Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 29-05-2008   Contra-ordenação; recusa de identificação; desobediência
Quem recusa identificação, ainda que para efeitos de contra-ordenação comete o crime de desobediência
Proc. 3710/08 9ª Secção
Desembargadores:  Fernando Correia Estrela - Guilherme Castanheira - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam na 9. secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – No Proc.(...) do 3.° Juízo de Competência Criminal de Almada, por sentença de 30 de Janeiro de 2008, foi o arguido (…) absolvido do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal, que lhe era imputado na acusação.

II – Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:
1. Os factos dados como provados constituem o arguido na autoria de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.
2. A situação em análise situa-se fora do quadro de aplicação do artigo 250.° do Código de Processo Penal, relativo à identificação de suspeitos da prática de crimes e pedido de informações, no âmbito das 'Medidas Cautelares e de Polícia', bem como fora do quadro da aplicação da Lei n.° 5/95, de 21/02, que veio estabelecer a obrigatoriedade do porte de documento de identificação e a possibilidade de exigência de identificação de suspeitos da prática de crimes, uma vez que nos situamos não no âmbito penal mas contra-ordenacional, razão por que não colhe no presente caso o argumento segundo o qual não obstante a ordem de identificação emanada pelos agentes de autoridade seja legítima e tenha o arguido praticado uma contra-ordenação, não podiam os agentes de autoridade cominar com a prática do crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação.
3. O artigo 171.0, do Código da Estrada, referido pelo Tribunal 'ad quo' também não tem aplicação no caso em apreço, pois o seu âmbito de aplicação está pensado para os casos em que o agente de autoridade não pode, porque lhe é impossível, identificar o agente da infracção. E no presente caso, o agente apurou quem era o autor da infracção e estava em condições de o identificar, só não o fez porque o arguido se recusou a fornecer a sua identificação.
4. Não se verificando, no caso concreto, o circunstancialismo previsto no artigo 171.°, do Código da Estrada nem o previsto no artigo 250.°, do Código de Processo Penal, pois que os agentes policiais não podem conduzir os agentes de contra-ordenações ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à sua identificação, podem cominar a recusa de identificação com a prática do crime de desobediência.
5. Estando em causa a prática de contra-ordenação, rege o artigo 49.° do Decreto-Lei 433/82, de 27/10 'ex vi' artigo 132.°, do Código da Estrada, o qual autoriza as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contra-ordenação em geral, não se aplicando neste âmbito o disposto naquele artigo 250.°.
6. Assim, e como bem refere o Tribunal 'ad quo' a ordem emanada do Cabo da GNR é legítima, pois que observou escrupulosamente a norma do artigo 49.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10.
7. Tendo-se dado como provados todos os factos descritos na acusação, está demonstrada quer a legitimidade e regularidade da ordem de identificação emanada e da advertência que, face à recusa do arguido, se lhe seguiu, quer a consciência, por parte do arguido, da legitimidade da ordem que lhe havia sido dada, bem como a vontade do mesmo de desobedecer a tal ordem, sabendo embora que tal comportamento a faria incorrer na prática do crime por que vem acusado, devia o Tribunal ter condenado o arguido pela prática do crime de desobediência.
8. Não o entendendo assim, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 348.0, n.° 1, alínea b) do Código Penal, 132.0, do Código da Estrada, 49.° do Decreto-Lei n° 433/82, de 27/10 e 250.° do Código de Processo Penal e da Lei n.° 5/95, de 21/2, e ainda, por erro de aplicação, os artigos 171.°, do Código da Estrada.
9. Em face do exposto, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.0, n.° 1, alínea b), pelo qual vem acusado.
10. Considerando a moldura penal abstracta aplicável ao crime de desobediência, de 10 a 120 dias, e tendo em conta o grau de ilicitude do facto e o grau de violação dos deveres impostos ao agente, que é mediano, a intensidade do dolo, que é directo, as especiais necessidades de prevenção geral, que são elevadas, tendo em conta que a conduta do arguido atentou contra a autonomia intencional do Estado, e as necessidades de prevenção especial positiva que são baixas, pois o arguido não tem antecedentes criminais, entendemos justa, por adequada às finalidades da punição a aplicação de uma pena de multa de 60 dias.
11. Quanto ao quantitativo diário da pena de multa, tendo em conta que o arguido é assistente administrativo, actividade da qual aufere, mensalmente, a quantia de € 700,00, que paga € 250,00 de mensalidade da faculdade e € 347,00 mensais relativos à amortização do crédito à habitação, reputa-se ajustada a fixação da taxa diária da multa em pelo menos € 6,00.

III — O arguido não apresentou resposta.

IV — Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

V — Transcreve-se a decisão recorrida:
(...)
II - DOS FACTOS PROVADOS
1. No dia 14 de Novembro de 2005, cerca das 09:55 horas, (...) circulava com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 63-13-EH no corredor de transportes públicos da Ponte 25 de Abril, Pragal, área desta comarca, quando foi mandado parar por soldados da Brigada de Trânsito da GNR, que nesse local exerciam funções de fiscalização de trânsito, devidamente uniformizados e identificados.
2. Foi confrontado com o facto de não poder circular no aludido corredor àquela hora e, por tal motivo, os referidos agentes fiscalizadores pediram-lhe que se dirigisse às instalações do posto fixo da Ponte BT/GNR, a fim de aí ser levantado o respectivo auto de contra-ordenação.
3. No interior daquelas instalações (...) colocou em cima da mesa os seus documentos de identificação e do veículo, tendo sido esclarecido sobre os procedimentos em vigor para pagamento da coima, nomeadamente que podia efectuá-lo no local e, em caso negativo, seriam os documentos substituídos pelo período de 15 dias úteis, sendo-lhe restituídos logo que apresentasse prova do pagamento.
4. Ao ouvir falar na substituição dos documentos, de imediato (...) agarrou nos seus documentos e retirou-os da mesa, dessa forma inviabilizando que fosse levantado o auto de contra-ordenação.
5. Os agentes fiscalizadores solicitaram novamente ao arguido os referidos documentos e pediram-lhe a identificação, no entanto, o arguido não lhes facultou os documentos pessoais de identificação, recusando-se a identificar-se por qualquer forma.
6. Em face da atitude do arguido, os referidos agentes advertiram-no expressamente que tal recusa de identificação o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
7. Não obstante ter ficado ciente da ordem que lhe tinha sido dirigida e da respectiva cominação, o arguido mais uma vez recusou identificar-se, não entregando qualquer documento pessoal de identificação, nem se fazendo identificar por qualquer outra forma.
8. Não dispondo de qualquer outro mecanismo coercivo para lograr identificar o arguido, os agentes fiscalizadores procederam à sua detenção, considerando que o arguido persistiu na recusa de identificação.
9. Ao actuar da forma descrita o arguido agiu com o propósito concretizado de não cumprir a ordem que legitima e regularmente lhe foi comunicada, recusando identificar-se, não obstante estar ciente da cominação que lhe foi feita de que incorreria na prática de um crime de desobediência.
10. O arguido actuou com o propósito de não cumprir os comandos ínsitos a ordem de identificação que lhe foi dirigida, comandos esses que sabia emanarem de funcionários com competência para tanto e no âmbito das suas funções, os quais lhe foram legal e regularmente transmitidos.
11. O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente.
12. O arguido sabia que estava obrigado a identificar-se, ainda que discordasse dos factos que lhe estavam a ser imputados pela contra-ordenação, contudo, ao invés de impugná-los pela via adequada, quis violar a ordem que regular e legitimamente lhe foi dirigida.
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
14. É assistente administrativo, actividade de onde aufere € 700 mensais.
15. Suporta o pagamento mensal de € 347 relativos a amortização de crédito á habitação.
16. Paga € 250 de mensalidade da faculdade.
(...)
5. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO'
Vem o arguido acusado da prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348°, n° 1, alínea b) Código Penal.

Quanto ao artigo 348°, n° 1 Código Penal que regula o crime de desobediência dispõe que 'Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.'
Pratica um crime de desobediência quem faltar à obediência devida e tal obediência só é devida a ordem ou mandado legítimos sendo condição necessária dessa legitimidade é a competência em concreto da entidade de onde emana a ordem ou mondado.
A ordem em causa tem que chegar ao conhecimento do destinatário e pelas vias normalmente utilizadas ou seja que lhe seja regularmente comunicado.
Finalmente, não basta a mera desobediência a uma ordem legítima dada por quem tem competência para tal, é ainda necessário que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 351, Cristina Líbano Monteiro.
Quanto ao elemento subjectivo, temos que este é um crime doloso; a desobediência negligente não é punível (artigo 13.° Código Penal).
O tipo doloso deste crime preenche-se sempre que alguém incumpre consciente e voluntariamente, uma 'ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente in obra cit. pág. 358.
E, portanto um dolo genérico, por isso basta-se a norma com o conhecimento e vontade de realização do facto típico.
O bem jurídico que a norma em causa visa proteger é a autonomia intencional do Estado isto é, visa-se a abstenção de comportamentos que obstem ao regular curso actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos
In casu, resultou provado que o Soldado (…) solicitou a identificação a Nuno Salvador, que apesar de a ter fornecido inicialmente, depois de a voltar a recolher não mais a forneceu, recusando-se sempre a fazê-lo. Resultou igualmente provado que os agentes advertiram o arguido de que a recusa em se identificar consubstanciava a prática de um crime de desobediência.
Porém, e para que se considerem verificados todos os elementos objectivos do tipo cumpre aferir se a ordem de identificação dada ao arguido foi uma ordem legítima e se a recusa em fornecer a identificação consubstancia uma desobediência.
Vejamos então as normas que regulam a identificação pessoal.
A obrigação de identificação pode advir da suspeita que sobre o agente impende de ter praticado um crime, e então o procedimento de identificação deve obedecer às normas do artigo 250.° Código Processo Penal, ou então a obrigação de identificação tem outra natureza, e por isso, outra tramitação.
Era o arguido suspeito da prática de um crime? Não.
A obrigação de o arguido se identificar não advinha de ser suspeito da prática de um crime, nos termos do Código Penal mas sim de a sua conduta constituir uma contra-ordenação praticada no exercício da condução e, por isso, regulada pelo Código da Estrada.
Assim, tinha o arguido a obrigação de se identificar nos termos do disposto no artigo 171 ° Código da Estrada. De acordo com o n° 1 este preceito do Código Penal a identificação do arguido deve fazer-se através de através da indicação de: a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social; b) Residência ou, quando se trate de pessoa colectiva, sede; c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor ou, quando se trate de pessoa colectiva, do número de pessoa colectiva; d) Número do título de condução e respectivo serviço emissor; e) Identificação do representante legal, quando se trate de pessoa colectiva; f) Número e identificação do documento que titula o exercício da actividade, no âmbito da qual a infracção foi praticada.
Mais esclarece o n° 2 do mesmo artigo que 'Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao ti tular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o corresponden¬te processo'.
Assim, de acordo com o n° 2 da citada disposição legal, na impossibilidade de identificar o condutor do veículo autor da infracção cometida durante o acto da condução, como foi o caso dos autos, devem as autoridades levantar o auto de contra-ordenação em nome do proprietário do carro que conseguem identificar através da Base de Dados da Conservatória do Registo Automóvel.
Em contrário desta solução, não colhe igualmente defender-se que o referido preceito está pensado para aquelas situações em que por exemplo não se chega à fala com o condutor do veículo ou a contra-ordenação é registada por radar, uma vez que nada na lei permite tal interpretação.
Por outro lado, e fazendo uma interpretação sistemática do preceito, temos o já referido artigo 250° Código Processo Penal, que prescreve os tramites a seguir para a identificação de suspeitos da prática de crimes, sendo que em momento algum da referida norma a recusa de identificação é cominada com a desobediência.
Ora, se a recusa de identificação de um suspeito da prática de um crime não é cominada com a prática de um crime de desobediência, naturalmente também não o pode ser igual conduta praticada por um agente de uma contra-ordenação, conduta cujo desvalor é muito menor.
Assim temos que, a recusa de identificação não é, nem mesmo ante a suspeita da prática de um crime, cominada com a desobediência conduzindo isso sim, e quando se reporte à prática de uma contra-ordenação no exercício na condução, ao levantamento do auto em nome do proprietário registado do veículo que é advertido de que poderá identificar o condutor, caso não seja o próprio.
Destarte, não obstante a ordem de identificação ser legítima ter o arguido praticado uma contra-ordenação, não podem os agentes cominar com a prática de um crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação, impondo-se, por isso, a absolvição do arguido.
6. DECISÃO
Nestes termos, e pelo exposto, julgo a acusação improcedente nos termos supra referidos e consequentemente:
1. Absolvo o arguido (…), da prática como autor material de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo art.° 348.° n.° 1 alínea b) do Código Penal.
(...)

VI — Cumpre decidir.
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente,nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.° 419.° n.° 3 alínea c) do C.P.Penal.
3. Sobre o enquadramento jurídíco-criminal dos factos provados.
Desde já se adianta que se concorda com a posição do Ministério Público/recorrente e que se transcreve parcialmente por merecer o nosso acordo.
'A recusa de identificação à autoridade policial por parte do agente de uma contra-ordenação pode constituir crime de desobediência.
Ora, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, tendo-se dado como provados todos os factos constantes da acusação, e supra transcritos, os mesmos são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido do crime de desobediência.
Vejamos porquê.
Faz a decisão recorrida alusão ao artigo 171.°, do Código da Estrada e ainda ao artigo 250.°, do Código de Processo Penal para, depois, concluir que os elementos da GNR não podiam cominar com a prática de um crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação.
Quanto ao referido artigo 171.°, o mesmo não tem aplicação no caso em apreço.
O seu âmbito de aplicação está pensado, contrariamente ao que defende a Sra. Juíza a quo, para os casos em que o agente de autoridade não pode, porque lhe é impossível, identificar o agente da infracção. E no presente caso o Cabo (...) podia, pois era-lhe possível, ter identificado o arguido, agente da contra-ordenação.
Com efeito, o arguido estava na presença do agente de autoridade, cara-a-cara com ele, e este só não o identificou porque o arguido se recusou a fornecer a sua identificação, e não porque, de qualquer forma, não o conseguiu identificar.
O agente apurou quem era o autor da infracção e estava em condições de o identificar.
Por outro lado, ao contrário do referido pelo tribunal 'a quo', tal normativo não exclui a possibilidade de incriminar por desobediência o desrespeito de ordem ou mandado legítimo de autoridade porque no âmbito contra-ordenacional, como bem refere o Tribunal 'a quo', o artigo 250.°, do' Código de Processo Penal não tem aplicação ao caso em apreço.

A situação em análise situa-se fora do quadro de aplicação do artigo 250.° do Código de Processo Penal, relativo à identificação de suspeitos da prática de crimes e pedido de informações, no âmbito das 'Medidas Cautelares e de Polícia', bem como fora do quadro da aplicação da Lei n.° 5/95, de 21/02, que veio estabelecer a obrigatoriedade do porte de documento de identificação e a possibilidade de exigência de identificação de suspeitos da prática de crimes.
Com efeito, na factualidade que originou a acusação deduzida nos presentes autos, e que foi considerada provada, a ordem de identificação não se relacionou com a responsabilidade criminal mas sim contra-ordenacional do arguido.
O citado artigo 250.°, bem com a Lei n.° 5/95, partem de um pressuposto concreto para a sua aplicação, qual seja o de haver fundadas suspeitas da prática de crime, aplicando-se assim a casos em que está em causa apuramento de eventual responsabilidade criminal.
Não é, no entanto, apenas ao serviço do apuramento de uma possível responsabilidade criminal que a autoridade policial pode exigir a identificação de um cidadão.
Passamos a explicar.
No caso que originou o presente recurso somos confrontados com a actuação de elementos da GNR e de um cidadão, de que releva, quanto àqueles, a emanação de uma ordem de identificação, e quanto a este, a recusa de acatar tal ordem.
Trata-se ainda de comportamentos despoletados pelo facto de o arguido circular, no dia 14/11/2005, cerca das 9h55m com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...)no corredor de transportes públicos da Ponte 25 de Abril sem lhe ser permitido, facto que constitui contra-ordenação, nos termos do disposto no n.°s 1 e 3, do artigo 77.° do Código da Estrada.
Parece então que deveremos começar por abordar a disciplina normativa do poder de exigir a identificação de um qualquer cidadão, por parte de um agente de autoridade, centrados sobretudo no âmbito das contra-ordenações.
Importa, assim, identificar as normas que especificamente autorizem o controlo de identidade, em homenagem ao apuramento de responsabilidade não penal, mas antes contra-ordenacional.
E, neste último âmbito, que é aquele quê nos interessa, rege, antes do mais, o disposto no artigo 49.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10, aplicável 'ex vi' artigo 132.°, do Código da Estrada, de acordo com o qual 'as autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.'
Esta exigência de identificação está directamente ligada ao disposto no artigo 48.° do mesmo Decreto-Lei, que estipula que 'as autoridades policiais e fiscalizadoras deverão tomar conta de todos os eventos ou circunstâncias susceptíveis de implicar responsabilidade por contra-ordenação e tomar as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas.'
Estes artigos autorizam, assim, as autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contra-ordenação em geral.
Tendo-se provado, na sentença recorrida, que no dia 14 de Novembro de 2005, cerca das 09:55 horas, o arguido circulava com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...) no corredor de transportes públicos da Ponte 25 de Abril, Pragal, área desta comarca, (ponto 1. dos factos provados), tal comportamento tê-lo-á feito incorrer, em princípio, na contra-ordenação prevista no artigo 77.°, n.°s 1 e 3, do Código da Estrada, estando assim em causa responsabilidade não penal mas contra-ordenacional, pelo que terá aqui aplicação o artigo 49.° do Decreto-Lei 433/82, de 27/10, sendo legítima a ordem emanada pelos agentes de autoridade no sentido de o arguido fornecer os seus elementos de identificação.
E tendo-se provado que os elementos da GNR se encontravam em serviço, devidamente uniformizados e identificados, tendo advertido o arguido de que a sua recusa em se identificar o faria incorrer num crime de desobediência, mais se provando a permanência na recusa, por parte do arguido, em fornecer a sua identificação, sempre estaria manifestamente em causa o cometimento, pelo arguido, de um crime de desobediência, desde que, obviamente, os respectivos elementos típicos se mostrem preenchidos.
E tais elementos típicos encontram-se indubitavelmente preenchidos, atentos todos os factos dados como provados, acima transcritos.
Senão vejamos:
Dispõe o artigo 348.°, no seu n.° 1, alínea b), que quem faltar à obediência devida a uma ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
Introduziu-se assim o requisito da cominação prévia feita pelo funcionário ou autoridade, como pressuposto da punição, no caso de nenhuma outra disposição legal prever comportamentos cuja punição é remetida para este artigo.
Ora, tendo-se dado como provados todos os factos constantes da acusação, constitutivos do crime de desobediência, não restarão quaisquer dúvidas da prática, pelo arguido, de um crime de desobediência, tal como ele se encontra previsto no artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.
Sustenta-se na decisão recorrida que não obstante a ordem de identificação seja legítima e tendo o arguido praticado uma contra-ordenação, não podia o Cabo (…) da GNR cominar com a prática de um crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação, mas tão só proceder ao levantamento do auto de contra-ordenação em nome do proprietário do veículo.
Como acima já se deixou dito, não se verificando, no caso em concreto, o circunstancialismo previsto no artigo 171.0, do Código da Estrada nem o previsto no artigo 250.°, do Código de Processo Penal, pois que os agentes policiais não podem conduzir os agentes de contra-ordenações ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à sua identificação, podem cominar a recusa de identificação com a prática do crime de desobediência.
O entendimento aqui sustentado no sentido da incriminação por desobediência dos agentes de contra-ordenações que recusem identificar-se à autoridade policial está de acordo com a posição defendida no Parecer 5/97, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 22 de Maio de 1997, para as contra-ordenações estradais, aliás tornada doutrina obrigatória pelo Ministério Público pela Circular 5/97 da PGR.'
Pelo exposto, os factos dados como provados na decisão recorrida, integram a prática pelo arguido, em autoria material, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), pelo qual vinha acusado.
4. Da medida da pena.
Relativamente à medida da pena, atente-se naquilo que a esse respeito se refere no Ac. do S.T.J. de 6/05/1998 in B.M.J. rí°477, p.100:
' 1 — Sendo a culpa, o juízo de censura dirigido ao agente pela conduta que livremente assumiu, na definição da medida da pena cumpre ter presente que não há pena sem culpa e que a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa.'
'2 — As exigências da prevenção geral, considerada esta como prevenção positiva ou de integração, definem o limite mínimo da medida concreta da pena'
' 3 — A prevenção especial, no sentido positivo de reintegração do agente na sociedade determina a fixação da medida concreta da pena num 'quantum' situado entre o limite mínimo exigido pela prevenção geral e o máximo ainda adequado à culpa . '
A moldura penal abstracta relativamente ao crime de desobediência é del mês a 1 ano de prisão ou multa de 10 a 120 dias.
Tendo o arguido praticado facto típico, ilícito e culposo e não se encontrando reunidos os pressupostos da dispensa de pena, impõe-se a aplicação de pena, como consequência jurídica da prática do crime.
A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, 'Boletim dos Institutos de Criminologia', 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.° do Código Penal.
E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
As exigências de prevenção geral são extremamente importantes face ao défice de autoridade que perpassa pela sociedade em geral.
Não são especialmente relevantes as necessidades de prevenção especial, já que o arguido é delinquente primário.
Sendo finalidades das penas, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
Contra o arguido há a considerar a não excessiva gravidade objectiva e subjectiva dos factos; a ilicitude é razoável, como o é o grau de culpa.
E como acima se expôs, face às finalidádes das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa (art. 40.° n.° 2 do C.Penal).


Dispõe o art. 70.°, do Código Penal que sempre que for aplicável alternativamente pena privativa e não privativa da liberdade, o Tribunal deverá dar preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que se considere que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidade da punição. Desde logo, face aos factos descritos bem como à circunstância de o arguido ser delinquente primário ir-se –á optar pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade.
Nos termos do artigo 40.°, n.° 1, do Código Penal, a aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Relativamente ao caso sub judice foi dado como provado que o arguido é assistente administrativo, actividade de onde aufere € 700 mensais;suporta o pagamento mensal de € 347 relativos a amortização de crédito à habitação;e paga € 250 de mensalidade de faculdade. É delinquente primário e está inserido social e profissionalmente.
Assim, entende-se como adequado a aplicação ao arguido de uma pena de 60 (sessenta) dias de multa, como requerido pelo M.P..
Relativamente ao montante da pena de multa a aplicar ao arguido, entende-se fixar o quantitativo diário em € 6,00 (seis euros), nos termos do preceituado no art.° 47.°, n.° 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.° 59/2007, de 4/09, em vigor à data da prática dos factos, porquanto mais favorável ao arguido (quantia entre € 1,00 e € 498,90), tendo por base a situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais (vd ainda art.° 2.° n.° 4 do C.Penal).
Pelo exposto, entende-se em aplicar ao Arguido recorrente – nos termos do disposto nos art °s 70.° e 71.° e 40.°, todos do C.Penal –, a pena de 60 (sessenta) dias de multa á taxa diária de € 6,00 (seis euros) , o que perfaz € 360,00 - atendendo-se a todos os factos e elementos relevantes: à culpa do arguido, ao dolo directo, á confissão dos factos, ao facto de ser delinquente primário, e ás suas condições pessoais.

Nos termos do disposto no art. ° 2.° n.° 4 do Código Penal, manteve-se aplicação do C.Penal de 1995,sendo o regime penal mais favorável ao arguido já que o C.Penal aprovado pela Lei n.° 59/2007 de- 4 de Setembro alterou o mínimo e máximo da taxa diária de multa,agravando-o.


VI- Termos em que concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público :
1. Decide-se que o arguido cometeu, em autoria material, um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.°n.° 1 alínea b) do C.Penal.
2. Condena-se o arguido na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros),o que perfaz € 360,00.
3. Custas pelo arguido sendo de 4UC s a taxa de justiça.
(Acórdão elaborado e revisto pelo relator- vd. art.° 94 ° n.° 2 do C.P.Penal)
Lisboa,
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