Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 29-09-2004   Abuso sexual de criança. Depoimento indirecto. Inadmissibilidade. Fundamentação.
I - O tribunal não fundamentou a não audição do menor, em julgamento por abuso sexual de criança, quando estava em causa a imposição legal de confirmação do depoimento indirecto, tendo registado a possibilidade de o ouvir, o que conduz à nulidade do Acordão nos termos do artigo379.º, n.º 1, alínea a) do CPP.II - O conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente dele. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente os próprios factos. III - A inadmissibilidade do testemunho indirecto fora das condições fixadas no artigo 129.º do CPP é o regime-regra; é uma das características de todos os processos de estrutura acusatória, enquanto que a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório.IV - São os princípios do contraditório e da imediação que estão em causa, uma vez que inexiste relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes processuais.V - Consequentemente acorda-se em anular o acordão proferido a fim de ser suprido o vício da fundamentação ou, se assim se entender em reabertura da audiência, ouvir o menor e proferir decisão em conformidade.(citados no acordão : ac. do tribunal constitucional nºs. 213/94 de 2.03, 440/99 de 8/07 in BMJ 435, 155 e 489, parecer Costa Andrade in Co.Jur.Ano VI, 1981, T.I.,pag.6)
Proc. 2915/04-3 3ª Secção
Desembargadores:  Varges Gomes - Teresa Féria - Clemente Lima -
Sumário elaborado por Maria José Morgado
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Proc. 2915/043ª SecçãoAcordam em audiência neste Tribunal da Relação de LisboaRelatório1- Por douto acórdão proferido nos autos n.º 1629/01.5JDLSB da 7ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, foi o arguido D … julgado e condenado, para além do mais, “pela prática de um crime de abuso sexual de criança, sob forma continuada, p.p. pelos art.ºs 172-2 e 30-2 do C.Penal, na pena de seis anos e seis meses de prisão” e, “pela prática de um crime de coacção grave, sob a forma continuada, p.p. pelos art.ºs 155-1-b, 154 e 30-2 do C.Penal, na pena de três anos de prisão”, em cúmulo das quais resultou a sua condenação “na pena única de sete anos e seis meses de prisão”. 1.1- É do assim decidido que o arguido interpõe o presente recurso pedindo a sua absolvição, para tal concluindo, após convite, que :“1. ... a prova produzida foi manifestamente insuficiente, contraditória, tendo inclusive sido utilizados meios de prova proibidos, como foram os depoimentos indirectos das duas únicas testemunhas que referiram os factos considerados provados nos pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 ;2. Relativamente ao depoimento da Drª E …, o mesmo resumiu-se a relatar aquilo que lhe havia sido transmitido quer pela Educadora da Escola do F ..., quer pela Drª G …, não tendo sequer conversado com F ... sobre as alegadas violações, nem sequer examinado ;3. Pelo que o seu testemunho é totalmente irrelevante para a prova dos factos que constam da acusação do MºPº ;4. O testemunho prestado pela Drª G … também não é susceptível de fazer prova dos factos descritos nos pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 da matéria de facto considerada provada, uma vez que revelou não ter qualquer conhecimento directo dos mesmos, relatou apenas que o pai do F ... lhe contou que, por sua vez, este lhe havia contado tais factos ;5. Ou seja, não lhe revelou qualquer conhecimento sobre os factos constantes dos pontos supra referidos da matéria de facto considerada provada ;6. Aliás, no seu relatório pericial são mencionadas suspeitas de abuso sexual do F ... mas relativamente ao seu pai Sr. H … ;7. Discordando, assim, o arguido da apreciação que o Douto tribunal a quo fez do presente testemunho, bem como do seu relatório pericial ;8. Relativamente ao EXAME DIRECTO DE CLÍNICA MÉDICO–LEGAL (SEXUAL), o mesmo conclui que “a prática de coito anal de forma continuada associa- -se frequentemente a diminuição da tonicidade do esfincter o que não foi observado pela Perita” ;9. Pelo que, a convicção do Douto Tribunal a quo não pode ter sido formada a partir desta perícia ;10. O depoimento da Srª I … consubstancia um depoimento indirecto nos termos do art.º 129º do CPP e, tendo em conta que não foi ouvido o F ..., ou seja, a pessoa de quem a testemunha ouviu os factos que relatou, não pode o presente testemunho valer como meio de prova ;11. Ademais, não apresentou conhecimento de factos concretos, como os actos sexuais que terão sido praticados, o local concreto e as respectivas datas, pelo que, se resumiu a invocação indirecta e vaga de tais factos ;12. A isto acresce os factos pouco verosímeis relatados pela mesma, o que não abona nada para a credibilidade do seu testemunho ;13. Por fim, o depoimento do Sr. H … também consubstancia, nos termos do art.º 129 do CPP, um depoimento indirecto, porquanto não foi ouvido o F ... ;14. Também o Sr. H … não foi capaz de esclarecer que actos sexuais foram praticados, em que local e em que datas, limitou-se, também ele a referir o que alegadamente lhe foi dito pelo filho, mas de conteúdo muito pouco preciso e manifestamente insuficiente para que o Tribunal possa considerar tais factos provados;15. Acresce que o Sr. H … é assistente e deduziu pedido de indemnização civil, pelo que é parte interessada na presente acção ;16. Nestes termos, entende o arguido que não podia o Douto Tribunal a quo considerar este depoimento para formar a sua convicção relativamente aos factos que consubstanciam a prática dos crimes de que o arguido vem acusado ;17. A decisão ora recorrida viola claramente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas, nomeadamente a presunção de inocência e o princípio do contraditório estabelecidos no art.º 32º da CRP ;18. Uma vez que a referida decisão foi alicerçada em depoimentos indirectos sem ter sido ouvida a fonte de tais conhecimentos, estamos perante um meio de prova proibido, nos termos do art.º 129º do CPP, pelo que não deverão ser admitidos;19. Ora e não obstante a inadmissibilidade dos depoimentos indirectos supra referidos e cuja proibição foi invocada, face ao exposto vem o ora Recorrente, nos termos da al. a) e b) do n.º 3 do art.º 412º do CPP, especificar que considera incorrectamente julgados os pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 da matéria de facto considerada provada, porquanto toda a prova produzida impõe decisão diversa da recorrida ;20. Uma vez que da mesma não se conseguiu apurar qualquer facto concreto, nomeadamente datas dos alegados factos, não se conseguiu apurar em que locais teriam ocorrido os alegados abusos (apenas se referiu a residência do arguido), sendo a prova produzida, quer a testemunhal, quer a documental e ainda a pericial, vaga, contraditória e pouco credível ;21. Pelo que a prova produzida, por tão vaga e pouco credível, impunha uma decisão diversa da recorrida no que concerne aos pontos referidos, ou seja, deveriam ter sido considerados não provados”. 1.2- Respondeu o Digno Magistrado do MºPº pugnando pela improcedência do recurso, alegando, em resumo, que “não ocorreu aquisição de qualquer meio de prova proibido p. no art.º 126º do CP”, dizendo “o invocado art.º 129º do CPP respeito à valoração por parte do tribunal do depoimento indirecto, em sede de apreciação da prova testemunhal, valoração essa absolutamente distinta da nulidade de aquisição processual de meios de prova proibidos;”Por outro lado, “o relatório pericial de fls. 71 a 74 dos autos foi elaborado a solicitação do Tribunal de Família e Menores de Lisboa e foi nessa qualidade que foi incorporado no presente processo crime”, presumindo-se “o juízo técnico inerente à prova pericial subtraído à livre apreciação do julgador”, nos termos do disposto no art.º 163º n.º 1 do CPP ;“Face ao valor probatório de tal perícia, cotejado com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, entendeu o tribunal ser dispensável para a formação da sua convicção a audição do menor F ... .Em audiência de julgamento, a perita G … foi de parecer de que no interesse do equilíbrio do menor, este não deveria ser sujeito a reviver o trauma por que passou, ao ser ouvido em julgamento, tendo o tribunal acolhido tal parecer.A medida da pena fixada ao arguido é adequada ao elevadíssimo grau de culpa com que actuou, com repercussão nos problemas de saúde psíquica e física causados no menor como sequela inevitável da sua conduta, como é referenciado no acórdão”.1.3- A Il. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação teve vista nos autos, considerando agora “minimamente respeitado o ónus da impugnação especificada sobre a matéria de facto”. 1.4- Também o Assistente H … respondeu agora concluindo pela inexistência de “fundamento lógico para o recurso interposto, pelo que deve o mesmo ser rejeitado in totum”. 1.5- Quando do exame preliminar a que se refere o art.º 417 do CPP entendemos que, pese embora o disposto no art.º 432º al. d) seguinte, é este Tribunal da Relação competente para conhecer do presente recurso. Isto não só porque e, desde logo, foi esta a clara opção do Recorrente, mas ainda e também porque permite deste modo a apreciação ampla de quaisquer dos vícios referidos no art.º 410º n.º 2 anterior, para além do que viabiliza e concretiza ainda o conhecido princípio do duplo e efectivo segundo grau de recurso (1). 1.6- Foram colhidos os vistos legais. Procedeu-se à audiência de julgamento com observância das formalidades legais. Cumpre agora decidir.Fundamentação2- Como se colhe das agora conclusões acima deixadas referidas, o objecto do presente recurso assenta quer na matéria de facto, quer em matéria de direito, concluindo-se ser a aquela, concretamente no que à prova dos factos “3 a 6, 8 a 10 e 12 a 14” respeita, por um lado, “manifestamente insuficiente” e “contraditória” e, por outro, obtida através de meios proibidos, ou seja, constituindo os depoimentos das testemunhas Drª E …, G … e I … ouvidas, bem como o “o depoimento do Sr. H … ”, aqui Assistente, verdadeiros “depoimentos indirectos”, assim considerando violados os princípios da presunção de inocência e do contraditório, tal como e ainda as garantias de defesa, nos termos do disposto nos art.ºs 32º da CRP e 129º do CPP. 2.1- Atentemos pois e desde já, na matéria de facto julgada provada : “1. No ano 2000, o arguido costumava almoçar e jantar no restaurante «J ...», na rua de L …, também frequentado H … e seu filho F ... , nascido em 1995.02.18. 2. O arguido foi aos poucos ganhando a simpatia do H ... e do menor, comprando para este doces e outra prendas. E assim, em finais de 2000, passou a convidar o menor para dar passeios, o que o menor aceitava, com o consentimento do pai. Iam passear nomeadamente para o P … ou à Q … .3. Estando o menor cada vez mais à vontade com o arguido, este começou a levá-lo para a cave onde reside, sob o pretexto de tomar conta dele quando o pai não podia fazê-lo.4. E, nestas ocasiões, o arguido, num número indeterminado de vezes, introduzia o pénis na boca do F ..., metia na boca o pénis do F ...; dava-lhe beijos na boca acariciava-lhe os mamilos; fazia que o F ... manipulasse o pénis do arguido em movimentos de massagem até ejacular; também encostava o pénis nas nádegas do F ... junto ao ânus.5. Para evitar que o F ... contasse ao pai o que se passava, o arguido ameaçava-o dizendo-lhe que, se o menor o fizesse diria ser tudo mentira e que o pai do F ... iria preso;6. O menor aceitou como verdadeiras estas ameaças e passou a sentir-se oprimido e inseguro. Por esse facto e pelas referidas práticas sexuais a que o arguido o sujeitava, o menor começou a vomitar e a defecar nas cuecas, sobretudo quando se encontrava na escola, e a ter mais alterações de comportamento que foram notadas por quem lidava com o F ... .7. Por tais alterações de comportamento, o menor passou a receber acompanhamento pedopsiquiátrico no Hospital de M …, onde era conduzido pelo pai e pela hóspede que vivia num quarto por este arrendado. 8. Acabou por contar a esta hóspede, muito em segredo, o que se passava com o arguido, e foi esta quem avisou o pai H … .9. A última vez que o menor F ... e o arguido estiveram juntos sozinhos, foi em 2001.04.22, entre as 15.00 e as 19.00 horas. Até esse data, pelas ameaças referidas, o arguido conseguiu que o menor não contasse as práticas sexuais a que o arguido o sujeitava.10. O arguido agiu livre e conscientemente, para satisfazer os seus desejos libidinosos, e com perfeito conhecimento da idade do menor, bem sabendo que com isso ofendia a moral sexual reconhecida e tutelada pela ordem jurídica, atentando contra a liberdade de determinação sexual do menor F … , e incutindo neste os referidos sentimentos de opressão e insegurança, com distúrbios de natureza fisiológica e psicológica, e sabendo também que tais condutas eram proibidas como crimes.11. O arguido não tem antecedentes criminais registados. Fez a 4ª classe. Vive sozinho, recebendo uma reforma de 300 euros mensais. Era bem conceituado e considerado boa pessoa pelos frequentadores do restaurante e o dono deste.12. O menor era, antes da ocorrência dos factos aqui descritos, uma criança saudável, alegre e terna. E em consequência deles tornou-se uma criança triste, envergonhada e isolada das outras crianças.13. A criança e o pai sentiram-se profundamente afectados na sua vida pessoal e dignidade, e o menor ficou com uma vergonha profunda e um estigma psicológico perdurável. O pai do menor sentiu-se profundamente revoltado pela conduta do arguido.14. Em consequência das deslocações a consultas médicas, o pai do menor despendeu em transportes 150 euros e deixou de ganhar 200 euros”. 2.2- Já em sede de fundamentação consignou o douto Colectivo que : “A convicção do Tribunal baseou-se nas declarações do assistente H …, e das testemunhas I … , Drª G … e Drª E … . Todos se pronunciaram com segurança e isenção, por forma a convencer o tribunal. Para a prova da idade do menor F … , foi bastante a certidão de fls. 108.O assistente H … , pai do menor, referiu ao tribunal as circunstâncias em que travou conhecimento com o arguido, por ir almoçar frequentemente ao restaurante J ..., que o arguido também frequentava, residindo na cave que dá para o referido restaurante; como o arguido foi ganhando a confiança do menor e do assistente; e as alterações de comportamento do menor, que o levaram a recorrer à consulta de pedopsiquiatria por indicação da médica assistente; e como veio a saber da situação de abuso, por o próprio menor a ter contado, muito em segredo, à hóspede, a testemunha I … que também convivia com o menor por viver hospedada num quarto lá em casa.A testemunha I … referiu ao Tribunal o seu conhecimento do menor, por se ter tornado hóspede em casa do pai deste desde Maio de 2000; o relacionamento que nessa data já existia entre o menor e o arguido; o facto de o F ..., a partir de Novembro de 2000, ter passado a vomitar e a defecar nas cuecas; e como o F ..., em fins de Abril de 2001, lhe contou as práticas sexuais com o arguido, que o menor tratava por «Velho», nomeadamente que este lhe pedia para «pôr a pilinha dele no rabinho e na boca» do F ..., e que «deitava um ranho que cheirava mal e sabia mal»; finalmente, como acompanhou o menor F ... à psicóloga mais de uma vez a pedido do pai e tomou conhecimento do sofrimento do menor e do seu pai, em consequência dos factos referidos.A testemunha Drª G … confirmou em julgamento o relatório clínico de fls. 71-74 e a conclusão de que o menor sofreu «uma situação traumática relacionada com uma exposição crua à sexualidade». Deste depoimento e relatório resultaram corroboradas as afirmações do pai do menor e da testemunha I ….A testemunha Drª E …, médica pediatra do menor, relatou ao Tribunal o acompanhamento que fez dos problemas psicológicos deste, e como tomou conhecimento das suas alterações de comportamento na escola, bem como as suspeitas que a levaram a encaminhar a criança para o Hospital de M ….Quanto à situação pessoal do arguido, o tribunal baseou-se nas declarações deste, não lhe parecendo convincentes as declarações em que negou ter tido condutas de natureza sexual com o menor. Relativamente à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no certificado de fls. 132. Quanto ao conceito público do arguido, foi determinante o depoimento da testemunha N …, o dono do restaurante frequentado pelo arguido”.2.3- Temos de convir que o Recorrente assenta todo o peso “motivatório” do presente recurso no facto de ter ocorrido utilização de meios de prova proibidos, na medida em que, os produzidos - ou sejam, os depoimentos das testemunhas Drª E … e Drª G …, bem como e também da testemunha I … e o “depoimento” do Assistente H … - consubstanciam “depoimentos indirectos nos termos do art.º 129º do CPP, tendo em conta que não foi ouvido o F ...”. Assim sendo, a) Quer no que à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada respeita, quer também e ainda quanto à contradição da fundamentação, que tem de ser insanável, serão apenas e tão só vícios decorrentes daquele.Ainda assim,Sendo consabido, e por um lado, como expressamente decorre do art.º 410º n.º 2 do CPP, que devem um e outro resultar “do texto da decisão recorrida”, E presentes que são, por outro, os elementos constitutivos do ilícito de abuso sexual de crianças p.p. no art.º 172º n.º 2 do CP - prática de “coito anal ou coito oral com menor de 14 anos” - bem como a matéria de facto julgada provada e referenciada em 2.2- 4.) - dúvidas não restarão desde logo da sua suficiência e não contradição invocadas para se concluir pela prática do ilícito em causa.Este, porém, e adianta-se já, terá de restringir-se ao dito “coito oral” e não já ao “coito anal”, como considerou o douto acórdão.Na verdade, exigindo-se no “coito” - legalmente equiparado à “cópula” - a penetração pelo pénis (2), e provada que foi tão só a matéria referenciada em 2.2- 4. - “também encostava o pénis nas nádegas do F ... junto ao ânus” - não pode considerar-se, como o foi, verificado este acto, mas apenas e tão só aquele do “coito oral”, já que, como também expressamente se consignou, provado ficou “se bem que não se provasse a introdução e ejaculação no ânus”.Aqui, cremos, mais do que insuficiência ou contradição da matéria de facto nos termos acima referidos, ocorrerá sim um verdadeiro erro notório da apreciação da prova do n.º 2 al. c) do citado Art.º 410º.b) Dos depoimentos indirectos 1- Cremos, desde logo, laborar o ora Recorrente em erro manifesto nesta matéria. O “depoimento indirecto” não traduz um “método proibido de prova”, como diz, já que não especialmente previsto no art.º 126º do CPP, mas antes e sim um “meio de prova” - “da prova testemunhal” - por isso e desde logo, de todo admissível, de acordo e nas condições fixadas pelo art.º 129º seguinte.Daí que o art.º 348º seguinte - relativo à produção de prova em audiência - expressamente refira que são ali “aplicáveis as disposições gerais sobre aquele meio de prova, em tudo o que não for contrariado” pelo ali disposto.Contudo, e porque não respeita imediatamente aos factos probandos, “o testemunho indirecto só serve para indicar outro meio de prova directo”. Daí que possa ser, validamente, atendido e livremente valorado pelo Tribunal, desde que este outro meio de prova venha a ser prestado ou “quando for impossível a inquirição da pessoa que disse em razão da sua morte, de anomalia psíquica ou impossibilidade de ser encontrada” (3).Não ocorrendo nenhuma destas situações “o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova” - n.º 1 do citado art.º 129º.Igual procedimento é aplicável “ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento da autoria de pessoa diversa da testemunha”, adianta o n.º 2 (4).Importa pois apreciar se, por um lado, os depoimentos em questão foram prestados de modo a poderem considerar-se indirectos, finalmente e ainda, se foram como tal devidamente valorados pelo Tribunal.2- O “conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente os próprios factos” (5).Ou seja e ainda : “Se a prova incide imediatamente sobre os factos probandos, estamos perante prova directa ou histórica ; se a prova incide sobre os factos que permitem, com auxílio das regras de experiência, uma ligação sobre o facto probando, temos prova indirecta ou crítica” (6).Estes segundos referidos constituem pois o que se denomina de “testemunho de ouvir dizer”, as chamadas “testemunhas eco”, o “hearsay evidence rule”.3- Citando Tiedmann, o Il. Prof. Costa Andrade ensina-nos, “de modo propositadamente enxuto”, que a exclusão deste meio de prova “é uma característica de todos os processos de estrutura fundamentalmente acusatória, enquanto que a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório”, logo e aqui, em tudo colidente “com os princípios de um processo próprio de um Estado de direito... incompatível com situações kafkianas e inquisitoriais” (7).São, na verdade, os princípios da imediação e do contraditório que estão agora e aqui em causa, uma vez que inexiste a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes processuais, bem como e também porque “se não traz ninguém a tribunal que possa ser contra-interrogado e cujo depoimento possa ser devidamente apreciado no que respeita à sua credibilidade”.E conclui aquele Il. Prof. :“Do que fica dito resulta líquida uma conclusão : a admissibilidade da hearsay obtained evidence é totalmente impensável num processo que se pretende acusatório”, não valendo “a pena determo-nos sobre as excepções eventualmente admitidas no plano da doutrina, jurisprudência ou direito comparados. Por serem escassas...”.4- Decorreram agora mais de duas dezenas de anos desde então, mas permanecem de todo válidas e actuais estas considerações, como facilmente se colhe e constata da, já vária, jurisprudência constitucional que, entretanto, vem sendo proferida entre nós nesta matéria (8).Dela respigamos agora :“Entende-se que a regulamentação consagrada na norma do n.º 1 do art.º 129º do CPP se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).A disciplina contida no referido art.º 129º n.º 1 também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório ; de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination.Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor) se a sua inquirição não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cfr art.º 127º do CPP”.5- Feita esta resenha sumária, vejamos então se os depoimentos referidos consubstanciam, todos eles, verdadeiros depoimentos indirectos, como se conclui.- A testemunha E … (depoimento transcrito a fls. 316 e sgs) :É médica pediatra no Centro de Saúde de O …, ali conhecendo o F ... desde os 17 dias de vida - ainda com o acompanhamento da mãe, de quem depois se separou - no exercício das suas funções.Teve, por isso, conhecimento dos problemas psicológicos - mudança de comportamento - e fisiológicos - vómitos - do menor, relatados pela educadora/assistente social, tendo-o encaminhado então para a pedopsiquiatria e a endocrinologia. Esclareceu também que, relativamente aos factos dos autos, “não tive propriamente uma conversa com a criança acerca desse assunto”.À pergunta do Il. Mandatário do Recorrente : “Eu pergunto-lhe se a senhora doutora tem alguma indicação científica ou médica de que a criança tenha sido violada sexualmente”, respondeu :“Eu não tenho... não faço exames periciais. Não é da minha competência”.Não cremos assim que possa o seu depoimento ser considerado como indirecto. Bem pelo contrário até.O mesmo traduz apenas e só um relato do conhecimento directo que foi adquirindo no exercício das suas funções.É, aliás, esse mesmo o sentido em que é vertido na motivação do douto acórdão decisório, que se recorda :“A testemunha Drª E …, médica pediatra do menor, relatou ao Tribunal o acompanhamento que fez dos problemas psicológicos deste, e como tomou conhecimento das suas alterações de comportamento na escola, bem como as suspeitas que a levaram a encaminhar a criança para o Hospital de M …” - realçado e sublinhados nossos.- A testemunha G … (depoimento a fls. 326 e sgs) :É psicóloga clínica e infantil.Na sequência dos factos dos autos, a solicitação do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, procedeu a exame do menor, tendo elaborado o relatório de fls. 71 dos autos.É sobre o mesmo que a testemunha depõe, sendo como tal valorado pelo Tribunal, como se reproduz :“A testemunha Drª G … confirmou em julgamento o relatório clínico de fls. 71-74 e a conclusão de que o menor sofreu «uma situação traumática relacionada com uma exposição crua à sexualidade». Deste depoimento e relatório resultaram corroboradas as afirmações do pai do menor e da testemunha I … ” - realçado e sublinhados nossos.Não vemos pois, presentes que são as disposições dos art.ºs 151º e sgs do CPP, como possa também ser considerado um depoimento indirecto.- A testemunha I … (fls. 362 e sgs) :É hóspede do Assistente H ..., vivendo na sua casa por lhe ter alugado um quarto.É à testemunha que o F ... conta, pela primeira vez, os factos dos autos e que a testemunha transmite ao Tribunal, como também se extrai da motivação decisória :“A testemunha I … referiu ao Tribunal... como o F ..., em fins de Abril de 2001, lhe contou as práticas sexuais com o arguido, que o menor tratava por «Velho», nomeadamente que este lhe pedia para «pôr a pilinha dele no rabinho e na boca» do F ..., e que «deitava um ranho que cheirava mal e sabia mal»...” - realçado e sublinhados nossos.É pois inequívoco que, nesta parte do depoimento, não pode deixar de constituir um depoimento indirecto.- O assistente/demandante H … (fls. 272 e sgs)É o pai do menor.As suas declarações - de todo legais e processualmente válidas, como facilmente se colhe dos art.ºs 68º e sgs, 71º e sgs e 341º, 346º e 347º, todos do CPP, algo inexplicável e contrariamente ao que parece entender o Recorrente - incidiram, parcialmente, sobre o os factos dos autos, já que lhe foram transmitidos pela testemunha I … e foram, nessa parte, também valoradas pelo Tribunal :“O assistente H …, pai do menor, referiu ao tribunal... como veio a saber da situação de abuso, por o próprio menor a ter contado, muito em segredo, à hóspede, a testemunha I … que também convivia com o menor por viver hospedada num quarto lá em casa” - realçado e sublinhados nossos.É pois, nessa parte, também e ainda, um depoimento indirecto. c) Como deixámos referido, o regime-regra vigente entre nós - e não só - é o do depoimento directo. Se é certo que, como diz J. Bentham, o “ouvi dizer” seja, em muitos casos e muitas vezes, “inferior ao testemunho oral directo”, sustentava o “pai” da conhecida corrente utilitarista que a pura “exclusão do hearsay que constituísse a melhor prova disponível era susceptível de levar a conclusões fácticas mais sujeitas a erro do que a sua admissão” (9). Daí, talvez, a boa posição adoptada pelo legislador português, sobretudo em circunstancialismos como o dos autos, em que em causa está um menor. 1- Como deixamos referido, por claramente decorrente do disposto no art.º 129º n.º 1, segunda parte, do CPP, a utilização e subsequente valoração do depoimento e das declarações de ouvir dizer sem a sua confirmação pela fonte, são claramente incompatíveis com os princípios estruturantes, vigentes em processo penal, do acusatório, do contraditório e da imediação.Daí a ausência de fundamentação, nessa parte, do douto acórdão, levando, nos termos do disposto no art.º 379º n.º 1 al. a) à nulidade do mesmo.Impõe-se assim : Ou a sua reformulação nessa parte, ou a confirmação em falta, esta através da audição do menor F ... .2- Não queremos deixar de salientar finalmente, que o Tribunal, atento à imposição legal referida, não deixou de registar a possibilidade de tal audição, como se colhe da transcrição de fls. 353 e sgs. Porém, o “coração” de Themis - sempre importante e necessário mesmo, tantas vezes, nesta, cada vez mais insana, “arte” - dominou sobre a razão. Daí a, não expressamente assumida, embora, não audição do menor F ... , agora já com mais de 9 anos de idade. A mesma impunha-se todavia, nos termos descritos, consabida que é até a importância inequívoca das declarações da vítima nestes casos, sempre de difícil concretização, pelos eventuais traumas a que se sujeita, e de valoração também, pelas imensas dificuldades da matéria, é certo, mas sempre relevante e determinante também para a Justiça pretendida. O Tribunal, estamos certos, se assim o entender, encontrará o como melhor para o fazer, até porque o coração tem sempre razões que a razão não desconhecerá.3- Face a todo o deixado exposto, julgando-se parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, acorda-se neste Tribunal da Relação em anular o acórdão proferido devendo o mesmo ser substituído por outro, suprindo o vício da fundamentação nos termos referidos ou, se assim o entender, em cumprimento do citado art.º 129º n.º 1, segunda parte, do CPP, em reabertura da audiência, ouvir o menor e proferir decisão em conformidade.Por ter decaído, condena-se o Recorrente no mínimo de taxa de justiça.* Lxª, (Mário Manuel Varges Gomes - Relator)(Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida) (António Manuel Clemente Lima)(João Manuel V.S. Cotrim Mendes - Presidente)
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