Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 04-05-2005   Homicídio qualificado. Especial censurabilidade. Meio insidioso. Indemnização. Perda do direito à vida.
I - Entendeu o tribunal a quo considerar a factualidade julgada provada como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado pela sua “especial censurabilidade”, enquadrando esta na al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP, ou seja, considerando a conduta do ora recorrente como insidiosa, “por não ter permitido qualquer hipótese de fuga ou defesa” à vítima.
II - Conforme ensina Figueiredo Dias “o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada de homicídio simples”. Temos assim que é, apenas e só, aquela especial censurabilidade ou perversidade do agente a matriz da agravação/qualificação do homicídio, não podendo este ocorrer sem aquela.
III - Independentemente do enquadramento da factualidade provada num qualquer dos exemplos- padrão do n.º 2 citado, cremos que todo o circunstancialismo descrito é, por si só, bastante para podemos concluir pela “especial censurabilidade ou perversidade” na conduta do recorrente.
IV - Desde logo porque traduz o expoente máximo da violência conjugal e familiar, o culminar de um “casamento de discussões, ameaças e agressões”. Depois- apelando aos citados “exemplos-padrão”- o agir sub-reptício, oculto e traiçoeiro do arguido, aproveitando um momento de alguma descontração e indefesa da vítima quando se preparava para se deitar, o que configura ,contrariamente ao que parece entender o recorrente, meio insidioso.
V - Ponderado que é todo o circunstancialismo descrito, temos por justa e adequada a pena de 20 anos de prisão aplicada.
VI - Ponderando todo o circunstancialismo dos autos, nomeadamente a especial culpa do arguido, temos por adequadamente fixados os montantes de 100.000 Euros pela perda do direito à vida, 50.000 Euros quanto aos danos não patrimoniais sofridos pela assistente, 10.000 Euros relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima durante o período de quatro dias até à morte.
Proc. 1805/05 3ª Secção
Desembargadores:  Varges Gomes - Mário Morgado - Cláudio Ximenes - Rodrigues Simão
Sumário elaborado por Maria José Morgado
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Proc. 1805/05
3ª Secção

Acordam em audiência neste Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
1- Por acórdão de 30/04/04, proferido nos autos de Proc. Comum (Trib.Col.) nº 751/03.8PDLRS, da 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal de Loures, foi o arguido F ...condenado, pela prática de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos artºs 131º e 132º nº 2 al. h) - “meio insidioso” - do CP, “na pena de 20 (vinte) anos de prisão”, bem como e também, procedendo o pedido cível formulado pela assistente/demandante A ..., condenado a pagar-lhe “a quantia de 175.000,00 euros (cento e setenta e cinco mil euros”.

1.1- É do assim decidido que o arguido - em longuíssima motivação - interpõe o presente recurso, da mesma extraindo as - não menos longas - seguintes conclusões :

“A) O presente recurso assenta na impugnação da decisão sobre parte da matéria de facto, que se considera incorrectamente julgada por ser insuficiente a factualidade que conduziu a tal decisão, bem como porque existe também um notório erro de apreciação da prova ;
B) Com efeito, o Tribunal “a quo” valorou um depoimento que entendemos não merecer crédito e ser desmentido por outras provas testemunhais e documentais, como é o caso do depoimento da Assistente demandante civil e filha do casal, A ... ;
C) E, por outro lado, não lhe mereceram crédito os depoimentos das testemunhas de defesa apresentadas pelo Recorrente e que depuseram sobre a sua personalidade e relações entre o casal, credibilizando em contrapartida os depoimentos das testemunhas de acusação particular, familiares directas e próximas da vítima ;
D) Consideram-se incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto considerados provados, indicados no anterior ponto 6 destas motivações e que aqui se dão por reproduzidos, bem como os especificados no anterior ponto 7 e que foram considerados não provados ;
E) Com efeito, do recurso ao relatório de autópsia, ao exame balístico, fotografias juntas aos autos, nomeadamente as juntas em sede de inquérito sob os nºs 7 a 13, 16, 17 e 26 e aos depoimentos das testemunhas gravados (B …, ouvido na cassete 2, lado B voltas 3683 a 4752), C … (cassete 3, lado A, voltas 0857 a 1580), D … (cassete 3, lado B, voltas 2891 a 4341), E … , (cassete 5, lado A, voltas 2203 a final e lado e lado B, voltas 0000 a 3000), G … (cassete 5, lado B, voltas 3613 a 4478), H … (cassete 5, lado A, voltas 1913 a 2430), I … (cassete 5, lado B, voltas 4479 a 4904), J … (cassete 6, lado A, voltas 0447 a 1053), L … (cassete 6, lado A, voltas 1053 a 1436), M … (cassete 6, lado A, voltas 1437 a 1844), N … (cassete 6, lado A, voltas 1845 a 2025), O … (cassete 6, lado A, voltas 2026 a 2244) e P … (cassete 6, lado A, voltas 2245 a 25499), cuja prova deve ser renovada, entendemos que outra decisão justificaria sobre a matéria provada e não provada ;
F) A maioria da matéria de facto considerada provada, foi-o com base no depoimento da Assistente A ... que, segundo o Tribunal, depôs com “sinceridade”, do que discordamos porque entendemos que se demonstra que esta, apesar de se encontrar em casa, não assistiu ao disparo, nem aos momentos imediatamente anteriores, por estar fechada no seu quarto e de porta encerrada, ao contrário do que afirma e que o tribunal “a quo” acolheu ;
G) O depoimento da Assistente é desmentido, quando refere que ouviu os pais a discutir do exterior da casa, encontrando-se ela no seu interior, pelo depoimento das testemunhas B …, que se encontrava no hall interior do prédio e refere não ter ouvido nada do que se passava no seu exterior, por a porta automática do prédio se ter fechado, bem assim C … ;
H) Igualmente é desmentido no que se refere a ter visto o pai ir ao escritório buscar um saco de plástico que tinha o material de limpeza e, referindo-se ao mesmo, deu-se ao trabalho de identificar a cor do spray do óleo de limpeza da arma como vermelha, quando o mesmo era azul, como resulta do documento nº 26 ;
I) A Assistente, ao contrário do que afirma, nada viu, nem ouviu a quando do disparo e nos momentos imediatamente anteriores e posteriores, pois encontrava-se no seu quarto, estava fechada no seu quarto, com a porta fechada, como o referiram as testemunhas D … e Q ..., agentes da PSP, que acorreram ao local imediatamente após o disparo e com a assistente falaram ;
J) A Assistente estava de porta fechada no seu quarto e só dele saiu após o pai a chamar, como referiu à testemunha Q ... (cassete 3, lado B, voltas 2891 a 4341) ;
L) Igualmente o Tribunal avaliou incorrectamente as provas - excluído o testemunho da Assistente - quanto à posição do corpo, local do tiro e forma como foi feito o disparo ;
M) Tendo o projéctil disparado atingido a AA … na região parietal direita e considerando o Tribunal que a vítima estava sentada na cama de costas para a porta e tendo a janela do quarto na sua frente, pelo que “…não se aperceberia da arma, do disparo e não poderia esquivar-se-lhe”, estamos perante o impossível ;
N) Caso a vítima estivesse de costas para o agressor, ainda que de inviés, o disparo atingiria a nuca e nunca a parietal direita por cima da orelha, dado que para que tal tivesse acontecido, o disparo teria de vir da direita da vítima ;
0) E tendo a vítima sido atingida no local referido, esta teria então visto o agressor, de arma na mão, podendo subtrair-se a tal, facto que o Tribunal não considerou, pois entendeu que, “no momento em que a AA… despia os collants, sentada na cama na referida posição, o arguido entrou no quarto onde a esposa se encontrava, sem que esta se tivesse apercebido da sua presença” e que “F … ao disparar o projéctil, quando AA ... se encontrava na mencionada posição…sabia que, desta forma, ela não se aperceberia da arma, do disparo e não poderia esquivar-se-lhe” ;
P) Por outro lado, estando a vítima sentada à beira da cama - estaria a vestir (?!) os collants, na tese da acusação - ao ser atingida na zona direita, o impacto da bala levaria o corpo a cair num sentido que não aquele que o Tribunal deu como provado ou seja que o corpo “…tombou para cima da cama, de barriga para cima, na diagonal, com a cabeça sobre as almofadas que se encontravam junto à cabeceira direita da cama e com as pernas, da zona dos joelhos para baixo, a pender para o chão, do lado esquerdo da cama, junto da janela” ;
Q) Ninguém viu o corpo tombar para além do arguido que, no seu depoimento, refere que com a filha mexeram no corpo, colocando-o em cima da cama (vd depoimento do arguido na cassete 1, lado A, voltas 0000 até 2450 e esclarecimentos, voltas 2451 a 4621) ;
R) Ora, se o tiro fosse disparado nas condições em que foi dado como provado, o corpo seria projectado para fora da cama ou, pelo menos, nunca ficaria virado de barriga para cima, sendo que esta posição só seria possível em caso de disparo frontal, o que não aconteceu, dado o local onde o projéctil entrou (parietal direito) ;
S) Quanto à direcção do tiro, entende-se que o relatório de autópsia não é esclarecedor, pois definiu um único trajecto do projéctil, quando do próprio relatório (vd fls 120) de autópsia consta que foram encontrados dois fragmentos de projéctil de arma de fogo no ventrículo lateral esquerdo ;
T) Ora, quando o projéctil se fragmenta é impossível definir uma trajectória exacta, como o refere a testemunha E …, perito balístico, no seu depoimento gravado na cassete 5, lado A (voltas 2203 a final) e lado B) (voltas 0000 a 3000) e pela testemunha G …, ouvido na cassete 5, lado B (voltas 3613 a 4478) ;
U) Havendo dois fragmentos de projéctil, que ficaram alojados no cérebro - não houve orifício de saída - não é possível definir o trajecto do projéctil, sendo que a Srª Perita indicou apenas um dos canais, sem se referir ao outro gerado pelo segundo fragmento do projéctil ;
W) Igualmente, o local em que a vítima foi atingida foi outro que não o considerado pela decisão recorrida ;
V) O Recorrente alegou que, no momento do disparo, a vítima se encontrava junto à porta de entrada no seu quarto, para onde se dirigiu, encontrando-se aquele à entrada do escritório, a cerca de 1,50m/1,80m, ou seja, à direita da vitima, atento a localização desta, o que não é desmentido pelo local da entrada do projéctil no corpo da vítima ;
X) E é confirmado pelos indícios existentes nesse local, dado que das fotos juntas aos autos em sede de inquérito, constata-se a existência de manchas de sangue no chão junto à porta de entrada do quarto do casal (fotos 9 e 10), no tapete existente entre a cama e roupeiro (do lado contrário àquele onde, segundo o Tribunal “a quo”, a vítima se encontra) - fotos 12 e 13 - e na porta do roupeiro (porta mais distante da porta de entrada no quarto - fotos 16 e 17 ;
Z) A justificação apresentada para tal pelo Tribunal não nos parece plausível e é desmentida pelos factos apreciados globalmente, porque se a vítima se encontrava sentada do lado esquerdo da cama, atenta a sua cabeceira, e junto à janela, o disparo iria provocar “salpicar” de sangue nessa zona, por exemplo, nos cortinados ou no candeeiro de mesa de cabeceira, onde não foram encontrados vestígios ;
Z1) Os agentes de autoridade D ... e Q ... afirmaram no seu depoimento que foram os primeiros a chegar ao local, sendo que aquele refere que viu vestígios de sangue logo à entrada da porta e junto de um armário (cassete 3, lado B voltas 0000 a 2890) e este confirma que havia vestígios de sangue no roupeiro (veja-se cassete 3, lado B, voltas 2891 a 4341) ;
Z2) Tendo estes agentes chegado ao local antes da remoção do corpo, tais vestígios só podiam existir nesse local por a vítima aí ter sido atingida, sendo inaceitável que o Tribunal “a quo” considere que a vítima foi atingida num local onde não existem vestígios de sangue, em cortinados, chão, candeeiros, e não no local onde tais vestígios são visíveis, roupeiro e chão junto à porta de entrada ;
Z3) A decisão recorrida não podia dar como provado, como deu, a intenção de matar, como não podia dar como provado, nas condições em que o deu, a posição do Recorrente no momento do disparo e muito menos que o recorrente ficcionara a limpeza da arma, dado não haver provas que coloquem em causa o referido pelo Recorrente, tanto mais que uma arma depois de disparada perde qualquer óleo que tivesse por evaporação e fica um forte cheiro a pólvora ;
Z4) Deu o Tribunal como provado que o arguido discutia e agredia a vítima, para o que se louvou no depoimento da sogra do Recorrente e em familiares da vítima (primos), que se reportam a factos que teriam acontecido há 12/13 anos atrás, sendo que a prova existente nos autos não permite concluir que o arguido agredisse a vítima fisicamente ou que a ameaçasse de morte ;
Z5) A ser assim, não se entende como o Recorrente imediatamente antes do disparo não tenha agredido na rua (exterior do prédio) a sua esposa, limitando-se a pegar-lhe num braço, trazendo-a de volta a casa, dado que nenhuma das testemunhas que assistiram à cena no exterior do prédio viram qualquer agressão (veja-se os depoimentos de V ..., B ... e U ...) ;
Z6) Pelo contrário, a testemunha H …, familiar da vítima e visita do casal - o que não acontecia com as demais testemunhas de acusação - referiu que o Recorrente sempre se comportou como um “gentleman” e que era muito prestável para esta testemunha (vd cassete 5, lado A, voltas 1913 a 2430) ;
Z7) Mas não deu como provado qualquer facto relativo à personalidade do Recorrente seja na sua vida profissional, seja com os amigos e familiares, quando sobre tal matéria existem múltiplos depoimentos, como o do seu superior hierárquico AB...(cassete 5, lado B), voltas 4479 a 4904), do amigo L ..., do tio S …, da irmã P … ;
Z8) Não demonstram os autos matéria suficiente para punir o Recorrente em sede de agravação, mormente por reporte à al. h) do nº 2 do artº 132º do CP ;
Z9) O Tribunal considerou que o homicídio fora cometido por “outro meio insidioso”, tendo entendido que a utilização da arma pela forma descrita foi “insidiosa”, quando a norma se reporta a meios que astuciosa ou dissimuladamente venham a atentar contra a vida humana, o que exclui a utilização de armas ;
Z10) Como refere o Prof. Figueiredo Dias no seu comentário ao artº 132º do CP… ;
Z11) Portanto, inexistindo agravação e face à matéria que consideramos provada o Recorrente deveria ser sancionado pelo crime de homicídio por negligência p.p. no artº 137º nº 2 ou maxime - o que só por mero dever de patrocínio se admite - pelo homicídio p.p. pelo artº 131º do CP ;
Z12) Mesmo fazendo vencimento a tese da acusação acolhida pela sentença recorrida - o que só por dever de ofício se admite - consideramos que a dosimetria da pena não teve em conta os parâmetros fixados no artº 71º nºs 1 e 2 do CP ;
Z13) As circunstâncias do cometimento do crime e a personalidade do agente impunham uma pena distinta ;
Z14) É que, provando-se, como se defende, a personalidade do Recorrente e a sua forma de relacionamento com terceiros, no trabalho ou fora dele, bem assim o modo como ele falava da esposa a terceiros, bem como sendo aquele primário, estando inserido socialmente, seja em termos familiares, seja em termos de mercado de trabalho e tendo-se arrependido, como resulta do seu depoimento e das suas declarações finais, entende-se que a medida da pena deveria ficar abaixo do meio entre os seus limites mínimo e máximo ;
Z15) Quanto ao montante fixado em sede de condenação em pedido cível, entendemos os mesmos como exagerados e sem sustentação face à matéria de facto provada ;
Z16) Quanto aos € 25.000,00 atribuídos pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima são exagerados, pois esta esteve sempre em coma e esteve hospitalizada durante 4 dias, não se demonstra que tenha havido sofrimento e sabendo-se que o estado comatoso é um estado vegetativo em que a vítima não tem consciência, pelo que julgamos adequada a verba de € 10.000,00 ;
Z17) Quanto à verba de € 100.000,00 fixada para a lesão do direito à vida consideramo-la muito elevada, tanto mais que o Sr. Provedor de Justiça definiu um valor orientador para a lesão do direito à vida relativamente às vitimas do acidente de Entre-os-Rios em € 50.000,00, valor esse aceite pelo Estado Português ;
Z18) Ora, a lesão de tal direito nada tem a ver com a idade ou com as condições económicas da vítima, dado que esses factos poderão ser importantes sim para a determinação dos danos sofridos pelos familiares, não pela própria vítima, sendo que a atribuição de um valor na ordem dos € 50.000,00 seria o adequado como compensação pela lesão do direito à vida e de que a demandante cível é beneficiária ;
Z19) Quanto à quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante cível, os factos provados não são de molde a justificar a fixação de tão elevado montante, pois apenas se provou que a assistente “teve grande desgosto com a morte da mãe, agravado pelo facto de ter presenciado o sofrimento desta a seguir a ter sido alvejada e durante os dias de internamento que antecederam a sua morte” e que era muito amiga da mãe, que a acompanhava nos estudos, nas idas ao médico e às compras ;
Z20) Tais factos são, em nossa opinião, insuficientes para justificar a fixação de tal montante que ficaria melhor ajustado à realidade demonstrada através da fixação de uma quantia não superior a 25.000,00 ;
Z21) Ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto nos artºs 71º nºs 1 e 2, 137º nº 2, 151º e 152º nº 2 h), todos do CP, bem como o artº 496º nº 3 do CC”.

1.2- Pugnando pela manutenção do decidido, espondeu o MºPº, concluindo :

“- O douto acórdão recorrido não padece de vícios que determinem qualquer irregularidade ou nulidade ;
- O douto acórdão recorrido apreciou e valorou correctamente os elementos de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento ;
- Fundamentou e fixou correctamente a matéria de facto dada como provada ;
- Tal matéria mostra-se suficiente e concordante com a aplicação das normas jurídicas incriminatórias seleccionadas - artºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. h) do CP (homicídio qualificado) ;
- A concreta pena imposta mostra-se justa e adequada aos factos, à medida da culpa do arguido e às circunstâncias, processuais e pessoais, fixadas no mesmo acórdão ;
- A decisão recorrida não violou, pois, qualquer norma legal ou constitucional”.

1.3- Também pugnando pela manutenção do decidido, responderam as Assistentes (?!), concluindo :

“- O acórdão recorrido não merece qualquer censura uma vez que se encontra muitíssimo bem fundamentado já que justifica, tanto de facto como de direito os motivos e o processo lógico-formal usado para formar a sua livre convicção de acordo com as regras da experiência comum ;
- Tendo para o efeito apreciado e valorado a prova produzida na audiência de discussão e julgamento, expondo claramente as razões que basearam a convicção do tribunal para condenar o arguido, ora recorrente ;
- Foram aplicadas correctamente as normas jurídicas respectivas - artºs 131º e nºs 1 e 2 al, h) do artº 132º do CP - com base na matéria dada como provada ;
- A pena concretamente aplicada ao arguido é justa e adequada aos factos, às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, à personalidade do arguido, ao facto de este não ter mostrado qualquer arrependimento e ao seu elevadíssimo grau de culpa, não esquecendo as exigências quer de prevenção especial, quer geral decorrentes do extremo desvalor ético-jurídico dos factos praticados ;
- O aliás douto acórdão recorrido não enferma de quaisquer vícios, nem violou qualquer disposição ou normativo quer legal, quer constitucional”.

1.4- Já neste Tribunal da Relação de Lisboa a Il.Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos.
Foram depois colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à audiência com observância das formalidades legais.
Cumpre agora decidir.

Fundamentação

2- Das conclusões do recurso interposto, consabidamente balizadoras do seu objecto, como é doutrina e jurisprudência assente (1), resulta que o arguido, ora Recorrente, pretende pôr em causa - ainda que de uma forma algo imprecisa, presente que é o disposto no artº 412º nº 3 do CPP - quer parte da matéria de facto, que considera “incorrectamente julgada por ser insuficiente a factualidade que conduziu a tal decisão” e por existir ainda “erro notório na apreciação da prova”, quer a matéria de direito, esta diversificada agora quer em sede do “meio insidioso” qualificador do homicídio, defendendo antes dever este ser considerado “por negligência p.p. no artº 137º nº 2 ou, maxime… pelo homicídio p.p. pelo artº 131º ambos do CP”, quer no que à “dosimetria da pena” respeita também, pugnando que “deveria ficar abaixo do meio entre os seus limites mínimo e máximo”.
Relativamente à condenação indemnizatória, “por exagerado” o montante fixado, defende como ajustada “uma quantia não superior a 25.000,00” €.

Vejamos pois das suas razões, desde já se deixando consignados quer os factos julgados provados e não provados, a sua fundamentação, a tipificação feita, a determinação da medida da pena e da quantificação do pedido indemnizatório.

a) Os factos provados

1- “O arguido F … e AA ... casaram um com o outro no dia 30/09/82, tendo nascido desse casamento, em 22/10/87, a ora assistente, A … , única filha da referida AA ....
2- F … e AA ... residiam, com a filha menor de ambos, a assistente A ..., na Avenida ….., ….
3- No dia 31 de Outubro de 2003, pelas 20h00, no interior daquele apartamento, F … e AA ..., iniciaram uma discussão, relacionada com o facto de AA ... não ter confeccionado o jantar e com questões monetárias, nomeadamente por causa de uma escritura de partilhas de bens próprios do arguido.
4- No decurso desta discussão, AA ... pegou no telemóvel, tendo o arguido F … perguntado para quem é que ela estava a ligar, ao que AA ... respondeu que estava a chamar a polícia.
5- Acto continuo, F … desferiu uma bofetada na parte traseira do pescoço de AA ..., tendo esta deixado cair ao chão o telemóvel, através do qual tentava realizar a chamada.
6- De seguida, o arguido dirigiu-se à filha do casal, a ora assistente A ..., que se encontrava no seu quarto e, depois de lhe perguntar se ela estava a ligar a alguém do seu telemóvel, deu-lhe também uma bofetada.
7- Apercebendo-se, nessa altura, de que a porta da rua se tinha aberto, o arguido saiu do quarto da filha A ... e verificou que a sua mulher AA ... entretanto tinha fugido para a rua.
8- O arguido seguiu-a então para o exterior do prédio, onde continuaram a discutir, encontrando-se AA ... bastante enervada e onde o arguido a agarrou pelo braço, pressionando-a a regressar ao apartamento onde ambos residiam e para onde a conduziu.
9- Chegados a casa, F … trancou a porta da rua e AA ... dirigiu-se ao quarto de casal do referido apartamento, declarando que não queria discutir mais, tendo cessado a conversa entre ambos e fazendo-se silêncio.
10- No interior do quarto, AA ... começou a despir-se, como fazia habitualmente, sentada no lado esquerdo da cama ali existente, com a janela do quarto na sua frente, lado esquerdo e a porta nas suas costas, lado direito.
11- No momento em que AA ... despia os collants, sentada na cama na referida posição, o arguido entrou no quarto, onde a esposa se encontrava, sem que esta se tivesse apercebido da sua presença.
12- Empunhando a arma tipo revólver, Llama, calibre 32, com seis munições no tambor, de que é dono e que trazia consigo, o arguido visou AA ... na zona da cabeça e disparou um tiro na direcção desta, quando se encontrava situado do lado direito da cama e separado do seu alvo pela largura da referida cama.
13- O projéctil disparado por F … atingiu AA ... na região parietal direita, cerca de cinco centímetros acima da orelha direita, e seguiu um trajecto orientado da direita para a esquerda, de trás para a frente e de cima para baixo, ficando alojado no hemisfério cerebral esquerdo.
14- Ao ser atingida pelo projéctil, AA ..., tombou para cima da cama, de barriga para cima, na diagonal, com a cabeça sobre as almofadas que se encontravam junto à cabeceira direita da cama e com as pernas, da zona dos joelhos para baixo, a pender para o chão, do lado esquerdo da cama, junto da janela.
15- F … ao disparar o projéctil, quando AA ... se encontrava na mencionada posição (sentada de viés na cama com as costas do lado direito viradas para a porta), sabia que, desta forma, ela não se aperceberia da arma, do disparo e não poderia esquivar-se-lhe.
16- O arguido quis agir conforme o descrito, querendo atingir a região corporal da esposa que efectivamente atingiu, com a intenção de lhe tirar a vida e sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
17- Durante o disparo, a assistente, filha do casal, estava dentro do seu quarto, tendo ouvido um ruído e a voz do seu pai dizendo “o que é que eu fiz”, acorrendo então ao quarto dos pais.
18- Ao acorrer ao quarto dos pais, a assistente A ... deparou com a mãe na referida posição, deitada na diagonal, com a cabeça junto à cabeceira do lado direito da cama e as pernas, dos joelhos para baixo, pendendo do lado esquerdo, vestida de cuecas e soutien, com os collants pelos joelhos, a gemer e a espumar pela boca.
19- O arguido então apontou a arma à sua própria cabeça, dizendo à filha que ia disparar, tendo-lhe esta dito para não o fazer.
20- Seguidamente o arguido colocou a arma em cima do roupeiro, onde a mesma veio a ser encontrada.
21- A assistente pretendeu cobrir a mãe, o que fez, colocando-lhe um roupão por cima.
22- Enquanto isso, o arguido dirigiu-se ao escritório, retirou da estante um saco de plástico que continha no seu interior uma lata de spray de limpeza “LPS 1 Desporto” e um escovilhão de limpeza, adequados à limpeza de armas de fogo e colocou o saco aberto e o respectivo conteúdo em cima do sofá que se encontrava no interior do escritório, com o propósito de fazer crer que tinha estado a proceder à limpeza da arma.
23- Em consequência directa e necessária desta actuação de F ..., resultaram para AA ... as lesões descritas no relatório da autópsia de fls 118 a 122, que se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente:
- Hematoma do couro cabeludo e aponevrose epicraniana das regiões frontal, parietal e temporal direitas e do músculo temporal direito.
- Fracturas de crânio: orificial, de contorno oval, no parietal direito, em relação com a ferida perfuro-contudente, de entrada de projéctil de arma de fogo de contorno circular, com 0,6 cm de diâmetro, rodeada de orla de contusão excêntrica nos quadrantes posteriores, de cerca de 0,6 x 1,2 cm, localizada na região parietal direita; lineares, na escama do temporal direito, fossa temporal direita, grande asa direita do esfenóide e tecto da órbita direita.
- Laceração do encéfalo em forma de canal entre o lobo parietal direito e o pólo do lobo frontal esquerdo, segundo um trajecto orientado da direita para a esquerda, de trás para diante e de cima para baixo.
- Focos de contusão nos lobos frontais, temporais e parietal direito.
- Hematoma do tronco cerebral.
- Hematoma subdural na metade direita.
- Hemorragia leptomeníngea na convexidade e na base e intraventricular cerebral.
24- As lesões provocadas por F ..., com o comportamento acima descrito, foram causa directa e necessária da morte de AA ..., ocorrida em 4/11/03.
25- Antes de falecer, a vítima esteve hospitalizada quatro dias, em coma, vindo a falecer em consequência do estado debilitado em que se encontrava.
26- O projéctil resultante do disparo era de chumbo e fragmentou-se dentro do corpo da vítima, tendo o projéctil e o fragmento ficado extremamente destruídos, com a zona de estriado deformada e sem vestígios que permitissem uma individualização e comparação.
27- A falecida era licenciada num curso de línguas e trabalhava na …..
28- A falecida AA ... deixou uma filha, a assistente A ..., de quem era muito amiga e a quem costumava acompanhar, quer nos estudos, quer nos médicos, quer nas compras.
29- A assistente A ... teve grande desgosto com a morte da mãe, agravado pelo facto de ter presenciado o sofrimento desta logo a seguir a ter sido alvejada e durante os dias de internamento que antecederam a sua morte.
30- Por morte da sua mãe, a assistente passou a auferir uma pensão de sobrevivência da Caixa Geral de Aposentações no total mensal ilíquido de 455,82 euros, que receberá até completar 18 anos ou, caso na altura frequente o ensino médio, até aos 21 anos, ou então, caso frequente o ensino superior até aos 24 anos.
31- Desde a morte da mãe que a assistente vive com familiares maternos no estrangeiro, tendo-se verificado um afastamento da sua parte em relação à família do pai.
32- Ao longo do seu casamento, o arguido discutia frequentemente com a esposa e, durante essas discussões, por vezes agredia-a fisicamente, ameaçando-a ultimamente de que a matava, sempre que ela mencionava que se queria divorciar, o que acontecia em frente da filha do casal, a ora assistente.
33- Por vezes o arguido também acompanhava a assistente sua filha nas idas ao médico, na aquisição dos bens de que esta necessitava e no apoio aos seus estudos.
34- O arguido sabe utilizar armas de fogo, tendo prática em manuseá-las.
35- O arguido trabalhou para o … desde 1980 até 1/07/03, data em que se reformou, aí desempenhando as funções de técnico de segurança.
36- O arguido não tem antecedentes criminais, tendo pendente um processo por homicídio por negligência.
37- No estabelecimento prisional onde se encontra, o arguido tem tido um comportamento dentro das regras regulamentares” (2).

b) Os factos não provados

“Não se provaram os seguintes factos:
1- que a falecida AA ... tentou utilizar o telefone fixo antes do telemóvel:
2- que a assistente A ... apanhou do chão o telemóvel ainda antes de a mãe sair de casa, tentando consertá-lo;
3- que o arguido não bateu na sua esposa;
4- que, como acontecia sempre que o casal discutia, a filha ficou com a porta do seu quarto fechada enquanto estava lá dentro, nada tendo visto do que se passava no corredor;
5- que, ao sair de casa atrás da esposa, o arguido pretendia acalmá-la por ela ter saído de casa sem casaco nem carteira;
6- que apesar da discussão, o arguido se encontrava bastante enervado;
7- que, depois de terem regressado a casa, o arguido se dirigiu à cozinha para jantar, tendo comido um hambúrguer que estava no micro-ondas;
8- que, enquanto isso, a esposa andava pela casa em arrumações;
9- que cerca de 15/20 minutos depois, findo o jantar, e terminada há muito a discussão anteriormente referida, o arguido se dirigiu à divisão da casa onde fica o escritório, a fim de ir limpar a arma, como sempre fazia há muitos anos;
10- que para o efeito foi buscar os materiais necessários à limpeza e que se encontravam dentro de um saco de plástico, tendo-se sentado no sofá existente nessa divisão para efectuar tal trabalho;
11- que terminado o trabalho de limpeza, o arguido se levantou, como sempre fazia, com a arma na sua mão direita, e, sem que o soubesse, com uma bala no tambor, que não retirara aquando da limpeza da arma;
12- que nesse instante, a sua esposa o chamou, tendo ele, que estava junto à ombreira da porta do escritório e de costas para a esposa, se voltado para ver o que a mesma pretendia;
13- que nesse movimento de rotação e sem que o previsse ou pretendesse, a arma que se encontrava na sua mão direita disparou-se, indo o projéctil atingir a falecida que se encontrava junto, à ombreira da porta do quarto de casal e em movimento de entrada para o mesmo, vinda da sala ou da cozinha;
14- que a falecida ao ser atingida, na cabeça, tombou para o interior do quarto, caindo junto à cama, do lado direito, atenta a sua cabeceira, ou seja, entre o roupeiro e a cama, no interior do quarto do casal;
15- que entre o ponto de disparo (ombreira da porta do escritório) e a posição da falecida junto à ombreira da porta do quarto de casal mediavam cerca de 1,80/2,00 m;
16- que o arguido não tinha a intenção de matar a esposa;
17- que, ao verificar a situação e imediatamente após o disparo, o arguido entrou em pânico, dirigindo-se de imediato para junto da esposa, caída no chão;
18- que depois do disparo o arguido colocou a sua esposa em cima da cama com a ajuda da filha;
19- que o arguido, devido aos nervos em que se encontrava, nem sequer conseguia telefonar para o 112, sendo a filha a fazê-lo;
20- que foi a assistente que sugeriu ao pai que vestissem a mãe;
21- que foi o arguido que disse à assistente para vestir a mãe;
22- que, ao colocar a arma em cima do roupeiro, o arguido o fez instintivamente, por ser aí que durante anos a guardara para evitar que a sua filha, menor, a ela pudesse ter acesso;
23- que o tiro só aconteceu por descuido do arguido, devido a anos de execução desta tarefa sempre nas mesmas condições;
24- que o arguido não simulou estar a limpar a arma após o disparo;
25- que o disparo não foi efectuado à distância correspondente à largura da cama;
26- que o percurso da bala na cabeça da vítima não foi de cima para baixo;
27- que o arguido sempre foi tido por pessoa calma, apaziguadora, granjeando sempre a maior simpatia, quer no …, junto de colegas superiores e hierárquicos, quer na sua vida fora do trabalho, sempre pronto a ajudar os outros;
28- que o arguido era conhecido na sua actividade profissional na área da segurança bancária e que nada tinha a ver com armas, mas sim com sistemas electrónicos de alarme e anti-intrusão, pelo rigor que colocava nos projectos que executava, confiando os superiores nele totalmente;
29- que o arguido nunca se meteu em rixas, sendo que a arma, da qual possuía há muitos anos licença de uso e porte, era fundamental para a sua actividade no …, na área da segurança;
30- que o arguido é católico e, tal como sua falecida esposa muito devoto;
31- que o arguido adorava a esposa e nunca a ameaçou para ela não se divorciar;
32- que junto dos amigos, o arguido se referia à esposa com muito carinho e que os dois viviam um para o outro;
33- que o arguido uma vez apontou a arma à cabeça do irmão;
34- que o arguido apenas dispunha de uma única arma e que nunca frequentou carreiras de tiro;
35- que desde os factos a assistente não mais falou ao pai, nem dele pretende saber, salvo quando procurou obter a autorização para ir para o estrangeiro com a família da mãe;
36- que a assistente recusou entregar ao pai as chaves da casa, bem como cartões, bilhete de identidade, tendo levado tudo com ela, dificultando-lhe a burocracia consequente ao falecimento da mãe e obrigando-o a ter que ordenar o arrombamento da sua casa e que só após muita insistência entregou documentos e correspondência de seu pai, que fora retirada a seu mando da caixa do correio;
37- que a assistente sempre adorou seu pai;
38- que o arguido sempre procurou que a filha convivesse com os primos e primas, filhos dos seus irmãos;
39- que o arguido tem condições para continuar a suportar os estudos da filha” (3).

c) Da fundamentação

“O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida.
Assim, o arguido admitiu parcialmente os factos, admitindo ter discutido com a esposa e ter sido da arma que empunhava na sua mão que saiu o disparo que a vitimou.
Negou, porém, o arguido que esse disparo tivesse sido intencional, declarando que o mesmo resultou de um acidente, quando se encontrava a limpar a arma e foi chamado pela esposa, tendo acorrido à porta do escritório, onde se encontrava, com a arma na mão e disparando-se esta sem querer, atingindo a vítima quando esta estava em pé à porta do seu quarto.
Contudo, esta versão apresentada pelo arguido não é verosímil e contraria a restante prova produzida.
Desde logo, não se compreende como é que alguém tão experiente em armas (quer o arguido quer a assistente sua filha declararam que o arguido tinha a arma há muitos anos) procedeu à limpeza da arma carregada e tivesse prontamente acorrido de arma na mão ao chamamento da esposa (com quem havia acabado de discutir), nem se compreende que a vítima andasse pela casa em roupa interior, com a qual veio a ser alvejada, nem se compreende também como é que a arma disparou sem o arguido querer, quando o exame à arma de fls 138 e sgts (fls 145) demonstra que esta estava em boas condições de funcionamento, sendo necessário, para disparar, a efectiva pressão do gatilho.
Por seu lado, no relatório da autópsia de fls 118 e sgts foi concluído que o projéctil que atingiu a vítima fez um percurso de cima para baixo, de trás para diante e da direita para a esquerda.
Esta apreciação em nada foi rebatida pela restante prova, nomeadamente pelo facto de se ter provado que o projéctil se fragmentou e ficou destruído, nem pelo depoimento das duas testemunhas peritos do LPC, T ... e E ....
Na verdade, destes depoimentos, nomeadamente do depoimento da testemunha E ... resultou que, embora seja difícil para um perito de balística definir trajectória do projéctil quando este se fragmenta dentro do corpo da vítima e não há orifício de saída, essa definição é perfeitamente possível a um médico, que o faz com base nas lesões verificadas (como foi o caso destes autos).
Esta trajectória do projéctil é compatível com a restante prova, nomeadamente com a posição em que a vítima ficou após o disparo (deitada na cama de barriga para cima na diagonal, com a cabeça do lado direito da cabeceira, que é o lado da porta e as pernas pendendo pelos joelhos do lado esquerdo da cama, que é o lado oposto da porta), tudo levando a crer que, de facto, a vítima, quando foi alvejada, se encontrava sentada na cama, do lado esquerdo, oposto à porta do quarto, com as costas do lado direito viradas par esta, tendo assim o projéctil entrado de cima para baixo, da direita para a esquerda e de trás para diante, posição em que se encontrava por estar a despir- -se, na altura já só vestida com cuecas, soutien e os collants pelos joelhos.
O vestuário da vítima foi confirmado pelo próprio arguido e pela assistente, tendo ainda a testemunha Q ..., um dos agentes da PSP que acorreram ao local, confirmado que a mesma tinha os collants pelos joelhos.
Ora esta posição da vítima, bem como o facto de ter os collants pelos joelhos só pode significar que ela se encontrava a despir, sentada, na já mencionada posição.
Na verdade, é totalmente inverosímil a explicação dada pelo arguido de que a primeira peça de roupa que tentou vestir à esposa depois de esta ter sido alvejada foram os collants (!), por esta ter vergonha de mostrar as pernas, não sendo também convincente a versão de que puxou o corpo, que estava caído do lado direito da cama, para cima desta, ficando, porém o mesmo com as pernas pendentes para o lado oposto.
Também o facto de haver vestígios de sangue no roupeiro situado no lado direito da cama e chão desse lado direito não invalida esta conclusão, uma vez que se vê das fotografias dos autos que o quarto tinha pequenas dimensões e, tendo a vítima caído com a cabeça para o lado direito da cama, é natural que tivesse salpicado sangue para esse lado; porém, as testemunhas Q ... e D ... foram bem claros ao declarar que, tendo estado no quarto antes da equipa de reanimação do INEM, não detectaram qualquer vestígio de sangue à entrada do quarto, local onde, na versão do arguido, a vítima teria sido alvejada e sendo certo que as fotografias de fls 50 e sgts foram tiradas já depois de ter sido removido o corpo e de, nessa manobra, se ter sujado mais de sangue o lado direito da cama.
Deste modo, é absolutamente impossível que a vítima pudesse ter sido alvejada de cima para baixo na posição apresentada pelo arguido, ou seja, de pé, sendo certo, por outro lado, que, do depoimento da testemunha E ..., perito do LPC, resulta que o coice eventualmente causado pelo disparo só ocorre depois deste e não altera a trajectória da bala, não podendo ter sido isso que levou o projéctil a atingir a vítima por acidente.
Também o resultado do exame aos resíduos de disparos extraídos das mãos e punhos do arguido, que consta a fls 181 e 182, que encontrou partículas no punho esquerdo (sendo que, conforme declarações do arguido a arma se encontrava na sua mão direita) parece indiciar que o arguido não teria as mãos descontraidamente separadas, mas sim juntas no momento do disparo.
Igualmente, a referida testemunha Q ..., agente da PSP, declarou que a arma por si recolhida de cima do roupeiro não indiciava ter sido limpa há pouco tempo.
A tudo isto acresce as declarações da assistente, filha do casal, que, pela sua sinceridade, convenceram o Tribunal.
Segundo estas declarações, a assistente, tendo estado sempre dentro do seu quarto (com excepção do período em que os pais saíram à rua), manteve a porta do mesmo entreaberta, apercebendo-se do que acontecia no corredor, tendo-se, por isso, apercebido da fase inicial da discussão, da cena do telemóvel caído ao chão no corredor e da estalada que aí o arguido deu à sua mãe; posteriormente, não tendo assistido ao disparo, por este ter ocorrido dentro do quarto do casal, apercebeu-se, porém, de que, na altura do mesmo o corredor estava vazio, pelo que o disparo não pode ter ocorrido da forma descrita pelo arguido.
A credibilidade destas declarações não foram abaladas pelas testemunhas, agentes da PSP, Q ... e D ..., que mencionaram ter a assistente na altura declarado que “estava fechada no seu quarto”, uma vez que foi explicado pela assistente que, após o disparo e antes de chegarem os agentes de autoridade, o arguido lhe pediu para ela ser “boazinha” para ele, pressionando-a a não contar o que sabia, tendo ido espalhar o material de limpeza da arma em cima do sofá do escritório para sustentar a sua versão de acidente (sendo assim compreensível esta primeira versão de uma adolescente em estado de choque pelo que estava a viver).
As declarações da assistente, foram também relevantes para descrever o tipo de relação existente entre os seus pais e o ambiente vivido em casa.
Também as lesões descritas no relatório da autópsia a fls 120, relativas a equimoses apresentadas pela vítima, nomeadamente as dedadas na face interna dos braços e terço superior da face anterior dos antebraços demonstram que o arguido terá utilizado de violência na discussão que antecedeu o disparo.
Atendeu-se ainda, para além dos já referidos depoimentos dos agentes da PSP Q ... e D ... e dos peritos do LPC E ... e T ..., aos depoimentos das testemunhas C ..., U ..., B ... e V ..., que viram o casal desavindo na rua, aos depoimentos das testemunhas X …, com quem a assistente está a residir, H …, Z ..., K …, primos da falecida, que depuseram sobre o modo de vida da falecida e das relações entre esta e a filha e o marido e dos depoimentos das testemunhas W ..., J ..., M ..., N ..., O ..., Y …, amigos do arguido, bem como das testemunhas S …, G … e P …, respectivamente tio, primo e irmã do arguido, que depuseram sobre as condições de vida do arguido, não demonstrando um conhecimento muito profundo das relações existentes entre o casal.
Mais se atendeu aos assentos de nascimento de fls 98 e de fls 293, do relatório de autópsia de fls 118 e sgts, ao exame à arma, munições objectos de fls 138 e sgts, ao croquis de fls 144, ao exame do projéctil de fls 186 e sgts, ao exame de partículas de fls 181 e sgts, à ficha clínica de fls 109 e sgts, às várias fotografias juntas aos autos, nomeadamente a reportagem fotográfica de fls 41 e sgts e às fotografias juntas com a contestação do arguido, aos documentos do … de fls 96 e 97, ao documento da Caixa Geral de Aposentações de fls 461, á declaração do EP de fls 428 e ao CRC de fls 288”.

d) Da tipificação

Entendeu agora o Tribunal que o arguido agiu com intenção de “tirar a vida à sua esposa, o que fez, utilizando para o efeito um meio que era idóneo a produzir tal resultado.
Cometeu assim o arguido um crime de homicídio previsto no artigo 131 do C.Penal.
Ao fazê-lo, o arguido utilizou uma arma de fogo, alvejando a esposa quando esta estava quase de costas para si, numa posição em que não o via e já depois de a discussão entre ambos ter terminado.
O instrumento empregue (uma arma de fogo) constitui apenas um instrumento adequado a causar a morte, mas não é particularmente perigoso; já a forma como foi utilizado (quando a discussão entre o arguido e a vítima já havia terminado e quando esta estava quase de costas, sem se aperceber da aproximação do arguido), é insidiosa por não ter permitido qualquer hipótese de fuga ou defesa, revelando, por essa razão, especial censurabilidade.
O crime mostra-se assim qualificado, nos termos do artigo 132 nº 1 do C.Penal, não pela alínea g) do seu nº 1, como vem na acusação, mas sim pela alínea h) do referido nº 1, nada obstando à diferente qualificação jurídica, uma vez que foi cumprido o disposto no artigo 358 do C.P.Penal.
Embora se pudesse considerar que se verifica também a circunstância agravante prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132 (pela frieza de ânimo revelada pelo arguido, ao cometer os factos depois de a discussão ter terminado e com a calma que lhe permitiu acercar-se sem que fosse detectado), tal circunstância será apenas considerada na determinação da medida da pena, uma vez que o homicídio é qualificado por circunstância diversa.
Cometeu portanto o arguido um crime de homicídio qualificado previsto nos artigos 131 e 132 nº1 e nº2 h) do C.Penal”.

e) Da medida da pena

No que à medida da pena respeita, consignou-se que, “nos termos do artigo 71 do C.Penal, na fixação da medida concreta da pena, atender-se-á ao dolo directo, assumindo considerável intensidade e frieza de ânimo (com o arguido aproveitando a calma resultante do fim da discussão e a descontracção da vítima quando esta se estava a despir, para calcular a forma de se aproximar e concretizar os seus intentos), ao modo de execução, ao motivo pouco relevante da discussão, ao facto de não se ter coibido com a presença da filha do casal no quarto ao lado e à extensão do mal causado ao privar a filha da convivência da mãe e ao forçá-la a assistir à sua agonia, à encenação montada depois do disparo para simulação de um acidente (também ela reveladora de frieza de ânimo), aos antecedentes do arguido de agressão da esposa, à total falta de arrependimento, (demonstrada quer numa atitude de auto vitimização, quer no tom exasperado com que se referia à falecida esposa, camuflado com uma mágoa não sincera), aos factos da sua vida pessoal e inexistência de antecedentes criminais”.

f) Do pedido indemnizatório

Nesta matéria, concluindo o Tribunal pelo preenchimento de “todos os requisitos da responsabilidade civil previstos no artigo 483 do CC”, atendeu aos “danos causados, a perda do direito à vida da vítima e os danos não patrimoniais por esta sofridos durante o tempo que mediou entre o disparo e a morte (tendo a vítima estado consciente nos primeiros momentos e em coma durante quatro dias e sendo estes danos não patrimoniais indemnizáveis ao abrigo do artigo 496 nº1 do CC)”, concluindo deverem “ser ressarcidos pelo arguido à única herdeira da falecida sem ser o próprio arguido, ou seja, a filha da vítima, a assistente A ..., tudo nos termos dos artigos 2024 e 2133 nº1 a) do CC.
Face à idade da vítima, trabalho desenvolvido por esta e seu papel na vida familiar e face ao seu sofrimento, entende-se serem adequadas as verbas reclamadas de 100 000,00 euros e de 25 000,00 euros, respectivamente pela perda de direito à vida e pelos seus danos não patrimoniais.
Por seu lado, a demandante tem direito a indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos, nos termos do artigo 496 nº2 do CC, em cujo montante se terá de atender ao carácter violento e inesperado da morte da sua mãe, ao facto de essa morte ter sido causada pelo seu pai e de a demandante ter assistido aos momentos que se seguiram ao disparo, à ligação afectiva que existia entre ambas e à idade da demandante em que, naturalmente, ainda necessitava do apoio materno.
Todas estas circunstâncias levam a considerar também adequada a quantia de 50 000,00 euros pedida a título de danos não patrimoniais da demandante.
Finalmente, reclama também a demandante a quantia de 200 000,00 euros a título de danos patrimoniais, por aquilo que deixou de receber da falecida até aos seus 21 anos deidade.
Contudo, para além de não ter alegado e provado qual o montante que receberia da sua mãe em termos de alimentos, que leva ao cômputo do valor reclamado, ficou também provado que, por morte da mãe, a demandante passou a receber uma pensão mensal de 455,82 euros da Caixa Geral de Aposentações, quantia esta que receberá até aos 18 ou até aos 21 ou 24 anos, caso venha a frequentar, respectivamente, o ensino médio ou superior.
Sendo assim, não tendo provado que até aos 21 anos receberia da falecida quantia superior à pensão que presentemente aufere, conclui-se que não estão reunidos os requisitos do artigo 562 do CC, não sendo devida esta verba.
Deverá, portanto, ser fixada em 175 000,00 euros a indemnização total a pagar pelo arguido à demandante (100 000,00, 25 000,00 e 50 000,00 euros)”.

2.1- O recurso sobre a matéria de facto

Não primando pelo, sempre necessário, rigor, como se deixou referido, pretende o arguido, ainda que de uma forma algo vaga e, por isso mesmo, imprecisa, pôr aqui em causa parte da matéria de facto julgada provada - referenciando a constante em 2- a) 10- a 16-, 18-, 22-, 26- e 32- - por “incorrectamente julgados”, aqui fundamentado na “análise dos documentos fotográficos juntos aos autos, relatório de autópsia e prova testemunhal”, esta traduzida nos depoimentos de B ..., C ..., D ..., Q ..., E …, G …, H …, I ..., J ..., L ..., M ..., N ..., O ... e P …, concluindo impor-se dever ser julgada provada a acima também referenciada em 2- b) 4-, 9- a 14-, 16, 18-, 23-, 24-, 26, 27-, 28-, 31- e 32-.
Simultaneamente, parece invocar também os vícios da insuficiência e do “notório erro”, concluindo, de novo de forma vaga e insuficientemente concretizada, pela “renovação da prova”.
Vejamos pois de uns e outros, sendo certo que, como é jurisprudência fixada, sempre destes vícios referidos poderia este Tribunal conhecer oficiosamente (4).

1- As testemunhas B ... (fls 640 e sgs) e C ... (fls 660 e sgs) residem no prédio do arguido e apenas depuseram sobre factos ocorridos em momento anterior ao disparo, mais concretamente quando, na sequência da discussão refer. em 2- a) 3- a 6-, a AA ... e o arguido saíram do seu apartamento, sito no r/c, encontrando-se ambas as testemunhas no “hall” de entrada do prédio.
Viram então a AA ... sair à frente, “a correr”, chorava e pareceu-lhes “enervada”, indo o arguido atrás, “muito calmo”.
A testemunha C … apercebeu-se que o arguido tinha os “olhos arregalados e vermelhos”.
Ambos saíram do prédio, ouviram-nos discutir na rua dizendo o arguido para a vítima : “AA ..., não faças nada de que te venhas a arrepender”.
Isto apesar da porta da rua, que é automática, se encontrar fechada.
Após alguns minutos, entraram no prédio, o arguido tentou colocar o braço sobre a vítima mas esta, “sacudiu”. Quando entravam no seu apartamento ouviu ainda o arguido dizer : “Anda AA ... que estás perturbada”.
Ou seja, os factos parcialmente referidos em 2- a) 7- e 8-.
- As testemunhas D ... (fls 670 e sgs) e Q ... (fls 688 e sgs) são agentes da PSP que, à data dos factos, se encontravam em serviço de patrulha, tendo-lhes sido solicitado, via rádio, para se deslocarem à residência do arguido.
Uma vez ali, um e outro descreveram o que recordavam ter visto, em especial a posição do corpo da vítima, “do lado esquerdo da cama com as pernas pendidas para o chão e a cabeça mais ou menos a meio das duas almofadas”.
O agente D … não viu sangue junto à porta do quarto do então casal e referiu também que a A ... lhe disse “eu fechei-me no quarto”. Algo curiosamente e bem demonstrativo até do sentido diversificado em que pode ser utilizado o verbo “fechar”, logo a seguir, à pergunta se “o quarto era pequenino” respondeu : “Era. Pelo menos com os móveis que lá estavam era um bocado fechado”…
Donde, cremos nós, dizer-se que se está fechada no quarto não significará obrigatória e necessariamente fechado à chave - como parece entender o Recorrente - sendo certo até que estamos a falar de um pequeno apartamento, com dois quartos, sala e cozinha, como facilmente se constatará da “reportagem fotográfica” de fls 41 e sgs, bem como de fls 144 dos autos.
O agente Q ...viu o revólver “por cima do armário do roupeiro…logo à entrada do quarto”. Para preservar os vestígios meteu-o num saco plástico, não sem que se tivesse apercebido que o mesmo aparecia com “ferrugem e - adiantou - penso que também com vestígios de sangue. Salpicos de sangue”. Logo depois respondeu que tal arma “não estava oleada nem cheirava a isso”.
- A testemunha E … (fls 742 e sgs), de defesa do arguido, é perito em balística na PJ.
Testemunhou no sentido de que “não é possível indicar uma trajectória exacta” da bala que, por ser de chumbo, se fragmentou em dois pedaços. Adiantou também que, em termos de probabilidade só o perito médico poderá fazê-lo.
- A testemunha G … (fls 753), oficial do exército, também oferecida pelo arguido e de quem é “primo direito”, depôs de acordo com a sua “experiência profissional”. Declarou que uma arma, após o disparo, cheira a pólvora e não a óleo, sendo certo que relativamente a um revólver .32, declarou poder este cheirar ou não a óleo (??!!...).
Também opinou que, ocorrendo fragmentação da bala “nunca” se pode definir a trajectória do projéctil já que, adiantou, “não se sabe qual é o verdadeiro projéctil”, se o que se dividiu, se o principal (?!...).
Para além de algo vago, nesta matéria, o seu depoimento, atentar-se-á que, de acordo com o exame de fls 186 dos autos se poderá concluir que falamos aqui de um “projéctil…com o peso aproximado de 4,58 g” e de “um fragmento de projéctil…com peso aproximado de 0,92 g”... o que, com facilidade e sem margem para grandes dúvidas, cremos nós, com facilidade se distinguirá aquele como o principal.
- A testemunha I ... (fls 762), ainda oferecida pelo arguido, foi seu colega na área da segurança do …. Referiu que não era obrigatório os elementos da segurança terem arma e considerou o arguido um excelente técnico, incapaz “de dar um tiro nem num gato…”.
- A testemunha J ... (fls 773), também oferecida pelo arguido, foi seu colega no …, durante cerca de 16 anos. Ligado à área da construção e o arguido ao departamento de segurança, acompanhou-o em várias viagens de serviço pelo País. Referiu que o arguido, em situações de “stress”, “sempre reagiu friamente”…
As suas esposas foram sócias num estabelecimento de ferragens, sendo certo que desde há dois anos que se não relaciona com o arguido o qual, refere também, adorava a mulher e filha.
- A testemunha H … (fls 733), era “primo direito” da vítima, estando de “relações cortadas” com o arguido.
Declarou que nas suas relações com o arguido este se portou sempre como “um gentleman”.
- A testemunha L ... (fls 780), advogado, conhece o arguido há 4/5 anos do … . Considera-o pessoa extremamente correcta e bem educado, com bom relacionamento com a filha, ora assistente. Não conhecia a vítima e nunca foi visita de sua casa.
- A testemunha M ... (fls 785), empregado bancário, opinou que era boa a relação do arguido com a mulher e a filha, com quem fez algumas viagens de férias.
Desconhece quaisquer situações de violência entre o casal. Adiantou porém que “não quer dizer que não possa haver entre os casais”, o que acha até “perfeitamente normal”…
- A testemunha N ... (fls 791), amigo do arguido, foi uma ou duas vezes a casa do casal, parecendo-lhe uma relação “normal”.
- A testemunha O ... (fls 798), apenas estava com o casal em …, durante as férias de Verão, sabendo que a família do arguido era ali conceituada.
- Finalmente, a testemunha P … (fls 799), é irmã do arguido e madrinha da assistente A .... Apenas depôs em matéria relativa ao pedido cível, dizendo que a assistente apenas contactou o pai na prisão duas vezes, por razões relacionadas com a autorização necessária para a sua deslocação aos EUA.

2- A “Reportagem Fotográfica” junta aos autos a fls 41 e sgs, foi levada a cabo pela PJ quando chamada ao local no dia dos factos, onde se encontravam então já as testemunhas D … e Q … da PSP, tendo a vítima sido já transportada ao Hospital.

3- O “Relatório de Autópsia Médico-Legal” mostra-se junto a fls 118 dos autos.
Do mesmo destacaríamos que :
A “ferida perfuro-contundente, de entrada de projéctil de arma de fogo de contorno circular” foi “localizada na região parietal direita” da vítima ;
“Fracturas de crânio :
- orificial, de contorno oval, no parietal direito…
- lineares : na escama do temporal direito…
Laceração do encéfalo em forma de canal entre o lobo parietal e o pólo do lobo frontal esquerdo - segundo um trajecto orientado da direita para a esquerda, de trás para diante e de cima para baixo…
Dois fragmentos de projéctil de arma de fogo no ventrículo lateral esquerdo…”.
De acordo com as conclusões disse-se então que :
“A morte… foi devida às graves lesões traumáticas crânio-cerebrais descritas… que resultaram de traumatismo violento de natureza perfuro-contundente e foram produzidas por projéctil de arma de fogo… que penetrou na cabeça pela região parietal direita, seguiu um trajecto orientado da direita para a esquerda, de trás para diante e de cima para baixo, tendo ficado alojado no hemisfério cerebral esquerdo”.

a) Em qualquer direito processual hodierno, a apreciação da prova é “livre”, o que vale dizer, é apreciada pelo Tribunal “em consciência” - processo penal espanhol - de acordo com a regra da “íntima convicção” - em França - do seu “livre convencimento” - no direito processual italiano (5).
É em tudo igual o disposto no artº 127º do CPP português, de acordo com o qual a prova “é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção” do Tribunal.
Ensina, desde há muito, o Prof. Figueiredo Dias que este “princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida… a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo” (6).
Na mesma linha, ensinava também o Prof. Cavaleiro Ferreira : “A livre convicção é um meio de descoberta de verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. E uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores” (7).
É no fundo - agora no dizer da Il. Profª Teresa Beleza - “a liberdade de decidir de acordo com o bom senso e a experiência de vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional, o “saber” de experiência feito e honesto estudo misturado” (8).
Vai no mesmo sentido também a jurisprudência dos nossos Tribunais, quando referem que a “livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza, em geral, de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo também ela, em geral, objectivável e motivável” (9).
Qualquer outro entendimento nesta matéria - adianta ainda e também o nosso Tribunal Constitucional - levaria necessariamente ao “esvaziamento da função judicial constitucionalmente assegurada em nome de princípios que, nomeadamente apelando para o contraditório, reduziriam a função de julgar à singela mecânica da subsunção, com uma inerente incompletude” (10).
Quiçá por isso mesmo, “na expressiva fórmula de Tonini, “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé (como aconteceria se se dissesse : o facto é verídico porque, de outro modo, o ministério público não teria formulado a acusação” (11).

c) Posto o assim sumariamente referido, cremos desde logo, poder dizer que é de todo improcedente a posição do Recorrente quanto à matéria de facto ora impugnada.
Desde logo porque, impondo o legislador a motivação da decisão nesta matéria - artº 374º nº 2 do CPP - da simples leitura da mesma - refer. em 2- c) - é para nós de todo inequívoco ser a mesma completa, de todo exaustiva, lógica e racional, relativamente ao exame crítico do manancial probatório dos autos.
E é-o tendo em conta quer o valor probatório dos exames periciais feitos, expressamente objecto de previsão pelo artº 163º do CPP, quer a demais prova produzida, maxime a testemunhal.
Com efeito, e no que a esta respeita, os depoimentos das testemunhas B ... e C ..., são de todo demonstrativos da existência de - mais - uma situação de conflito conjugal ocorrida poucos minutos antes dos factos dos autos.
Também em tudo concordantes são os depoimentos dos agentes da PSP D … e Q …, os primeiros a chegar à residência do arguido, que descreveram a posição em que viram a vítima, as duas versões desde logo apresentadas pelo arguido à testemunha Q …, constatando este que o revólver não tinha sido oleado, adiantando até que nem tão pouco “cheirava a isso”.
Acresce ainda que a indicação da trajectória da bala pelo Senhor Perito E … do é, quanto a nós, de todo clara e lógica, uma vez que, pese embora a sua fragmentação e o facto de não ter havido orifício de saída, em termos médico-legais, é inequívoco que tal trajectória foi definida como sendo “da direita para a esquerda, de trás para a frente e de cima para baixo”, o que é de todo compatível com a posição de sentada da vítima.
Sucede até que, na versão dos factos dada pelo arguido - de homicídio negligente - não se compreenderá como e por que razão, após a dita limpeza da arma, se dirige à vítima - que, diz, o terá chamado, o que se mostra algo inverosímil até face ao clima de tensão então existente entre ambos, na sequência do, imediatamente anterior, episódio de saída de casa - de arma na mão e, sobretudo, transportando-a na posição pelo mesmo referida na versão por si apresentada dos factos e constante das fotografias de fls 73 e 74.
Quanto aos depoimentos das demais testemunhas ora referidas pelo arguido, não cremos que nenhum deles possa pôr em causa a factualidade julgada provada e ora questionada.
Bem pelo contrário, até, como se viu.
A sua conduta poderá mesmo ser tida de todo consentânea com o modo de reagir “friamente” em situações de stress, como expressamente referiu o seu colega - durante 16 anos - e testemunha J ....
Entendem especialistas vários nesta matéria que “en los casos de agresión a la mujer raramente la situación es analizada bajo una perspectiva realista, normalmente y como consecuencia de la carga socio-cultural y afectiva del observador se suele ver a través de lentes convexas o cóncavas que maximizan o minimizan el hecho en sí y, que en cualquier caso, deforman la realidad. El análisis derivado de dicha situación será en consecuencia reduccionista o magnificador, complicando cuando no impidiendo la comprensión del hecho. La explicación más lógica en lo aparente, pero también la más superficial, es creer que se trata de una serie de casos aislados, más relacionados con algunas circunstancias particulares de tipo socio-económico (desempleo, bajo nivel cultural, ambientes marginales,...) con determinados tipos de hombres (alcohólicos, drogadictos, impulsivos, celosos...) o con determinados tipos de mujeres (provocadoras, que no cumplen con sus obligaciones como madres o esposas, masoquistas...) o como mucho combinando algunas circunstancias de estos tres tipos de elementos”.
Contudo, adianta-se, “la realidad es mucho más compleja y nunca se puede tratar de comprender basándose sólo y exclusivamente en el episodio puntual de la agresión, a pesar de que este se repita y sea el elemento más significativo y fundamental del síndrome. Se trata de una situación prolongada en la que la interacción víctima-agresor y ambiente (social y familiar) condiciona y matiza por completo lo que en apariencia no tiene una justificación razonable” (12).
Exemplares estas considerações, cremos nós aqui também.

d) Dir-se-á ainda e também nesta matéria que, a terem-se por devidamente invocados os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, é para nós de todo manifesto que, tendo um e outro de decorrer “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, tal se não verifica no caso presente.
A matéria de facto julgada provada é, clara e, inequivocamente, de todo bastante para a decisão de direito a que conduziu.
Da sua análise não se vislumbra também qualquer “falha grosseira e ostensiva”, de modo algum se podendo considerar “provados factos incompatíveis entre si”, sendo de todo lógicas as conclusões retiradas.
Em bom rigor, diríamos até que o ora recorrente “mal” invoca tais vícios. Na verdade, o que parece entender é que face à prova pelo mesmo referida a matéria de facto referida não o deveria ter sido no sentido em que o foi.
Ora, tudo isto é apenas e tão só, como dissemos, o oposto da convicção do tribunal, o que manifestamente irreleva.
Improcede pois o recurso nesta parte.

2.2- Da tipificação

Como se deixou referido em 2- c), entendeu o Tribunal a quo considerar a factualidade julgada provada como integrando a prática de um crime de homicídio, qualificado pela sua “especial censurabilidade”, enquadrando esta na al. h) do nº 2 do artº 132º do CP, ou seja, considerando a conduta do ora recorrente como insidiosa, “por não ter permitido qualquer hipótese de fuga ou defesa” à vítima.
Adianta-se porém que, pese embora “se pudesse considerar que se verifica também a circunstância agravante prevista na alínea i)…(pela frieza de ânimo revelada pelo arguido, ao cometer os factos depois de a discussão ter terminado e com a calma que lhe permitiu acercar-se sem que fosse detectado)”, foi entendido que esta circunstância deveria antes ser “apenas considerada na determinação da medida da pena, uma vez que o homicídio é qualificado por circunstância diversa”.
Entende, por sua vez agora o Recorrente que “deveria ser sancionado pelo crime de homicídio por negligência p.p. no artº 137º nº 2 ou maxime - o que só por mero dever de patrocínio se admite - pelo homicídio p.p. pelo artº 131º do CP”.
Que dizer então ?

a) Desde logo que, face à matéria dada como provada - e inverosímil de todo, como se disse, a versão apresentada pelo recorrente - excluída está, de uma forma inequívoca, a sua subsunção ao crime de homicídio negligente referido.

b) Tudo estará pois em saber se a mesma integra um crime de homicídio simples, como subsidiariamente se entende agora também, ou se, pelo contrário e como se decidiu, deve aquele ser qualificado e, em caso afirmativo porquê.

1- É de todos conhecida a controvérsia doutrinal - e não só entre nós - relativamente ao crime de homicídio, na sua forma qualificada, objecto de previsão no artº 132º do CP.
Figueiredo Dias ensina que “o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio “simples” (13).
Ou seja, a “qualificação deriva - apenas e tão só - da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva - aqui descrito “com recurso a conceitos - algo - indeterminados”, como o são a especial censurabilidade ou perversidade do agente.
É esta, no dizer também de R …, o “crivo normativo” da qualificação (14).
Na “especial censurabilidade” - diz Figueiredo Dias (15) - pretendem-se abranger “aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.
É no mesmo sentido que aponta também o nosso Mais Alto Tribunal :
“Especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido” (16).
Temos assim, que é, apenas e só, aquela especial censurabilidade ou perversidade do agente a matriz da agravação/qualificação do homicídio, não podendo este ocorrer sem aquela.
Quanto aos denominados “exemplos-padrão” da referida matriz, enumerados no seu nº 2, são agora já apenas e tão só meros indicadores daquelas, sendo certo que, e por isso mesmo, não só de modo algum não esgotam o conceito referido - como claramente se infere da expressão “entre outras” - como também e ainda, mesmo que ocorram, podem não levar, automaticamente, à sua verificação, como decorre também da expressão utilizada “é susceptível de”.
Configurar-se-á assim a conduta do recorrente como merecedora da referida “especial censurabilidade ou perversidade” ?
Não temos dúvidas que sim.

2- Relembra Teresa Serra - na esteira de Schubarth e Stratenwerth - que, “dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através da ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto” (17).
Vejamos então.
A vida familiar do casal era de frequentes discussões, no decurso das quais o arguido agredia fisicamente a vítima, ultimamente com ameaças de morte sempre que esta dizia querer o divórcio, tudo isto ainda que na presença da filha ora assistente - refer. em 2- a) 32-.
No dia dos factos dos autos ocorreu nova discussão e agressões, quer à vítima, quer até também à assistente - refer. em 2- a) 3- a 9-.
A vítima preparava-se para se deitar, encontrando-se sozinha, no seu quarto, estando a filha “fechada” no seu quarto - refer. em 2- a) 10-.
Sem que a vítima se apercebesse, o arguido entrou no quarto e, empunhando o revólver, disparou, atingindo-a na cabeça, vindo, em consequência dos ferimentos sofridos, a morrer - refer. em 2- a) 11- a 15-, 23- a 25-.
“Encenando” logo depois um “acidente”, o arguido chamou a filha, “ameaçou” o suicídio - refer. em 2- a) 19- - para logo depois colocar no sofá da sala o estojo de limpeza da arma - refer. em 2- a) 22-.
Independentemente do enquadramento de tal factualidade num qualquer dos exemplos-padrão do nº 2 citado, cremos que todo o circunstancialismo descrito é, por si só, bastante para podermos concluir pela “especial censurabilidade ou perversidade” na conduta do recorrente.
Desde logo, porque traduz o expoente máximo da violência conjugal e familiar, o culminar de um “casamento de discussões, ameaças e agressões”.
Depois e também - e apelando agora já aos citados “exemplos-padrão - o agir sub-reptício, oculto e traiçoeiro do arguido, aproveitando um momento de alguma descontracção e indefesa da vítima quando se preparava para se deitar, o que configura, contrariamente ao que parece entender o recorrente, meio insidioso.
Lembra-nos o Il. Cons. Maia Gonçalves que se trata de “um conceito amplo, onde caberia certamente o próprio veneno, e que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e os desleais”, não tendo sido “particularizados quaisquer meios, para não retirar elasticidade ao conceito” (18).
É “o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso”, assim o refere Nelson Hungria (19).
Cremos poder integrar ainda e também a actuação do arguido-recorrente no agir “frigido pacatoque animo”, o que vale dizer com a “qualidade do que é moralmente frio, tibieza, indiferentismo, sangue-frio, insensibilidade, indiferença», significando «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar” (20).
“A frieza de ânimo significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a intenção de matar. Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução” (21).
É - ainda no dizer do nosso Mais Alto Tribunal - “este desvalor associado agora a uma mecanização assim programada da acção dirigida à sua execução é que nos dá os contornos jurídico-penais da 'frieza de ânimo” (22).
Se a todo o deixado referido acrescentarmos ainda e também a conduta - pretensamente - dissimulatória do arguido, traduzida no colocar dos apetrechos de limpeza da arma, fazendo crer o acidente nos termos sobreditos, dúvidas não temos que só pela especial censurabilidade e perversidade podemos concluir.
Improcede pois o recurso também nesta parte.

2.3- A medida da pena

Entende o recorrente que, face à sua “personalidade…a sua forma de relacionamento com terceiros, no trabalho ou fora dele, bem assim o modo como ele falava da esposa a terceiros…sendo aquele primário, estando inserido socialmente, seja em termos familiares, seja em termos de mercado de trabalho e tendo-se arrependido…a medida da pena deveria ficar abaixo do meio entre os seus limites mínimo e máximo”.
Por sua vez, entendeu o Tribunal a todo o circunstancialismo deixado referido em 2- e) - ou seja, “ao dolo directo”, bem como e agora também, para além do mais, à “frieza de ânimo” com que agiu o ora recorrente, “aproveitando a calma resultante do fim da discussão e a descontracção da vítima quando esta se estava a despir, para calcular a forma de se aproximar e concretizar os seus intentos” - deste modo fixando a medida da pena em 20 anos de prisão.
Que dizer aqui também ?

1- Que nos parece correcto o raciocínio feito, pese embora a algo arbitrária e discutível “escolha” do Leitbild configurado na al. h) do nº 2 do citado artº 132º para, e desde logo, encontrar a agravada moldura penal aplicável, relegando para este momento da determinação concreta da respectiva medida, a valoração da, também verificada, frieza de ânimo da al. i) seguinte.
E dizemos algo arbitrária e discutível desde logo porque, e relembrando de novo Maia Gonçalves, o exemplo-padrão da citada al. i) “é, certamente, uma das circunstâncias mais fortemente indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio voluntário” (23).
É no entanto ainda e também claro Figueiredo Dias na afirmação de que, “caso concorram os elementos constitutivos de mais de um exemplo-padrão, ambos com relevo para a qualificação da atitude do agente como especialmente censurável ou perversa, um tal concurso só poderá ter efeito, se dever tê-lo, na determinação da medida da pena” (24).
No mesmo sentido é ainda Teresa Serra, peremptória que “não pode aceitar-se a existência de problemas de concurso nem entre a verificação de diversos exemplos- -padrão, nem entre tipo fundamental (artº 131º) e regra de determinação da moldura penal do grupo valorativo de homicídios especialmente graves…E isto é assim, em virtude destes preceitos não conterem verdadeiros tipos de crimes, mas apenas regras modificativas da moldura penal do homicídio.
Daí que não possa encarar-se como concurso ideal o caso de homicídio qualificado em que se verifica o preenchimento de dois ou mais exemplos-padrão”.
Donde, e conclui, “mais correcta será a eleição de uma das circunstâncias como decisiva para a determinação da moldura penal aplicável, enquanto a outra será tomada em consideração, como agravante, na fixação da medida concreta da pena” (25).
Foi este o entendimento e a posição tida no douto acórdão.

2- Chegado o “momento”, como “nenhum outro” - diz Sousa Brito (26) - em que “o juiz incorpora tão dramaticamente a justiça”, entendeu o tribunal a quo graduar a medida da pena em 20 anos de prisão.
Como é sabido, constitui hoje doutrina e jurisprudência assentes que o nosso modelo de determinação da pena a aplicar é “aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma 'moldura de prevenção', cujo limite é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida 'moldura de prevenção' que melhor sirva as exigências de socialização (ou em casos particulares, de advertência ou de segurança) do agente”,
Sendo certo que “ao juiz continua a pertencer uma larga margem de liberdade/responsabilidade no encontrar da medida concreta da pena, com as dificuldades inerentes à determinação da culpa, ao conhecimento da personalidade do arguido, à sintonia pelo 'barómetro' das expectativas comunitárias na validade das normas, revelando-se essencial o bom senso do homo prudens não apenas in jure, mas sobretudo na experiência que entronca nas situações comparáveis e na própria evolução que ocorre no conjunto do sistema jurídico, desde logo pelos sinais de mudança do legislador constitucional” (27).
Adianta-se ainda neste doutíssimo aresto que, presentes que são, em especial, os artºs 40º e 71º do CP, “sobre a função retributiva da pena, como momento de expiação ou compensação da culpa do agente, devem prevalecer as finalidades “relativas” da prevenção geral e especial. “Não em todo o caso, a prevenção geral negativa ou de intimidação, mas a prevenção geral positiva, de integração ou reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no direito... (n)a expressão de Jakobs, a prevenção geral no sentido de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada”.
Assim sendo,
Ponderado que é todo o circunstancialismo descrito, temos por justa e adequada a pena de 20 anos de prisão aplicada, de forma alguma se mostrando aqui também justificada a pretensão do recorrente.

2.4- O pedido indemnizatório

Resta apreciar a matéria relativa ao montante indemnizatório atribuído à Assistente A ... no respectivo pedido cível pela mesma formulado e que o Tribunal a quo fixou num total de 175.000,00 €, diferenciando-se os de 100.000 € pela perda do direito à vida da sua mãe, 25.000 € pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e em 50.000 € os danos não patrimoniais da demandante.
Contrapõe agora o ora Recorrente :
“Quanto aos € 25.000,00 atribuídos pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima são exagerados, pois esta esteve sempre em coma e esteve hospitalizada durante 4 dias” e “não se demonstra que tenha havido sofrimento sabendo-se que o estado comatoso é um estado vegetativo em que a vítima não tem consciência”, tendo por isso “adequada a verba de € 10.000,00” ;
“Quanto à verba de € 100.000,00 fixada para a lesão do direito à vida” contrapõe o de € 50.000,00”, montante fixado pelo Provedor de Justiça e aceite pelo Estado Português para as “vitimas do acidente de Entre-os-Rios”, adiantando ainda que o mesmo “nada tem a ver com a idade ou com as condições económicas da vítima, dado que esses factos poderão ser importantes sim para a determinação dos danos sofridos pelos familiares, não pela própria vítima” ;
“Quanto à quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante cível” conclui também ser o mesmo de todo injustificado uma vez que, e escreve, “apenas se provou que a assistente “teve grande desgosto com a morte da mãe, agravado pelo facto de ter presenciado o sofrimento desta a seguir a ter sido alvejada e durante os dias de internamento que antecederam a sua morte” e que era muito amiga da mãe, que a acompanhava nos estudos, nas idas ao médico e às compras”, assim devendo ser fixada “uma quantia não superior a 25 000,00”.

1- Estamos, como se colhe, concretamente e tão só no domínio da reparação dos danos de natureza não patrimonial ou imaterial, também denominada de espiritual ou moral.
“Não é fácil definir o dano não patrimonial”, diz-nos, desde há muito, Dário Martins de Almeida.
Justificando esta sua afirmação, cita De Cupis : “Se se quer dar uma noção lógica e completa dos danos não patrimoniais, é preciso não a limitar ao campo dos sofrimentos físicos ou morais mas concebê-la como compreendendo todos os danos que não estão abrangidos no grupo dos danos patrimoniais ; ou seja que o seu conceito mais não pode ser do que negativo”.
Daí que, e referenciando agora a equidade, para que expressamente remete o art.º 496º n.º 4 do CC - aqui aplicável ex vi do artº 129º do CP - no que à determinação do respectivo montante indemnizatório concerne, adiante ainda e também que, “quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa ; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal... A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou que é mais justo ” - realçados e sublinhados nossos.
De onde, e concluindo, “o dano não patrimonial não pode ser avaliado em medida certa. A moeda não se ajusta a este dano... porque se trata de bens que não têm um valor venal” (28).
Ainda assim, ensina também Antunes Varela que “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização (art.º 496º n.º 3), aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às funções do valor da moeda, etc” (29).
No mesmo sentido vem também decidindo o nosso Mais Alto Tribunal :
“São conhecidas as dificuldades que nesta matéria se colocam: «Nestes (danos não patrimoniais) a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade. É insusceptível de medida exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação.» «Aqui, mais do que nunca, nos encontramos na incerteza, inerente a um imprescindível juízo de equidade».
Os critérios de equidade a que haverá que atender para o efeito, serão, exemplificativamente, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado e do titular do direito de indemnização, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações do valor da moeda” (30).
Diríamos finalmente que o dano da morte, “exemplo paradigmático do dano moral”, é “o prejuízo supremo”.

2- Posto o assim deixado referido e ponderando todo o circunstancialismo dos autos, nomeadamente a especial culpa do arguido, temos por adequadamente fixados os montantes de 100.000 € relativamente à perda do direito à vida, obviamente irrelevando todo e/ou qualquer outro padrão ou exemplo nesta matéria, nomeadamente o recordado pelo arguido, e 50.000 € quanto aos danos não patrimoniais sofridos pela assistente/demandante.
Já no que respeita aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima durante o período de 4 dias, até à sua morte, considerando o estado de coma em que, artificialmente, “viveu”, temos também por excessivo o montante de 25.000 € arbitrado.
Com efeito, caracterizando-se tal estado como “a profound state of unconsciousness. Patients are alive but unable to move or respond to their environment”, ou seja, “um estado mórbido caracterizado pela abolição total da consciência, da sensibilidade e da mobilidade”, somos obrigados a concluir que o sofrimento físico ou moral da vítima até à sua morte, foi mínimo, quiçá mesmo fugaz.
Assim sendo, entende-se razoável e equilibrado o montante de 10.000 € (dez mil euros) aventado pelo Recorrente nesta parte.

Decisão

3- Face a todo o deixado exposto, acorda-se neste Tribunal em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido no que à específica matéria criminal respeita, procedendo, apenas e tão só parcialmente, nos termos deixados referidos, quanto ao pedido cível deduzido pela assistente, indo assim condenado a indemnizar aquela no montante total de 160.000 € (cento e sessenta mil euros),
Custas pelo Recorrente.
*
Lxª, 4/05/05

(Mário Manuel Varges Gomes - Relator)
(Mário Belo Morgado)
(António Clemente Lima)
(António Rodrigues Simão - Presidente)


_____________________________
(não transitou em julgado)
_____________________________

Notas:
(1) Vd, de entre outros, os Ac. do STJ de 19/06/96, BMJ 458,98 e de 29/08/99, Col. Jur., STJ VII, I, pág.247.
(2) Numeração nossa.
(3) Numeração nossa.
(4) Ac. do Plenário do STJ de 29/10/95, DR I-A de 28/12.
(5) Vd P.Saragoça da Matta, A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Proc.Penal e Direitos Fundamentais, pág. 239, Almedina.
(6) Direito Proc. Penal, Primeiro Volume, págs 202/3, Coimbra Editora.
(7) Curso de Processo Penal, I-317, Ed. dos Serv.Sociais da Univ. de Lisboa.
(8) Rev. do.Min.Público, Ano 19, 40.
(9) Vd, de entre vários outros, o Ac. do STJ de 21/10/98, proc. nº 961/98.
(10) Ac. nº 1164/96, de 19/11, Proc, nº 666/95, DR II de 6/02/97.
(11) Apud P.Saragoça da Matta, ob.cit. pág. 251.
(12) Miguel Lorente Acosta e outros, Síndrome de Agresión a la Mujer, RECPC 02-07 (2000).
(13) Comentário Conimbricense…, Tomo I, pág. 25, Coimbra Editora, que seguiremos de perto.
(14) Direito Penal II - Os homicídios, pág. 41, AAFDL.
(15) Aqui acompanhando Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64, Almedina.
(16) Ac. de 27/05/04 in www.dgsi.pt
(17) Ob.cit., pág. 63.
(18) Cód.Penal Port., Anot. e Coment, 15ª ed.-2002, pág. 462.
(19) Apud S.Santos e L.Henriques, O CP de 1982, vol 2, 1986, pág. 30, Rei dos Livros.
(20) Vd, de entre muitos outros, o Ac. de 15/05/02 e de 14/11/02, loc.cit.
(21) Ac. do STJ de 24/04/91, BMJ 406, 381.
(22) Cfr Ac. do STJ de 17/01/96, Proc. nº 634/96.
(23) Ob.cit., pág. 463.
(24) Ob.cit., pág. 45.
(25) Ob.cit. págs 101/2.
(26) A Medida da Pena no Novo Código Penal, Textos de direito penal, tomo II, pág. 331, AAFDL.
(27) Cfr, de entre outros, o Ac. do STJ de 27/11/02 in www.dgsi.pt
(28) Manual de Acidentes de Viação, Almedina, respectivamente págs. 266 e 103.
(29) Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 567.
(30) Cfr Ac. de 14/11/02 in www.dgsi.pt
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