nexo de imputação dos factos provados ao ora Recorrente, seja, que o material que era transportado, divulgado e colocado se destinava, efetivamente, à exploração de jogos de fortuna ou azar, ou em que condições/circunstâncias, foram adquiridos, transportados ou instalados, e até mesmo os fins a que se destinavam.
I. Veja-se, em concreto, que, do Auto de Busca de fls. 220 a 226 (do Vol. I Apenso O) realizado pelo OPC à sede da sociedade ... – Unipessoal Lda., da qual o Recorrente é sócio-gerente, consta que «não foram detetados indícios de jogo ilícito».
J. Por sua vez, atente-se, a título de exemplo, no relatório de vigilância externa n.º 107, de 26/01/2018, de fls. 5483 a 5496, onde, não obstante as conclusões especulativas, no que à pessoa do Recorrente Arguido diz respeito, retiradas pelo OPC, sempre se poderá constatar que o material alegadamente transportado se encontrava coberto com um pano, não sendo possível concluir, como erradamente fez o OPC, que tal equipamento se trataria de uma «máquina de fortuna ou azar».
L. Porém, ainda assim, sempre se entende que, uma qualquer conduta imputada ao Recorrente, de detenção de tal material, não integrará o referido tipo legal de crime, desde logo, por força do princípio da legalidade, que impede o alargamento de significados das expressões indicadas pelo legislador no que à ação típica se refere. É esse o fundamento da proibição da analogia no direito penal.
M. Não obstante, ainda que o Tribunal a quo alicerçasse o seu entendimento na configurada tutela antecipada de outro crime, nomeadamente no crime de exploração ilícita de jogo do art.°. 108.° do DL n.° 422/89, o certo é que, não bastará sustentar para efeitos de punição pelo art. 115.° que o material apreendido, transportado ou divulgado, necessariamente, se destinava à exploração, devendo colocar-se em hipótese se tais materiais não poderiam ser meros objetos/complementos para efeitos de reparação de máquinas de diversão, configuração e acesso à internet, atendendo, até, à circunstância de o Recorrente ser sócio-gerente da sociedade ... – Unipessoal Lda., cujo objeto social consiste na «atividade de comércio a retalho de computadores e programas informáticos; comércio de equipamentos e serviços de informática; reparação e manutenção de equipamentos informáticos; prestação de serviços em consultoria de informática; gestão e marketing; e compra e venda de software e hardware».
N. Aliás, no que à pessoa do Recorrente diz respeito, nos autos de apreensão respetivos, apenas se detetou a existência de material informático sem relação ao que, à data, o inquérito investigava, e, jamais, resultou, para além de tal detenção, que o Recorrente expusesse, transacionasse, divulgasse ou publicitasse qualquer material relacionado com jogos de fortuna ou azar.
O. Pelo que, entende o Recorrente que, face à matéria provada, os factos em si apenas demonstram, em última instância, a eventualidade para desenvolver jogos de fortuna ou azar, pois que o que se verificou foi, tão só, a existência de muito material informático.
P. No entanto, o legislador não quis punir a mera detenção (posse ou guarda do material), razão pela qual a colocou fora da ação típica, pelo que, não poderia o Recorrente ser alvo de qualquer reação penal.
Q. Por outro lado, sempre deverá atender-se ao teor do relatório social junto aos autos a fls..., no qual se afirma que, não obstante o ora Recorrente revele conhecimentos de eletrotécnica, o certo é que, o mesmo não dispõe de quaisquer interesses profissionais e/ou pessoais, no que ao mundo das máquinas de jogo diz respeito, pois, quer a faturação apresentada pela sobredita sociedade, quer o trabalho desenvolvido, afastam-se por completo da prática de ilícito-típicos, nomeadamente, dos efeitos nefastos produzidos pela exploração/materialização de jogo ilícito.
R. Pelo que, manifestamente se entende, o Tribunal a quo deu um salto demasiado ambicioso para a punição pelo art. 115.º, já que não logrou fazer a completa e objetiva correlação do material transportado, divulgado e transacionado e a sua configuração, preparação e aptidão para fins de exploração em estabelecimentos comerciais, sendo que, o elenco aí previsto é taxativo (vide, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 27-09-2017, no Proc. 118/11.4PFVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
S. Entendendo o Recorrente que, quanto a este crime, à semelhança dos demais que lhe vinham imputados, deveria ter sido absolvido, uma vez que, foram incorretamente julgados os pontos de facto vertidos no douto Acórdão recorrido, sob os pontos 152. a 156.; 162. a 164.; 186. a 197.; 200. a 203.; 235. a 237.; 263.; 266. a 270.; 271. a 287.; 309.; 329. a 348.
T. Entende, ainda, o Recorrente que as penas (de prisão e de multa) que lhe foram aplicadas se revelam ABSOLUTAMENTE EXCESSIVAS e DESADEQUADAS.
U. Ora, perante uma moldura penal abstrata aplicável ao crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de dezembro, de prisão até 2 anos e multa até 200 dias, foi o Recorrente condenado na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (suspensa na sua execução) e de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 20,00€ (vinte euros), num total de 3.000,00€ (três mil euros).
X. Antes de tudo o mais, importa desde logo referir que, delimitando-se a pena a aplicar ao Recorrente na culpa deste, e, bem assim, nas exigências de prevenção, geral e especial, sempre resulta que, de forma alguma se poderá compreender e aceitar as penas aplicadas, na medida em que, extravasam claramente a culpa deste e as próprias necessidades de prevenção, e, não têm devidamente em conta as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do mesmo Recorrente.
Z. Isto posto, é manifestamente incompreensível, como se afigurou sustentável ao Digníssimo Tribunal a quo aplicar ao Recorrente uma pena de prisão e uma pena de multa que ultrapassam o meio das penas abstratamente aplicáveis e que se aproximam mesmo dos seus máximos.
AA. Até porque, face a toda a matéria factual pela qual o ora Recorrente vinha pronunciado, não se logrou apurar que o mesmo tivesse enriquecido o seu património, com a prática de ilícitos relacionados com a exploração de jogos de fortuna ou azar e de favorecimento pessoal, e a subsequente omissão de rendimentos auferidos, delapidando o património dos seus utilizadores e do Estado, ainda sob a forma de branqueamento, razão pela qual foi absolvido da prática dos crimes de favorecimento pessoal, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.
BB. Ademais que, sempre haverá que atender-se à total ausência de antecedentes criminais e, bem assim, de notícia posterior de factos similares ou de quaisquer outros factos de natureza criminal por parte do ora Recorrente e, bem assim, à sua total e absoluta inserção social e familiar, além do que, sempre temos os 5 (cinco) anos que decorreram já desde a factualidade em causa nos autos.
CC. Neste sentido, entende o Recorrente que lhe deveria ter sido aplicada pena de prisão substancialmente inferior (nomeadamente, inferior a um ano), e, consequentemente, que essa pena de prisão, por a sua execução não se mostrar exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, sempre tivesse sido substituída por uma pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, nos termos do preceituado no art. 43° do C.Penal, até porque, assim sucedendo, também sempre resultariam realizadas de forma absolutamente adequada e suficiente as finalidades da punição (vide, a propósito, o douto Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2014, proferido no Proc. 18/13.3GAFCR.C2 e disponível em www.dgsi.pt).
DD. Aliás, aquando da escolha e determinação da medida da pena aplicada, o Tribunal a quo, concebeu, desde logo, um prognóstico favorável ao cumprimento da pena na comunidade, entendendo que a simples censura do facto e a ameaça de prisão, conjugada com a pena de multa aplicada, seriam suscetíveis de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição. (cfr. pontos 628. a 659. dos factos dados como provados).
EE. Finalmente, no que à medida concreta da pena de multa aplicada diz respeito, é, ainda incompreensível e absolutamente desproporcional, o quantitativo diário que o Digníssimo Tribunal a quo julgou por adequado ao caso presente, pois que, ao fixar o mesmo numa taxa diária de 20,00€, tendo por base que «no último ano fiscal, o arguido declarou rendimentos da ordem dos 12.000 euros» e, ainda, no facto de «para além dos seus proventos, ao orçamento familiar contabilizam 1.500 euros (acrescido de prémios), montante correspondente ao vencimento líquido que a companheira aufere», não parece, porém, haver o Digníssimo Tribunal a quo ponderado, minimamente, o valor despendido mensalmente pelo Recorrente e pelo seu agregado familiar, a título de despesas, como seja, o pagamento de empréstimo pessoal com a aquisição de viatura, de cerca de 150,00€ e, ainda, o encargo bancário mensal relativo à habitação, de 500,00€, incorrendo, dessa forma, numa clara violação do disposto no art. 47º, n.º 2 do C.Penal.
FF. De sorte que, em obediência aos imperativos consignados no n.° 2 do art.° 47.°, e n.° 2 do artigo 71.°, do nosso Código Penal, designadamente, nas alíneas a), d) e e) deste último preceito legal, o Digníssimo Tribunal a quo deveria ter considerado adequado aplicar ao ora Recorrente penas menos gravosas.
GG. Pelas razões acabadas de enunciar, o Tribunal a quo, violou o disposto no artigo 115.° do DL n.° 422/89, de 2 de dezembro e, ainda, os arts. 40°, 43.°, 47.° e 71° n°s 1 e 2 do nosso Código Penal.
(...)”
15. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido ROC, defendendo a respectiva improcedência e rematando o corpo da motivação com as seguintes conclusões:
“1. O arguido ROC veio recorrer do douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, no âmbito dos presentes autos, que deliberou condenar “(...)o arguido ROC: a. na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de corrupção passiva simples, p. e p. pelo art. 373.°, n.° 1, do Código Penal; 6.1. Suspende a execução desta pena de prisão por igual período de tempo.”
2. No caso concreto, o recurso interposto pelo arguido visa matéria de facto e de direito, sendo as questões suscitadas pelo arguido, em sede de recurso, essencialmente relativas à impugnação da matéria de facto provada e à determinação da medida da pena.
3. No que concerne à matéria de facto provada, “O arguido entende não ter sido devidamente levada em conta, a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a documental, tendo a mesma sido apreciada de forma errada aquando da motivação da decisão sobre a matéria de facto. (...) Para prova dos factos respeitantes ao arguido,
o Tribunal fundou a sua convicção, essencialmente, no teor das conversações telefónicas transcritas nos autos. (...) Dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, se o Tribunal a quo os tivesse valorado como deveria não tinha concluído da forma como concluíu. (...)Não pomos em causa que as intercepções telefónicas depois de transcritas tenham o valor de prova documental e como tal estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova. (...) Sucede porém, que no caso concreto vêm desacompanhadas de qualquer outro elemento probatório, o que no nosso modesto entender não são suficientes para passar de uma mera presunção para uma certeza, uma vez que nada existe a suportar a veracidade das mesmas. (...)”
4. Não obstante os argumentos do recorrente e salvo o devido respeito, não concordamos com os mesmos, na medida em que se constata que a matéria de facto provada e não provada assim resultou apurada da conjugação de todos os meios de prova produzidos, com as regras da experiência comum e não somente com base em interceções telefónicas desacompanhadas de outros meios de prova corroborantes.
5. Na verdade, o douto acórdão a quo fundamentou a matéria de facto provada referindo que “O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações prestadas pelos arguidos em sede de julgamento e de primeiro interrogatório judicial, dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e da prova pericial e documental constante dos autos, nomeadamente os relatórios de vigilância e de diligência externa, os autos de revista, busca e apreensão, os autos de exame e avaliação dos objectos apreendidos, as reportagens fotográficas dos locais buscados e dos objectos apreendidos, os relatórios dos exames periciais e as transcrições das escutas telefónicas judicialmente autorizadas, tudo à luz da regra da livre apreciação e das restrições legais existentes, com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção.”
6. E em concreto, no que se reporta aos factos provados acerca do recorrente, a fundamentação da convicção do Tribunal é do seguinte teor “(...)as conversas mantidas entre estes dois arguidos extravasam a mera amizade e revelam que o arguido ROC avisa o FDA relativamente à iminência de acções de fiscalização, após
o que este arguido avisa outros co-arguidos para procederem à ocultação ou retirada das máquinas de jogo do interior dos estabelecimentos. Acresce que houve uma operação de fiscalização da Divisão da PSP de Sintra no dia 19 de Maio de 2016, entre as 20h00 e as 23h30 (Vide relatório de fls. 8672). Fica assim explicada a necessidade de mobilizar as máquinas de jogo cerca de uma hora antes do início da operação de fiscalização! Relativamente à intervenção do arguido APA neste esquema e à existência de contrapartidas financeiras ou em géneros, é deveras esclarecedora a conversa mantida, no dia 7.12.2016, entre APA e FDA, imediatamente a seguir à celebração do aniversário do arguido ROC, verificado em 3.12.2016. FDA diz a APA: “Já dei o dinheiro ao outro. Ontem.”. Este responde: “Eu dou-te depois”. FDA dá-lhe conta de um ligeiro aumento: “Dei-lhe mais cinquenta porque ele fez anos”. APA concorda, dizendo-lhe: “Tá bem, tá bem” (Sessão n.º 27949 do Alvo ...). Por outro lado, as imagens recolhidas no interior da “Churrasqueira” não deixam quaisquer dúvidas de que, invariavelmente, o arguido ROC não suporta o pagamento das refeições quando ali vai almoçar ou jantar (fls. fls. 318-321, 333-334, 339-340, 343-344, 350-351, 352-353, 355-356 e 357-358 do Apenso K). Os avisos sobre fiscalizações ocorreram em 19.05.2016, 06.07.2016, 25.09.2016, 07.01.2017, 10.02.2017, 08.07.2017 e 26.01.2018. As entregas de dinheiro e as refeições à borla ocorrem mais frequentemente, nomeadamente em 27.06.2016, 26.07.2016, 19.10.2016, 03.12.2016, 20.12.2016, 03.01.2017, 03.03.2017, 07.04.2017, 19.04.2017, 25.05.2017, 12.09.2017, 22.09.2017, 07.10.2017 e 03.12.2017.”
7. Assim, verifica-se que os factos provados atinentes ao ora recorrente não resultaram apenas das interceções e mensagens escritas trocadas, mas também das imagens de videovigilância existentes nos locais e da sua conjugação com outros meios de prova, designadamente com prova testemunhal (como por exemplo o depoimento da testemunha RH) e com os meios de prova a partir dos quais se extraem as datas das fiscalizações e a data de aniversário do recorrente. Todos estes elementos são compatíveis entre si e apontam na mesma direção.
8. Não se pode esquecer que em crimes como os de corrupção, dificilmente será obtenível prova testemunhal, pelo que os meios de prova possíveis de carrear terão de passar por meios de outra ordem e que conjugados entre si, possam assegurar a convicção do julgador.
9. Desta forma e sem necessidade de mais considerações, entende-se que os aludidos factos provados foram assim considerados como resultado claro, compatível e inequívoco da conjugação dos meios de prova e das regras da experiencia comum, não assistindo razão ao recorrente ao impugnar os referidos factos provados.
10. Considera o recorrente, quanto à medida da pena de prisão aplicada que “a pena aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo mostra-se desadequada e desproporcional. (...) Apurou-se em suma que o arguida é primário, estando familiar, profissional e socialmente inserido, factos esses, que militam a favor do arguido. (...) A pena a aplicada ao arguido, atento o atrás referido, deve ser no mínimo legal ou próximo do mesmo, uma vez que no nosso modesto entendimento permite acautelar todas as necessidades de prevenção geral e especial, que no caso concreto se fazem sentir.”
11. A adequação da pena aplicada, afere-se, como é consabido, pelas disposições dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, que fornecem critérios, segundo os quais, a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei far-se-á em função do limite máximo admitido pela culpa do agente e do limite mínimo reclamado pelas exigências da prevenção especial e geral.
12. Na perspetiva das exigências da prevenção geral, relativas às necessidades de proteção e salvaguarda dos bens jurídicos colocados em crise através da atuação delituosa do arguido e no que concerne, muito em especial, ao crime de corrupção, importa salvaguardar o bem tutelado pela respetiva norma penal, e a este nível, sendo o arguido um agente da autoridade, são elevadas as respetivas exigências, sob pena de a comunidade perder a confiança no Estado, nos seus funcionários em geral e nos agentes de autoridade, que são quem fiscaliza e impõe, em primeiro plano, a aplicação da lei.
13. Já ao nível de prevenção especial, verifica-se que o arguido não assumiu os factos que lhe vinham imputados, apresentando uma versão incompatível com os factos com o exclusivo objetivo de se eximir às consequências da sua responsabilidade criminal.
14. Assim sendo, as necessidades de prevenção geral são neste caso muito relevantes e facilmente se conclui pela elevada premência das necessidades preventivas especiais do arguido.
15. Deste modo, sopesadas todas estas circunstâncias e tendo presente a medida abstrata da pena abstrata aplicável ao arguido, de um a oito anos, entende-se que a aplicação ao recorrente da pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, é adequada, suficiente e proporcional às necessidades de prevenção supra referidas, não sendo superior à sua culpa, uma vez que os factos provados denotam uma premência das necessidades de prevenção geral e especial que não se podem considerar situadas ao nível mínimo, merecendo censura superior, correspondente à punição aplicada.
16. Pelo exposto, à luz do que se acaba de expor, somos de parecer que o douto acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se nos seus precisos termos, negando-se total provimento ao recurso interposto pelo arguido.
(...)”
16. Respondeu ainda o Ministério Público ao recurso BMS, defendendo a negação total de provimento do mesmo e concluindo nos seguintes termos:
“1. O arguido BMS veio recorrer do douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, no âmbito dos presentes autos, que deliberou condenar “(...) o arguido BMS: a. na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115.º, n.º 1, da Lei n.º 422/89; 5.1. Suspende a execução desta pena de prisão por igual período de tempo”.
2. No caso concreto, o recurso interposto pelo arguido visa matéria de facto e de direito, sendo as questões suscitadas pelo arguido, em sede de recurso, essencialmente relativas a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova e à determinação da medida da pena.
3. O arguido veio invocar que a decisão recorrida alegadamente padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, referindo ter havido pontos de facto incorretamente julgados, invocando, entre outros, os seguintes fundamentos: “Analisado atentamente o douto Acórdão recorrido, entende o Recorrente que, de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não se vislumbram factos probatórios suficientes, concretos e objetivos que permitissem dar como provada a factualidade apurada e que fundamentou o douto Acórdão ora recorrido, em particular no que respeita ao preenchimento dos elementos típicos objetivos do crime de material de jogo, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro na apreciação da prova (...).”
4. Verifica-se porém que não corresponde à verdade que não se tenha provado os factos considerados provados e que não se tenham comprovado factos que consubstanciem o crime de material de jogo. Na verdade e como o acórdão a quo esclarece quanto aa este crime, foi possível constatar, por meio de prova testemunhal, vigilâncias, interceções e imagens de videovigilância, entre outros meios de prova, de forma bem alicerçada, que o arguido fornecia máquinas de jogo, que colocava em funcionamento e cujos lucros distribuía com o coarguido APA, facilmente se depreendendo, das apreensões e fotogramas constantes dos autos, que o equipamento fornecido e colocado pelo ora recorrente não eram meros “complementos” como o mesmo pretende fazer crer, mas sim máquinas de jogo, aptas a funcionar por si só quando instaladas pelo recorrente.
5. Conclui-se assim que a matéria de facto provada, foi assim considerada com base em meios de prova conjugados com as regras da experiência comum, amplamente suficientes para terem fundamentado a comprovação do crime de material de jogo no que ao recorrente diz respeito e não se vislumbra qualquer erro na sua apreciação para a decisão sobre a matéria de facto, devendo por conseguinte o douto acórdão manter- se no que respeita à condenação quanto ao crime de material de jogo.
6. Considera o recorrente, quanto à medida das penas de prisão aplicada que “as penas (de prisão e de multa) que lhe foram aplicadas se revelam ABSOLUTAMENTE EXCESSIVAS e DESADEQUADAS. Ora, perante uma moldura penal abstrata aplicável ao crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115° do D.L. n.° 422/89, de 02 de dezembro, de prisão até 2 anos e multa até 200 dias, foi o Recorrente condenado na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (suspensa na sua execução) e de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 20,00€ (vinte euros), num total de 3.000,00€ (três mil euros).”
7. A adequação das penas aplicadas, como é consabido, aferida pelas disposições dos artigos 40.°, 70.° e 71.° do Código Penal, que fornecem critérios, segundo os quais, a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei far-se-á em função do limite máximo admitido pela culpa do agente e do limite mínimo reclamado pelas exigências da prevenção especial e geral.
8. Na perspetiva das exigências da prevenção geral, relativas às necessidades de proteção e salvaguarda dos bens jurídicos colocados em crise através da atuação delituosa do arguido e no que concerne, muito em especial, ao crime de material de jogo, importa salvaguardar o bem tutelado pela respetiva norma penal. Os bens jurídicos em causa aqui são não só o direito de exploração de jogos de fortuna ou de azar que pertence em exclusivo ao Estado e só pode ser exercido em zonas de jogo estabelecidas mediante concessão como também a proteção dos jogadores, atenta a direta dependência do resultado do jogo da fortuna ou azar e não da destreza do jogador e a possibilidade de adição psicológica.
9. Ao nível de prevenção especial, verifica-se que embora o arguido não tenha antecedentes criminais, a sua atuação resultou na obtenção de lucros da atividade de jogo num período temporalmente prolongado e localizado em vários estabelecimentos comerciais abertos ao público.
10. Assim sendo, as necessidades de prevenção geral são neste caso muito relevantes e facilmente se conclui que as necessidades preventivas especiais já são consideráveis.
11. Deste modo, sopesadas todas estas circunstâncias e tendo presente a medida abstrata da pena abstrata única aplicável ao arguido, com pena de prisão até 2 anos e com pena de multa até 200 dias entende-se que a aplicação ao recorrente das penas de 1 ano e 6 meses de prisão e 150 dias de multa à taxa diária de 20 €, é adequada, suficiente e proporcional às necessidades de prevenção supra referidas, não sendo superior à sua culpa, uma vez que os factos provados denotam uma premência das necessidades de prevenção geral e especial que não se podem considerar situadas ao nível mínimo, merecendo censura superior, correspondente à punição aplicada.
12. Pelo exposto, à luz do que se acaba de expor, somos de parecer que o douto acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se nos seus precisos termos, negando-se total provimento ao recurso interposto pelo arguido.
(...)”
17. Ainda o MP respondeu ao recurso interposto pelos arguidos APA e FDA, também defendendo o a total improcedência do mesmo e concluindo nos seguintes termos:
“1. Os arguidos APA e FDA vieram recorrer do douto acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, pelo qual, foram condenados:“(...) o arguido APA: a. na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal; b. na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89; c. na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.°s 1 e 2, do RGIT, e pelo art. 202.°, al. a), do Código Penal; d. na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal. 2.1. Procede ao cúmulo jurídico das penas ora aplicadas ao referido arguido e condena-o na pena única de 4 (quatro) anos de prisão e 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 20,00 (vinte euros);
2.2. Suspende a execução desta pena de prisão por igual período de tempo, sob condição de pagamento da importância de € 13 144,22 à Segurança Social no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão;(...)o arguido FDA: a. na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa simples, p. e p. pelo art. 374.°, n.° 1, do Código Penal; b. na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão e 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), pela
prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art. 108.°, da Lei n.° 422/89; c. na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art. 87.°, n.° s 1 e 2 do RGIT, e pelo art. 202.°, al. a), do Código Penal; d. na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de influência simples, p. e p. pelo art. 335.°, n.° 2, do Código Penal; e. na pena de 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, n.° 1, al. d), da Lei n.° 5/2006 f. na pena de 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93. 3.1. Procede ao cúmulo jurídico das penas ora aplicadas ao referido arguido e condena-o na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros);
3.2. Suspende a execução desta pena de prisão por igual período de tempo, sob condição de pagamento da importância de € 8 466,63 à Segurança Social no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão;(...)”
2. No caso concreto, o recurso interposto pelos dois arguidos visa matéria de facto e de direito, sendo as questões suscitadas pelo arguido, em sede de recurso, essencialmente relativas a: nulidade por omissão de pronúncia; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; nulidade por falta de fundamentação; inadmissibilidade legal das interceções telefónicas; impugnação da matéria de facto provada e determinação da medida da pena.
3. Os recorrentes entendem que “compulsada a decisão recorrida, em sede de Relatório, resulta a menção de que os Arguidos Recorrentes apresentaram contestação e mais nenhuma menção se faz a este articulado.
4. Na verdade, em sede de contestação, os Arguidos Recorrentes alegaram um conjunto de factos e apresentaram também documentos, sobre os quais o acórdão recorrido é totalmente omisso. (...)O acórdão recorrido devia, ainda que sumariamente, reproduzir os argumentos de defesa dos Arguidos Recorrentes, e explicar porque os considerou ou não, e qual a prova que sobre os mesmos incidiu, de molde a que os intervenientes processuais pudessem aferir das razões de sustentação da matéria dada ou não por provada e da própria formulação da convicção do Tribunal.”
5. A este propósito, conforme acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-05-2020 “ A jurisprudência do STJ firmou-se há muito no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, mas apenas desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, isto é, desde que tenham efectivo interesse para a decisão.II - Segundo tal jurisprudência, a decisão já não deverá conter factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.”
6. Ora, analisando o teor da contestação apresentada pelos dois recorrentes, por forma a aferir da sua relevância e consequente e eventual verificação de omissão de pronúncia, Neste sentido, volvendo ao teor da contestação dos arguidos, verifica-se que a mesma é composta por um ponto prévio contendo diversas considerações de índole jurídica acerca do recurso ao instituto da perda alargada no caso vertente, por um introito contendo diversas considerações também de índole jurídica acerca da estratégia investigatória e do recurso a meios de prova utilizados, embora invocando a final, alguns factos acerca da vida pessoal e da atividade profissional dos arguidos e depois, por uma parte intitulada “Contestação: Imputação criminosa” alusiva ao enquadramento jurídico- penal efetuado em sede de acusação e por fim, pela contestação ao pedido de indemnização cível, de cariz eminentemente jurídico.
7. Por conseguinte, do teor da vasta contestação oferecida pelos ora recorrentes, expurgadas as considerações jurídicas, e para além da impugnação meramente refutativa da factualidade imputada aos arguidos, restam-nos alguns factos respeitantes à vida pessoal e profissional dos arguidos. Sucede que esses factos, ou parte deles, foram transpostos para a matéria de facto provada. Senão vejamos, quanto ao arguido APA e a título meramente exemplificativo: “Mais se provou (arguido APA): (...) 575.º O arguido referiu ainda dedicar-se à actividade agrícola no Norte do País por intermédio de terrenos que dispõe para esse efeito, sendo apoiado por o IFADAP para a aquisição de equipamentos.” E veja-se, quanto ao arguido FDA, também a título meramente exemplific ativo: “Mais se provou (arguido FDA): (...) 587.º Não regressou à escola de hotelaria uma vez que iniciou actividade laboral na C…, em sociedade com o tio APA, co-arguido. (...) 595.º O arguido conhecia os co-arguidos na generalidade, ou por ligações familiares/amizade ou por ligações laborais.”
8. Compreende-se a importância da pronúncia acerca dos factos levados a julgamento, mas, como já se referiu, não é legalmente obrigatório que a decisão contenha absolutamente todos os factos vertidos na acusação ou na contestação, quando os mesmos sejam factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido.
9. Tendo em consideração o conteúdo da contestação apresentada verifica-se que a mesma, para além de impugnar a acusação, maioritariamente dedicou-se a aturadas elocubrações de pendor jurídico acerca da estratégia investigatória do Ministério Público e do enquadramento jurídico-penal dos factos, apresentando alguns factos que também constam dos relatórios sociais e avançando alguns factos acessórios para a definição dos elementos constitutivos do crime ou determinação da sanção, pelo que não competia ao Tribunal a quo fazer constar a totalidade de tais asserções, no acórdão prolatado, sob pena de o acórdão em causa perder o caráter de decisão de mérito, adstrito a uma natureza objetiva e rigorosa, entendendo-se por conseguinte que o mesmo não padece de nenhum vício de nulidade por omissão de pronúncia.
10. Entendem ainda os recorrentes “Relativamente ao crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo art.º 108.º, da Lei n.º 422/89, o Acórdão recorrido consigna, e bem, a limitação probatória referente aos conteúdos de intercepções telefónicas que não podem ser valorados para efeito de perseguição de crimes que não constem do catálogo definido na lei (art.º artigos 187.º, n.ºs 1 e 7, e 190.º, do CPP). (...)13. Assim, salvo melhor opinião, em face do vício suscitado, e sem prejuízo do disposto no art. 426º do C.P.P., devem tais factos provados ser expurgados da decisão recorrida, com as devidas consequências para efeitos de medida concreta da pena.”
11. Sucede, contudo, que os factos provados sob os números 370, 440, 450, 460, 470, 480, 520, 530, 580, 590, 610, 620, 630, 640, 680, 690, 700, 710, 720, 730, 880, 890, 910, 940, 1070, 1290, 1300, 1310, 1330, 1350, 1360 referem-se, não ao crime de exploração ilícita de jogo, como afirmam os recorrentes, mas sim ao crime de corrupção, por referência à dinâmica entre os arguidos APA, FDA e ROC, agente de autoridade que avisava previamente aqueles das fiscalizações.
12. Neste sentido, o Tribunal a quo, após ter esclarecido quais os crimes que não admitem como meio de prova as escutas (como é o caso da exploração ilícita de jogo), e sem nunca ter referido que o crime de corrupção seria um deles, antes pelo contrário, vem analisar as conclusões a que chegou acerca dos factos imputados a título de corrupção, a partir das interceções telefónicas (e não só) “6. Avançando agora para o tema da corrupção, dir-se-á, liminarmente, que a prova produzida não deixa quaisquer dúvidas relativamente ao alcance da actuação dos arguidos ROC, FDA e APA. Não se questiona que exista uma relação de amizade entre os arguidos FDA e ROC, bem como que o início da mesma remonte a época anterior à entrada do arguido ROC na Polícia de Segurança Pública. Mas as conversas mantidas entre estes dois arguidos extravasam a mera amizade e revelam que o arguido ROC avisa o FDA relativamente à iminência de acções de fiscalização, após o que este arguido avisa os outros co-arguidos para procederem à ocultação ou retirada das máquinas de jogo do interior dos estabelecimentos.”
13. Sendo o crime de corrupção passiva punível com pena de prisão de 1 a 8 anos o crime de corrupção ativa punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, dada a sua moldura penal abstrata, constata-se que o mesmo admite como meio de prova as interceções telefónicas, pelo que não assiste razão aos recorrentes quanto à existência da alegada contradição insanável quanto à questão suscitada.
14. Vieram ainda os recorrentes invocar que “Não questionando as condenações que recaíram sobre os Arguidos APA e JAP quanto ao crime de exploração ilícita de jogo (com excepção da medida concreta da pena que abordaremos infra por entendermos excessiva, até em face da alteração factual supra referida), entende o Recorrente FDA que quanto a si a mesma carece de evidente fundamentação.”
15. Mas analisando o douto acórdão recorrido, facilmente se constata que inexiste qualquer omissão ou insuficiência de fundamentação, quer de facto, quer de direito, encontrando-se a decisão quanto ao preenchimento dos elementos típicos do crime de exploração ilícita de jogo por parte do arguido FDA, na verdade, motivada de forma expressa, exaustiva e completa, sem lacunas ou contradições, sendo a decisão extraída das mesmas uma ilação perfeitamente lógica e coerente dos factos e bem alicerçada nos vários meios de prova que assim o impuseram.
16. Alegam também os recorrentes que “Quanto ao crime de burla tributária, a condenação dos Recorrentes APA e FDA resulta dos factos 3490 a 4980 dados como provados e cuja significativa maioria dos elementos probatórios assenta exclusivamente em conteúdos de intercepções telefónicas.
17. Entendem os Recorrentes que, não só o recurso às escutas telefónicas por forma a provar o crime em apreço não podia ter procedido nos moldes em que, efectivamente, procedeu, como também não podem as escutas telefónicas ser um meio de prova exclusivo que ignora a concorrência e existência de outros meios de prova”.
18. Quanto ao crime de burla tributária e bem assim quanto ao crime de corrupção e tráfico de influência, tal meio de prova é admissível, dada a moldura penal abstrata, tal como expressamente refere o acórdão a quo: “i) A autoria do crime de corrupção passiva sob análise é punida com pena de prisão de 1 a 8 anos; i) A autoria do crime de corrupção activa sob análise é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos; (...) A autoria do crime de burla tributária agravada sob análise é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos; A autoria do crime de tráfico de influência agravado sob análise é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos; (...)”.
19. Por outro lado, as interceções telefónicas não constituíram o único meio de prova que fundou a convicção do Tribunal nesta matéria, pelo que também nesta parte não colhem as pretensões dos recorrentes, por serem destituídas de fundamento legal.
20. Os recorrentes também consideram que “Ainda que assim não se entenda, à cautela, sem conceder, impugnam-se os seguintes factos dados como provados: 2º na parte “FDA” e “colocaram máquinas de jogo de fortuna ou azar em três dos referidos estabelecimentos de restauração e bebidas, tendo como fim último a obtenção de elevados ganhos em dinheiro.”; 7º na parte “recorria aos Arguidos FDA e JAP, sendo estes Arguidos que mantinham a direta supervisão dos três estabelecimentos comerciais onde se desenvolviam os jogos de fortuna ou azar: a) ““...”” –sob direta supervisão de FDA”; 222º na parte “FDA, que recebem os lucros das mesmas.”; 314º na parte “FDA, tomando este decisões inerentes à gestão quotidiana daquele”. . Estes factos foram incorrectamente dados como provados porquanto a prova produzida impunha um sentido diverso.”
21. Todavia, na verdade, da análise da decisão do Tribunal a quo, depreende-se que o Tribunal a quo fundou a sua convicção analisando criteriosamente os vários meios de prova, quer ao nível da sua admissibilidade legal, quer ao nível da sua valoração e suscetibilidade de fundamentação da matéria de facto, conforme bem se constata pelo teor do douto acórdão proferido.
22. Conclui-se assim que a matéria de facto provada, foi assim considerada com base em meios de prova corroborantes, conjugados com as regras da experiência comum, sendo a mesma suficiente para fundamentar a decisão recorrida e aliás, não se vislumbrando nenhuma prova que lance qualquer dúvida sobre os factos provados, nem sobre a responsabilidade criminal dos recorrentes.
23. Por último, na ótica dos recorrentes, “(...)Ainda que não se entenda dar razão, integral ou parcial, ao acima exposto, consideram todavia os Recorrentes que o Tribunal a quo pecou por algum excesso na determinação das penas aplicadas aos Arguidos, que extravasam em muito a medida da culpa, atendendo ao facto de que a pena deve ser medida de acordo com a necessidade de tutela dos bens jurídicos que se exprime no caso concreto.”
24. Conforme é consabido, a adequação da medida da pena afere-se pelas disposições dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, que fornecem critérios, segundo os quais, a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei far-se-á em função do limite máximo admitido pela culpa do agente e do limite mínimo reclamado pelas exigências da prevenção especial e geral.
25. Na perspetiva das exigências da prevenção geral, relativas às necessidades de proteção e salvaguarda dos bens jurídicos colocados em crise através da atuação delituosa do arguido importa salvaguardar os bens tutelados pelas normas penais violadas, tendo em consideração que foram vários os crimes cometidos, geradores de descrédito por parte do cidadão comum nas instituições e de elevado prejuízo patrimonial para o Estado, reclamando assim uma garantia da proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas penais infringidas.
26. Ao nível de prevenção especial, verifica-se que os arguidos incorreram aqui na prática de vários crimes, com dolo direto, sendo a sua culpa e ilicitude elevadas, pela gravidade dos atos, pelo prejuízo para o Erário público ao longo de um período considerável de tempo em que ambos os arguidos atuaram com um sentimento de total impunidade, e tendo em consideração que o arguido FDA .tem antecedentes criminais que não o demoveram da prática de novos ilícitos.
27. Assim sendo, as necessidades de prevenção geral são neste caso muito relevantes e não são mínimas as necessidades preventivas especiais destes arguidos.
28. Deste modo, sopesadas todas estas circunstâncias e tendo presente o teor do artigo 27.º do Código Penal e a medida abstrata das penas parcelares aplicáveis ao arguido, bem como das molduras aplicáveis à pena única aplicável, entende-se que a aplicação aos recorrentes das penas aplicadas quanto aos crimes em causa, é adequada, suficiente e proporcional às necessidades de prevenção supra referidas, não sendo superior à sua culpa, uma vez que os factos provados denotam uma premência das necessidades de prevenção geral e especial a corresponde a punição aplicada.
29. Assim, à luz do que se acaba de expor, somos de parecer que o douto acórdão recorrido, na parte ora impugnada pelos recorrentes, não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se, quanto a tal matéria, nos seus precisos termos, negando- se total provimento ao recurso interposto pelos arguidos.
(...)”18. Os arguidos APA e FDA responderam ao recurso interposto pelo MP, defendendo a respectiva improcedência, fazendo a seguinte síntese:
- Relativamente à verificação do impedimento de depoimento como testemunhas e pretensas consequências para o crime de exploração ilícita de jogo, dir-se-á que a audição daquelas é um ato inútil no processo, sem repercussões valiosas para os factos provados, porque os Arguidos vêm já condenados, cada um, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, pelo que é irrelevante dar-se como provados mais factos que não permitem identificar novas resoluções ou novos crimes, devendo improceder quer o Recurso interlocutório do M.P. quer o Recurso que ora se responde.
- Quanto ao alegado crime de fraude fiscal, o Recurso do M.P. deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a absolvição dos Arguidos, porquanto visa dar como provados factos pelos quais os Arguidos não foram pronunciados (isto é, factos atinentes aos anos fiscais de 2013, 2014 e 2015 rejeitados pela Decisão Instrutória).
- Acresce que da simples conjugação da “prova” documental, entre si flagrantemente contraditória e incoerente e de onde o M.P. extraiu para a Acusação (e para os factos não provados) os valores que convenientemente lhe pareceram mais adequados, com a “prova” testemunhal, esta absolutamente arrasadora de toda a “investigação”, não tendo logrado esclarecer o Tribunal sobre absolutamente nenhum aspeto relevante, é intuitivo concluir que andou bem o Tribunal a quo ao absolver os Arguidos de um crime para o qual não se produziu nenhuma prova sustentada e apta a condenar os Arguidos a penas de prisão efetivas.
- Consequentemente, deve improceder igualmente o PIC a favor do Estado, mantendo-se a absolvição dos Arguidos, na medida em que, por um lado, perante a débil investigação levada a cabo, não se logrou apurar um qualquer valor de alegada “vantagem patrimonial” auferida pelos Arguidos, e, por outro lado, o valor do PIC pelo qual o M.P. quer ver os Arguidos condenados abarca, como se referiu, valores respeitantes a anos fiscais que foram rejeitados pela Decisão Instrutória.
- Ademais, deve manter-se a extinção dos arrestos preventivos, porquanto os mesmos subsistiam para assegurar a eventual procedência da perda alargada e, tendo a perda alargada sido julgada improcedente, como defendeu o M.P. em sede de alegações finais de julgamento, soçobra a necessidade de manutenção dos referidos arrestos.
- Por fim, é evidente que, com a improcedência do Recurso do M.P., não há que cuidar de alterar a medida concreta da pena (isto sem embargo do Recurso apresentado pelos Arguidos), remetendo-se para as prudentes considerações tecidas pelo Tribunal a quo mormente no que toca à suspensão da execução da pena de prisão, a qual deve manter-se em consonância com os artigos 40º, 50º, 70º e 71º do C.P.
19. Também o arguido BMS respondeu ao recurso interposto pelo MP, defendo dever ser o mesmo julgado improcedente e deduziu as seguintes conclusões:
“(...)
Quanto ao 1.° ponto do Recurso:
A. Pois que, no modesto entendimento do aqui Recorrido, o Digníssimo Tribunal a quo fez uma correta interpretação e aplicação do Direito, quando julgou verificado o impedimento previsto no artigo 133.°, n.° 2, do C.P.P., relativamente à prestação de depoimento de treze testemunhas arroladas na douta Acusação Pública, entre as quais DJF, ARP, CCA e JPM, por, na fase de inquérito, terem sido as mesmas constituídas como arguidas, tendo o processo sido arquivado relativamente às mesmas na sequência de suspensão provisória do processo, e por não terem as mesmas, em sede de audiência de discussão e julgamento, consentido para depor como tal.
B. Sendo certo que, os Despachos anteriormente proferidos e, agora, o douto Acórdão em análise, não merecem uma qualquer censura, sendo de concluir por não verificada uma qualquer nulidade, mormente a alegada e prevista no artigo 120.°, n.° 2, alínea d) do C.P.P.
C. Ora, o impedimento de o arguido depor como testemunha radica não só na ideia de proteção do próprio arguido, constituindo expressão do privilégio contra a auto-incriminação, mas também na consagração da plena “ultra actividade do impedimento em causa”, ou seja, que aquele que já não é arguido, mas foi anteriormente no mesmo processo ou em processo conexo, continue a beneficiar do direito ao silêncio que assiste a tal sujeito processual, não deixando assim “entrar pela janela o que se quis fazer sair pela porta” - neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/04/2015, proferido no âmbito do Processo n.° 213/05.9TCLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.
D. Assim, a nova redação conferida ao n.° 2 do artigo 133.° do C.P.P. pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, definiu ser exigível o consentimento mesmo nos casos em que os arguidos (de um mesmo processo ou de um processo conexo) já tenham sido condenados por sentença transitada em julgado.
E. Sendo que, no caso sub judice, os co-arguidos não deram o seu consentimento expresso à prestação de depoimento na qualidade de testemunhas.
F. De modo que, atento tudo o exposto, não poderá proceder, nesta sede, o Recurso apresentado pela Ilustre Procuradora da República, devendo ser confirmados, nos seus precisos termos, os doutos Despachos anteriormente proferidos e, bem assim, o douto Acórdão proferido, por devidamente fundamentados e por nos mesmos ser efetivada uma correta aplicação do direito.
Quanto ao 2.° ponto do Recurso:
A. Não se conforma, ainda, a Ilustre Procuradora da República com a decisão proferida pelo Digníssimo Tribunal a quo sobre a matéria de facto relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada, pugnando pela condenação do aqui Recorrido pela prática deste crime.
B. Ora, uma vez mais se entende, não assiste qualquer razão ao Ministério Público, pois que, na realidade, entendeu – e muito bem - o Digníssimo Tribunal a quo que «(...) importa dar conta de que os valores alegados relativos aos rendimentos globais líquidos de todos os arguidos envolvidos não coincidem com o apuramento feito no seio da AT (fls. 443-459 do volume 2 do Apenso L)», sendo que, «tal incongruência foi notada pelo próprio Inspector Tributário LC no julgamento, mas não viria a ser esclarecida até ao final da audiência de discussão e julgamento»,
C. E, ainda, que da prova processualmente admissível produzida em sede de audiência de julgamento (documental e testemunhal) não resultou a certeza necessária para a formação da convicção pelo Digníssimo Tribunal a quo de que o aqui Recorrido praticou os factos pelos quais vinha pronunciado, no que concerne ao crime de fraude fiscal qualificada.
D. E, portanto, perante um cenário de evidente incerteza, não tendo o Ministério Público logrado provar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de fraude fiscal, jamais seria possível ao Digníssimo Tribunal a quo formular um juízo probatório positivo num domínio de exigência de certeza para além de qualquer dúvida razoável.
E. Pelo que, por respeito, desde logo, ao princípio da presunção de inocência do arguido, com consagração constitucional no art. 32° n.° 2 da C.R.P., decidiu justamente o Digníssimo Tribunal a quo absolver o Recorrido, não merecendo o douto Acórdão proferido, também nesta sede, qualquer reparo ou censura.
Quanto ao 3.° ponto do Recurso:
A. Por se encontrar em estreita ligação e até dependência da procedência do Recurso relativamente à impugnação da matéria de facto quanto ao crime de fraude fiscal qualificada, e tendo o Digníssimo Tribunal a quo decidido, e bem, absolver o aqui Recorrido da prática daqueles crimes, consequentemente, outro não poderia ser o “desfecho” da peticionada indemnização pelo Estado Português, que não a sua improcedência.
B. Por outro lado, em resultado da absolvição do aqui Recorrido relativamente ao pedido cível deduzido, óbvio se torna a determinação da extinção das medidas de garantia patrimonial de arresto preventivo decretadas e o levantamento das respetivas apreensões.
C. Pelo que, uma vez mais se entende, deverá improceder o Recurso apresentado pela Ilustre Procuradora
da República.
Quanto ao 4.° ponto do Recurso:
A. A final, pugna, ainda, a Ilustre Procuradora da República pela aplicação ao aqui Recorrido de uma pena «não inferior a 4 anos de prisão eventualmente suspensa na sua execução».
B. Ora, relativamente ao aqui Recorrido, decidiu o Digníssimo Tribunal a quo pela sua condenação, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, e 150 dias de multa à taxa diária de €: 20,00, pela prática de um crime de material de jogo,
C. Sendo que, do douto Acórdão condenatório, interpôs o Arguido, aqui Recorrido, o competente Recurso, pugnando, em primeiro lugar, pela sua absolvição relativamente ao crime de material de jogo pelo qual foi condenado e, sem prescindir, em caso de manutenção da condenação, pela alteração das penas (de prisão e multa) concretamente aplicadas.
D. Pelo que, naturalmente se reitera, a ser alterada a medida concreta da pena aplicada ao aqui Recorrido, sempre o deverá ser em conformidade com o Recurso por si interposto, para o que, expressamente, se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
F. Ademais, sempre importará realçar as considerações tecidas pelo Digníssimo Tribunal a quo no seu douto Acórdão, relativamente ao percurso de vida e personalidade do Recorrido, caracterizado positivamente pela estabilidade, inserção social, profissional e familiar,
G. Assim como, a ausência de quaisquer antecedentes criminais, o que, de resto, auxiliou o Digníssimo Tribunal a quo a conceber um prognóstico favorável ao cumprimento da pena na comunidade e, consequentemente, na decisão de suspensão na sua execução da pena de prisão aplicada.
H. Assim, conclui-se - na eventualidade de o Recurso interposto pelo Arguido improceder e ser mantida a sua condenação pela prática do crime de material de jogo – o que só por mera hipótese se admite -, a escolha das penas aplicadas e as concretas medidas determinadas pelo Digníssimo Tribunal a quo deverão ser mantidas e, uma vez mais, ser o Recurso interposto pela Ilustre Procuradora da República julgado improcedente.
(...)”
20. Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando integralmente o recurso interposto pelo Ministério Público tal como as respostas apresentadas pela Digna Procuradora da República na 1.ª instância, às quais nada acrescentou, pugnando pelo provimento do recurso do Ministério Público e não provimento dos recursos interpostos pelos arguidos.
21. O arguido BMS respondeu reiterando as conclusões que apresentou no seu recurso e defendendo, uma vez mais, dever ser julgado improcedente o recurso Interposto pelo Ministério Público.
22. No exame preliminar deixou-se exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento dos recursos, que, por sua vez, haviam sido admitidos com o regime de subida adequado.
23. Seguiram-se os vistos legais.
24. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, então, a questão suscitada no presente recurso é apenas a de saber se.
- aquele a que beneficiou da suspensão provisória do processo, pode mais adiante ser arrolado como testemunha.
2. As razões do recorrente.
Mostra-se o MP inconformado com os despachos onde se decidiu julgado verificado o impedimento relativo de intervir e depor como testemunha, previsto no art.0 1330, n0 2, do CPP, relativamente a várias testemunhas arroladas na acusação, mantendo-se ainda subsistente a questão, dado que o MP em relação às restantes prescindiu do seu depoimento, em relação às testemunhas DJF, ARP, CCA e JPM
Para o que alinha o seguinte raciocínio:
- nas decisões recorridas prevaleceu o entendimento de que se estava perante uma proibição de produção e de valoração de depoimentos como testemunhas de pessoas que em fase processual prévia revestiram nos mesmos autos a qualidade processual de arguidos, sob a máxima de “arguidos uma vez arguidos para sempre”, a menos que, esclarecidas previamente pelo tribunal de julgamento, nisso expressamente consentissem – e, porque o consentimento não foi prestado, concluiu o tribunal a quo estar verificado o impedimento relativo consagrado no artigo 133.0/2, do CPP, e dispensou-as de tal obrigação;
- no entanto, as então, treze testemunhas indicadas pela acusação não revestiam a qualidade de arguidas no momento em que foram, respectivamente, chamadas a depor em julgamento, por os autos terem sido quanto a todas, sem excepção, arquivados na fase de inquérito por força da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não podendo, fosse a que título fosse e independentemente das declarações que tais pessoas viessem a prestar em julgamento, voltar a ser reabertos contra elas – artigo 282.0/3, do C.P.P.;
- não revestindo nesse momento a qualidade de arguidas e não se encontrando, por isso, impedidas de depor como testemunhas, nem a tal se podendo recusar, também não cabia, por ser irrelevante, perguntar-lhes previamente se nisso consentiam.
3. Vejamos.
3. 1. Começa o M.P. por entender que qualquer daqueles despachos está inquinado com a nulidade prevista no artigo 120.º/2, d) do CPP, por constituir omissão de diligência que se reputa essencial para a descoberta da verdade e viola também o disposto no artigo 133.º/1, al. a), do CPP, uma vez que as testemunhas não revestem no momento do julgamento a qualidade de arguido e as declarações que viessem a prestar em julgamento sobre a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar nenhuma repercussão poderiam ter criminalmente contra si, por o processo não poder ser reaberto, e porque ao decidir nos termos em que decidiu o Mmº Juiz Presidente impediu que com o seu depoimento a testemunha contribuísse, conforme já assinalado, para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.
Cremos, no entanto, que, como de resto, está subjacente a este entendimento, ao caso em apreço não pode deixar de se aplica o velho brocardo latino, segundo o qual, “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se”.
“É certo que, tendo presente o princípio da investigação oficiosa, na audiência de julgamento o juiz deve determinar, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, a realização de diligências que se mostrem necessárias e indispensáveis para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa: este o sentido do princípio da investigação oficiosa.
E, que necessidade para a descoberta da verdade é o critério simultaneamente justificativo e delimitador deste ónus que impende sobre o Juiz (...). Deve fazer produzir todas as provas que apontem no sentido de contribuir para o esclarecimento dos factos e a responsabilidade do arguido sendo conhecidas. Só podem produzir-se as provas que sejam indispensáveis para atingir esta finalidade.
O que significa que este poder-dever do juiz é para usar, sempre e apenas, quando as provas produzidas na audiência se revelam insuficientes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (...), cfr. Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, páginas 851 e 852.
Mas, também, é certo que se, porventura uma nulidade está consubstanciada num despacho a forma processualmente idónea de reagir, é através da impugnação do despacho por via de recurso.
Se não houvesse despacho a sufragar o entendimento contra o qual o MP se insurge, a forma de impugnar a não audição das testemunhas, seria, aí sim, através da invocação da apontada nulidade.
Assim, a forma processualmente idónea de conhecer a questão será através da impugnação por recurso e, pela conformidade, ou não, do decidido, para com o texto legal.
3. 2. Por outro lado, diz o arguido APA que o recurso deve ser rejeitado, por manifesta improcedência, nos termos do artigo 420.º/1 alínea a) CPP, porque, quando na acta o MP disse que pretendia recorrer, invocou o disposto no artigo 133.º/1, a) CPP, e depois, na motivação e nas conclusões, afinal, invocou a violação do artigo 133.º/2 do CPP.
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas depois do corpo da motivação constante do requerimento de interposição.
Consabidamente, as conclusões constituem o resumo das razões do pedido. E, assim, o que consta do corpo da motivação e do requerimento de interposição ditado para a acta e, que que não consta das conclusões do recurso interposto, terá que ser entendido como tendo sido deixado cair pelo recorrente.
E, da mesma forma, o que apenas constar das conclusões e não do corpo da motivação ou do requerimento de interposição, ditado para a acta, será o resumo de coisa nenhuma e, por isso não pode fazer parte do objecto do recurso, nem do âmbito de cognição deste Tribunal.
Assim sendo, nenhuma irregularidade evidencia a tomada de posição do MP.
De resto, absolutamente, compreensível, quanto ao diferente enfoque, uma vez que o despacho recorrido invocou a norma contido no artigo 133.º/2 e o MP entende ser caso de aplicação da contida no n.º 1 e, daí a invocação da violação, a um passo de uma e de outra.
Não é, pois, caso de rejeição do recurso.
3. 3. Cumpre ainda aqui referir o seguinte.
A norma cuja apreciação está aqui em causa, o artigo 133.º do CPP, visa tão só e exclusivamente a protecção de quem, sendo arguido num processo penal, pode ver-se na contingência de ser chamado a depor como testemunha no mesmo processo ou num processo separado, e aí ser obrigado a prestar depoimento e responder com verdade, sobre factos em relação aos quais, enquanto arguido, tem o direito ao silêncio e não está obrigado a responder com verdade.
E se assim é, em tese, poder-se-ia colocar a questão, desde logo, da falta de legitimidade dos arguidos neste processo para suscitarem esta questão, que não diz respeito à sua defesa. Em causa está, tão só, o privilégio contra a auto-incriminação, artigo 14.º/3, g) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 – qualquer pessoa acusada de uma infracção criminal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias (...) a não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada), cfr. acórdão deste Tribunal de 22.2.2017, consultado no site da dgsi.
Isto sendo certo que Paulo Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª edição, UCP, Lisboa, 2011, p. 371), sustenta que esta norma “não visa apenas proteger o arguido chamado a depor como testemunha do que, nessa qualidade, possa dizer em prejuízo da sua posição, mas também proteger o arguido do processo conexo”, o que resulta do seu direito à descoberta da verdade como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que “aquele direito ficaria gravemente comprometido no caso de se admitir uma prova testemunhal prestada sob o constrangimento de o co-arguido chamado a depor como testemunha se encontrar acusado de factos com uma relação de conexão com aqueles sobre os quais tem de depor. Dito de outro modo, a falta de liberdade do depoimento da testemunha contamina de tal modo a prova testemunhal produzida que as garantias de defesa do arguido no processo em que foi produzida a dita prova ficam irremediavelmente feridas”.
Mas como a questão vem colocada ao contrário, pelo MP e, sendo os recorridos, ali arguidos, pode-se, habilmente, entender, serem ainda assim, parte interessada em defender a posição sufragada no despacho recorrido, no confronto com a defendida pela acusação.
3. 4. Enquadramento do recurso
a) As testemunhas DJF, ARP, CCA e JPM foram constituídas arguidas nos autos.
b) Todas foram indiciadas ou por crimes de prática ilícita de jogo ou por crimes de presença em local de jogo ilícito ou por crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos artigos 108.0/2, 110.0 e 111.0 do Decreto Lei 422/89, de 02.12.
c) A todas foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo com fundamento no disposto no artigo 281.0 CPP e determinado, em momento prévio, à dedução da acusação contra os demais arguidos, o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 282.0/3 CPP, em face do cumprimento das injunções impostas.
3. 5. O texto legal.
O artigo 125.0 CPP estabelece o princípio de que em processo penal são admissíveis quaisquer provas que não sejam proibidas por lei.
Este normativo consagra entre nós o princípio da legalidade, nos termos do qual «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei».
E entre os meios de prova que o Livro III do Código de Processo Penal autonomiza encontram-se, entre outros, a prova testemunhal (artigos 128.0 a 139.0) e as declarações do arguido (artigos 1400 a 1450).
Dispõe o artigo 133.0/1 alínea a) CPP que, estão impedidos de depor como testemunhas “a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade.”
Contudo, nos termos do artigo 133.0/2, em caso de conexão (artigo 24.0 CPP), mas tendo havido separação de processos (artigo 30.0 do CPP), o arguido, já julgado no processo inicial, tem capacidade para ser testemunha no julgamento do arguido, no processo separado, podendo o seu depoimento ser usado como meio de prova na formação da convicção do tribunal, desde que nisso expressamente consentirem.
Com efeito aqui se dispõe que, “em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem”.
Aqui estamos perante o que se pode chamar de um depoimento consentido (cfr. Acórdão da RG de 14.1.2019, www.dgsi.pt), de onde se retira a seguinte fundamentação, “Segundo Medina de Seiça, a norma constante do artigo 133º do CPP – impedimento para depor como testemunha – representa «uma das regras que caracterizam em maior medida a actual disciplina da prova testemunhal» e «constitui o vértice da concepção global sobre a função ou posição processual que ao co-arguido se deve reconhecer no quadro do direito probatório.
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial a ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a também chamada prerrogativa da não auto-incriminação.
Ou seja, o que visa esta norma é a protecção do próprio arguido, como tal constituído, que assim fica excluído da obrigação de depor como testemunha, se como tal for indicado, e liberto ainda dos deveres de prestação de depoimento e de o fazer com verdade sob pena de ser sancionado criminalmente.
Como se afirma no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010 “A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à “colaboração forçada” na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação”.
O eixo de posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça também radica na ideia de que, fundamentalmente, o que está em causa é a posição interessada do arguido, que, assumindo o seu impedimento para depor como testemunha, não obsta a que preste declarações, nomeadamente para esclarecer sobre a sua responsabilidade criminal numa postura de colaboração na procura da verdade material (como afirmam os Juízes Conselheiros Henriques Gaspar e Outros, Código de Processo Penal Comentado, 2016. pág. 479)”.
Importa, desde já, definir e precisar conceitos, dada a amplitude de normas que abrange o recurso, desde já se adiantando que se desconhece qualquer controvérsia em torno da previsão do n.º 1, al, a) do artigo 133.º, cujo âmbito de aplicação cremos ser absolutamente claro e inequívoco.
Para se compreender a distinção entre o n.º 1 e 2 do artigo 133.º do CPP há que ter em consideração que o Código de Processo Penal, depois de delimitar os casos de conexão de processos e de estabelecer as regras de competência específicas nessa situação, determina, no seu artigo 29.º, que “[p]ara todos os crimes determinantes de uma conexão, nos termos das disposições anteriores, organiza-se um só processo”, acrescentando no número seguinte que “[s]e tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar ao crime determinante da competência por conexão”. No seu artigo 30.º prevê as situações em que os processos que integram uma conexão podem ser separados, caso em que é prorrogada a competência do tribunal.
“Esta norma alude aos conceitos de “co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos” e de “arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo”.
A situação de co-arguido resulta da circunstância de se responder criminalmente conjuntamente com outrem que detém a mesma qualidade.
A conexão, por outro lado, resulta da aplicação do artigo 24.º CPP.
A separação de processos que fundamenta o impedimento constante do n.º 2 é a que radica na aplicação do artigo 30.º CPP.
Enquanto que no caso de conexão, o impedimento não impede a prestação de depoimento como arguido, no caos de separação tal já não é admissível.
Subjacente ao impedimento está a incompatibilidade natural entre as duas posições processuais, o que resulta do respectivo estatuto jurídico”, cfr. Código Processo Penal comentado por Anatónio Henriques Gaspar et al, em anotação ao artigo 133.º.
Está aqui em causa o “privilégio contra a auto-incriminação”
Naturalmente que atenta a diversidade de estatuto, sendo que a testemunha está obrigada a prestar depoimento e a falar verdade, sobre pena de incorrer, em qualquer dos casos em responsabilidade criminal, o que aqui está em causa é, precisamente, proteger o próprio arguido, impedindo-o de depor contra si próprio.
“O impedimento de o arguido depor como testemunha radica na ideia de protecção do próprio arguido constituindo expressão do privilégio contra a auto-incriminação.
Tal como decorre da norma transcrita, o impedimento não se traduz apenas na limitação ao testemunho contra si próprio por parte do arguido, na medida em que o seu direito a não responder abrange todas as perguntas que lhe sejam feitas, independentemente do conteúdo intrínseco da resposta. O alargamento do direito do arguido ao silêncio ao próprio co-arguido, isto é, a não ser obrigado a prestar depoimento, precedido de juramento, e a não ser punido por falsas declarações, emerge desta matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão privilegiada do direito de defesa, entendida neste contexto como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se”, cfr. Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 35 e ss., também citado por Santos Cabral, em comentário ao artigo 133.º, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et al, 2014, Almedina, p. 514 e seguintes, apud acórdão do STJ de 15.4.2015, www.dgsi.pt.
“O que visa este preceito é a protecção do próprio arguido, como tal constituído, que assim fica excluído da obrigação de depor como testemunha se como tal for indicado, e liberto ainda dos deveres de prestação de depoimento e de o fazer com verdade sob pena de ser sancionado criminalmente.
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., pág. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação.
O alargamento do impedimento - alargamento do direito do arguido ao silêncio - ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa sua própria posição processual, auto-incriminando-se (cfr. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., págs. 36 e 37).
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à colaboração forçada na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação” - cfr., neste sentido, Costa Andrade, Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 21 e acórdão do TC. 304/2004, de 5 de Maio, citado no posterior acórdão 133/2020, ambos em www.tribunal constitucional.pt.
Se no caso do n.° 1 se pode considerar perante um impedimento absoluto, no caos do n.° 2 estaremos perante um impedimento relativo.
3. 6. Baixando ao caso concreto.
Importa, assim, apreciar se estamos perante uma situação de proibição, desde logo, de produção e, por isso, de valoração de prova, atinente, com os indicados depoimentos.
Para o que é decisivo saber se as mencionadas testemunhas na altura ainda mantinham a qualidade de arguidos nos processos que foram instaurados contra elas.
Aquela, com efeito, será a sanção geralmente aceite para a violação do estabelecido na alínea a) do n.° 1 e no n.° 2 do artigo 133.° do Código de Processo Penal – cfr. António Alberto Medina de Seiça, “O Conhecimento Probatório do Co-Arguido”, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 93 e 94, PAP de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª edição, UCP, Lisboa, 2011, p. 373 e António Henriques Gaspar et al “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, Coimbra, 2014, p. 521), apud, mais uma vez, o citado acórdão deste Tribunal de 22.2.2017.
No caso, o descrito circunstancialismo fáctico convoca a norma do n.° 1 do artigo 133.° do CPP, ou seja, aqueles que ora se pretende sejam ouvidos como testemunha foram arguidos no processo sob julgamento.
E, assim, não pode depor como testemunha a pessoa que no processo foi constituída como arguida, quer quanto a factos que lhe são imputados a si em exclusivo, quer quanto a factos que são imputados a si e aos seus co-arguidos, o mesmo acontecendo relativamente a processos conexos.
E a apedra de toque, o limite temporal, é aqui “a manutenção da qualidade de arguido”.
Como se sabe a qualidade e o estatuto de arguido conservam-se durante todo o decurso do processo - cfr. artigo 57.º/2 CPP.
Se assim é, logicamente, o impedimento previsto no artigo 133.º/1 CPP cessa quando o arguido perde esta qualidade.
Findo, em relação a si o processo em que era co-arguido, com os que agora estão a ser julgado, com o arquivamento depois de decorrido o período da suspensão provisória, o processo, em relação, a si, findou.
Não tem mais o estatuto de arguido.
Nenhuma razão existe para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha.
Sem o constrangimento inerente à qualidade de arguido.
É no momento em que o agente presta o seu depoimento que tem de se aferir do seu eventual impedimento.
A este propósito a RE já no longínquo ano de 2001, decidiu que, “extinto, por amnistia, o procedimento criminal referentemente a um dos arguidos, pode o mesmo ser ouvido como testemunha no julgamento de outros co-arguidos” - cfr. acórdão de 30.1.2001, CJ, I, 283.
Tanto basta para que, neste ponto, se julgue não afectada por proibição de prova a requerida inquirição das aludidas testemunhas, ex-arguidos.
Assim, o impedimento previsto no n.º 1 apenas vigora, enquanto os visados mantiverem a qualidade de arguidos. Tal como na situação do n.º 2, até passarem a ter a qualidade de condenados, após a revisão do CPP de 2007, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29-08.
Não abrange, portanto, os casos em que, no momento em que depuseram, as indicadas testemunhas já não tinham a qualidade de arguidos por o processo contra elas instaurado ter sido arquivado, nomeadamente depois de ter ocorrido a suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal - cfr. o citado acórdão deste Tribunal de 22.2.2017.
Pode-se, assim, concluir, como faz o MP, que o processo assim arquivado não pode ser reaberto tal como expressamente previsto pelo artigo 282.º/3, do CPP. Estas pessoas perderam, por isso, definitivamente, a qualidade de arguidos com o arquivamento dos autos contra si instaurados.
Assim sendo, a cessação do impedimento (que existiu enquanto subsistiu a qualidade de arguidos) a depor nos autos como testemunhas cessou, simultaneamente, com a cessação definitiva dessa qualidade.
Uma vez cessada a qualidade de arguidos deixou de subsistir qualquer razão para que os depoimentos das testemunhas em causa não fossem obrigatoriamente prestados sem necessidade do seu consentimento.
A propósito refira-se que se o MP arrolou 13 ex-arguidos como testemunhas e se agora restringe a sua inquirição apenas a 4 deles, será, porque seguramente entende que se ao tempo entendia ser o depoimento de todos eles importante para a descoberta da verdade, agora, em função da prova entretanto produzida, entende que apenas em relação a estas 4 testemunhas o respectivo depoimento mantem relevo.
Nada apontoar, portanto, como pretende o arguido, retirar desta restrição.
E, assim, se o Ministério Público entende que se mantém o interesse – tendo subjacente a relevância, a necessidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa - da inquirição de 4 testemunhas, de entre as 13, inicialmente arroladas, como ex-arguidos, impõe-se a revogação do despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que admita e ordene a respectiva inquirição.
E, assim, impõe-se a reabertura da fase de produção da prova em audiência.
Momento em que a tramitação do processado deve ser retomada, donde deriva a consequente invalidade dos actos subsequentes a essa fase.
Donde fica, em face da procedência do recurso interlocutório, fica, naturalmente, prejudicado o conhecimento dos recursos interpostos da decisão final.

III. Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes quem compõem este Tribunal em:
- conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pelo Ministério público, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita e ordene a inquirição das quatro testemunhas em causa, aí se retomando a tramitação do restante processado, baixando os autos, para o efeito à Primeira Instância
- julgar prejudicado o conhecimento dos recursos interpostos da decisão final.
Taxa de justiça pelo arguidos APA e BMS, que responderam ao recurso e ficaram vencidos, que se fixa em 3 Ucs – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal
e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26
de Fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.

Notifique.

Lisboa, 28-09-2023
Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos
Maria JMS
Cristina Santana
Declaração de voto vencido
Não acompanho a posição que fez vencimento quanto à questão tratada no acórdão; teria negado provimento ao recurso nesse ponto.
Tratarei de explicar sucintamente porquê.
Confrontado o Tribunal a quo com várias pessoas arroladas como testemunhas que haviam sido arguidas no inquérito, o qual fora arquivado quanto a elas depois de consideradas cumpridas as injunções aplicadas no contexto de uma suspensão provisória do processo, perguntou o Sr. Juiz Presidente a cada uma delas se consentia na prestação de depoimento, convocando o art. 133º/2 do Código de Processo Penal; não tendo esse consentimento sido prestado, o Tribunal a quo dispensou-as de depor como testemunhas.
Considera-se no acórdão que o Tribunal a quo fez mal, na medida em que, diz-se, não tem aplicação o citado art. 133º/2, mas antes a alínea a) do nº 1 do preceito, sendo que, não mantendo as pessoas em causa a qualidade de arguidos, já não estão impedidas de depor como testemunhas.
Com o devido respeito, penso que a solução de conferir aos visados em apreço a oportunidade de consentirem ou de se recusarem a depor, naquelas circunstâncias, é a mais consentânea, senão com a letra estrita do preceito, pelo menos com a interpretação que se impõe fazer-se do mesmo à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que faz parte, como se sabe, da ordem interna (cfr. art. 8º/2 da Constituição da República Portuguesa/CRP).
Vejamos.
É inequívoco que as pessoas em apreço, não tendo sido objeto de qualquer condenação transitada em julgado, presumem-se inocentes (arts. 32º/2 da CRP). Ora, como tem sido sublinhado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a presunção de inocência não constitui apenas uma garantia no contexto do processo criminal em si mesmo instaurado contra a pessoa visada, mas vai além disso: exige ainda que se garanta que as pessoas que hajam sido absolvidas, ou em relação às quais o procedimento criminal tenha sido descontinuado, vejam a sua situação jurídica respeitada, não podendo ser tratadas pelas autoridades públicas como se de facto fossem culpadas das infrações que lhes eram imputadas; mas mais ainda: diz o TEDH que, depois de uma absolvição ou de uma descontinuação do procedimento criminal, o que também está em causa é o respeito pelo bom nome e reputação das pessoas e a forma como são vistas pelo público, de tal forma que nesta projeção externa do princípio da presunção de inocência há até uma certa sobreposição do art. 6º/2 à proteção conferida por via do direito ao respeito pela vida privada e familiar do art. 8º da CEDH (cfr. Acs. G.I.E.M.Others v. Italy, nº 1828/062 others, § 314, 28.06.2018 e Allen v. the United Kingdom, nº 25424/09, § 94, 12.07.2013, in motor de busca HUDOC).
No caso concreto, o procedimento criminal foi arquivado quanto a estas pessoas; e foi arquivado, note-se, no contexto do cumprimento das injunções impostas em sede de suspensão provisória do processo, a qual tem subjacente um juízo de indiciação sobre os ilícitos criminais mencionados no despacho correspondente (cfr. art. 281º/1 do Código de Processo Penal).
A indiciação então reconhecida torna problemático, à luz do que dissemos atrás, impor a estas pessoas que, sob pena de responsabilidade criminal, prestem declarações sobre os factos em que se alega estarem envolvidas. É certo que o objetivo dessas inquirições não seria apurar a responsabilidade criminal dos inquiridos, mas de terceiros arguidos alegados agentes de crimes conexos; mas não obstante isso, é inevitável que a utilidade previsível desses depoimentos implicará que se toque na intervenção dos próprios inquiridos nos factos.
Ao assim proceder-se, ficarão os visados ante este dilema: ou se recusam a depor ou faltam à verdade, e com isso incorrem na prática de um crime de falsidade de testemunho, punível com pena de prisão até 5 anos (art. 360º do Código Penal); ou, ainda, contra a vontade já manifestada, prestam o seu depoimento, sendo com isso eventualmente forçados a reconhecer, para mais com a publicidade própria da audiência, a sua participação nos factos.
A posição que fez vencimento no acórdão aponta pois no sentido do estabelecimento desse dilema, o que nos parece que se traduz numa inobservância da projeção externa e pública do princípio da presunção de inocência, com isso sujeitando o Estado português a um desrespeito para com a CEDH nos termos apontados e a eventual responsabilidade, se confrontado com uma queixa de algum dos visados junto do TEDH.
E nem se objete com a ideia de que há valores de ordem pública, ligados às finalidades do processo penal e nomeadamente à descoberta da verdade material e realização da justiça, que imporiam um dever de colaboração para com as autoridades, neste caso por via da obrigação de prestar depoimento.
Esses valores têm a maior importância, decerto, mas não podem deixar de ser compaginados com uma outra finalidade do processo penal, que é a de proteger os direitos fundamentais das pessoas (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1988-9, pgs. 22-23), de tal sorte que a margem de atuação do Estado tem fronteiras a respeitar.
E estou em crer que houve neste domínio fronteiras ultrapassadas.
Digamo-lo claramente: não tivesse havido recurso à suspensão provisória do processo, instituto que, entre o mais, é suposto ser um mecanismo que beneficia os visados no sentido em que os aparta da tramitação formal, da exposição pública em julgamento e das possíveis sanções criminais, não tivesse havido esse recurso, dizíamos, e estas pessoas não poderiam ser arroladas como testemunhas, funcionando aberta e notoriamente quanto a elas o impedimento absoluto de deporem previsto pelo art. 133º/1 a) do Código de Processo Penal. Houve recurso à suspensão provisória e em dado passo arquivou-se o inquérito quanto a elas, sabemo-lo. Mas sabemos também que há um detalhe processual que nos parece dever ser realçado neste contexto. A que nos referimos?
Conforme resulta da tramitação do inquérito, que corria termos contra vários arguidos, o Ministério Público procedeu a uma cisão legalmente não consentida do despacho de encerramento do inquérito.
Se há um só inquérito, então a tramitação regular não pode deixar de ser unitária, ou seja, concluídas as investigações, caberá ao Ministério Público encerrá-lo num mesmo momento e num mesmo e integrado despacho, ainda que possam naturalmente dele constar vários segmentos decisórios de conteúdo diverso e nomeadamente os de arquivamento, em qualquer das suas dimensões, e de acusação (cfr. arts. 276º e seguintes do Código de Processo Penal).
Na eventualidade de, concluídas as investigações, o Ministério Público entender que, a par de arquivamentos e de acusação, deve também ter lugar o recurso quanto a alguns dos arguidos a uma suspensão provisória do processo, estamos em crer que a solução jurídico-processual cabida passa por uma separação de processos, em ordem a tramitar a suspensão provisória à parte, não obstaculizando à marcha do processo na parte restante, que não está suspensa (acerca da decisão do Ministério Público sobre o inquérito, vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, pgs. 101 e sgs.).
O que no caso concreto sucedeu foi que o Ministério Público num dado momento determinou a suspensão provisória do processo quanto a estas pessoas ora em causa, então arguidas, mas deu normal continuidade ao processo na parte restante; ao assim ter procedido, enveredou por uma cisão material do inquérito (para a qual não vemos apoio legal), na medida em que quanto a alguns arguidos o inquérito ficou suspenso, mas quanto a outros continuou.
Ora, houvesse essa separação sido formalizada, como estou em crer que devia ter ocorrido, e tornava-se incontestável a não aplicação do art. 1330/1 a) do CPP, que no acórdão se considera aplicável supondo que se esteja diante arguidos no mesmo processo ou em processos conexos (tramitados também como se um só fossem, à luz do art. 290 do CPP).
Nada podendo naturalmente fazer-se quanto ao que sucedeu na parte final do inquérito, nem sendo essa a questão que aqui se nos põe, entendo que deve agir-se agora em ordem a respeitar a verdade material das coisas, no sentido em que se houve uma, se bem que encapotada, separação de processos quanto às pessoas aqui em apreço, então a norma de referência a considerar é o art. 1330/2 do CPP.
E olhando a este art. 1330/2, afigura-se-me que há duas diferenças no seu regime em relação à previsão do n0 1 do preceito: por um lado, o impedimento para depor é meramente relativo, dado que o visado pode depor como testemunha se a tanto consentir; e por outro lado, o âmbito material e subjetivo de abrangência é mais alargado, visto que a sua redação, pela sua largueza, contempla ou pode contemplar todos que sejam ou tenham sido arguidos em processos conexos («...mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado...»).
Afigura-se-me em suma que a letra do art. 1330/2 do CPP acomoda a situação dos autos e permite do mesmo passo encontrar uma solução que respeita as projeções da presunção de inocência a que aludíramos tendo em perspetiva a jurisprudência do TEDH.
Objetar-se-á: os impedimentos absoluto [art. 1330/1 a)] ou relativo (art. 1330/2) são instrumentos concretizadores do privilégio da não autoincriminação, pelo que, se o processo não pode ser reaberto quanto aos arguidos que beneficiaram da suspensão provisória, à luz do art. 2820/3 do CPP, não há razão para que funcione qualquer dos impedimentos; e por outro lado, a consagração do direito de recusar-se a depor previsto no art. 1330/2 mesmo para o arguido que tenha já sido alvo de uma sentença transitada em julgado justificar-se-á pela possibilidade de a decisão transitada poder ser objeto de um recurso extraordinário de revisão, com isso tornando necessário criar como que uma extensão daquele privilégio, ainda que sob o formato do impedimento relativo.
Quanto a esta objeção, alerto porém que, à semelhança de uma decisão final transitada em julgado, também há quem defenda que o despacho do MP proferido ao abrigo do art. 2820/3 pode ser objeto de um recurso de revisão, nos chamados casos de revisão pro societate das alíneas a) e b) do n0 1 do art. 4490, nos termos para que aponta o n0 2 desta norma (neste sentido, vide Paulo de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, pgs. 752 e 768 e o Ac. do Tribunal de Justiça que o mesmo cita, em abono de uma certa equiparação da decisão de arquivamento do MP a uma decisão judicial, naquele caso para efeito de alcance do princípio ne bis in idem).
E por outro lado e em qualquer caso, quem pode garantir que, em inquérito arquivado na sequência de uma suspensão provisória do processo, não possa vir a ser reconhecido um vício que ponha em crise o arquivamento? Imagine-se por exemplo que, em violação do art. 2810/1 a) do CPP, a suspensão provisória é decretada e levada ao seu termo sem que se tenha colhido a prévia concordância do assistente, o qual entretanto toma conhecimento da omissão e a argui nos autos.
Nestas circunstâncias, pode dizer-se, de ciência certa e inequívoca, que o processo arquivado no contexto da suspensão provisória não mais poderá em caso algum vir a ser reaberto?
Se é assim, não vejo por que introduzir um tratamento diferenciado para situações materialmente idênticas entre quem viu o processo ser arquivado pela suspensão provisória e quem foi já objeto de uma sentença transitada em julgado: num e noutro dos casos a situação jurídica dos envolvidos está pacificada e será excecional a sua alteração, mas, na lógica da posição que fez vencimento, só no segundo deles se reconheceria o direito de recusar o depoimento, com o que até poderá prefigurar-se uma interpretação do art. 1330 do CPP contrária ao princípio da igualdade consagrado no art. 130 da CRP.
Por todo o exposto, e embora reconheça que a posição que fez vencimento está bem estruturada e fundamentada, não a posso subscrever.
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