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Processo n.º 806/05
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
1. José David Gonçalves da Rocha, na qualidade de candidato e
representante da lista do Partido Socialista na eleição para a Assembleia de
Freguesia de Avintes, interpôs recurso contencioso da deliberação da 1ª
Assembleia de Apuramento Geral do município de Vila Nova de Gaia que indeferiu
reclamação que apresentou contra a decisão de manter a qualificação de 7 votos
como votos nulos.
Alega, em síntese, que nos correspondentes boletins de voto – sendo
2 na mesa n.º 1, 2 na mesa n.º 2 e 3 na mesa nº 6 da assembleia de voto daquela
freguesia – os eleitores manifestaram, de forma clara e inequívoca, a vontade
expressa de votar no Partido Socialista, pelo que ao não contá-los como votos
válidos a assembleia de apuramento geral violou o disposto no n.º 2 do artigo
133.º da lei aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto (LEOAL). E
que, se esses votos indevidamente considerados nulos, fossem validados, a lista
do Partido Socialista obteria a maioria absoluta no órgão a que a eleição
respeita.
Notificados nos termos do n.º 3 do artigo 159.º da LEOAL, os
representantes das forças políticas concorrentes à eleição para o órgão em causa
responderam que o recurso deve improceder, em síntese útil, pelo seguinte:
A CDU – Coligação Democrática Unitária
Não consta das actas de apuramento local da freguesia de Avintes a referência a
reclamações ou protestos relativamente aos critérios usados na qualificação dos
votos expressos.
No decurso dos trabalhos da assembleia de apuramento geral foi definido um
critério de apreciação dos votos nulos, que foi aplicado com uniformidade, do
qual resulta que a colocação da “cruz” em cima dos símbolos partidários não
tornaria válidos os votos considerados nulos. A validação dos votos pretendida
pelo recorrente só poderia ter lugar se fosse reformulado esse critério e no
âmbito de uma reapreciação global de todos os votos e não apenas os que
beneficiam o Partido Socialista.
O Grupo de cidadãos eleitores “Movimento de Avintes Independente”
O recurso deve ser indeferido, confirmando-se a deliberação da Assembleia de
apuramento geral que é órgão legítimo e considerou, face à lei e às boas
práticas, nulos os votos reclamados. A pretensão do recorrente de ver validados
os votos que favorecem a lista do Partido Socialista só seria legítima no âmbito
de uma análise de todos os votos que, por aplicação do mesmo critério, foram
considerados nulos, o que justificaria a convocação, para melhor esclarecimento
do Tribunal, de todos os membros da mesas de voto e da assembleia geral, bem
como dos delegados das listas.
A coligação eleitoral “Gaia na Frente”
É inequívoco que deve considerar-se nulo o voto em que a “cruz” é colocada
totalmente fora do quadrado, ainda que o seja em cima da própria sigla.
O Grupo de cidadãos eleitores “Avintes com Futuro”
Em cada mesa eleitoral, nomeadamente naquelas a que respeitam os votos que o
recorrente quer ver considerados válidos, esteve presente, no momento da
contagem dos votos, pelo menos, um representante do Partido Socialista, que não
apresentaram qualquer reclamação ou protesto.
Foram requisitados os boletins de voto em causa, bem como elementos sobre a data
de afixação do edital contendo a publicação dos resultados do apuramento geral.
2. Resulta dos elementos juntos aos autos o seguinte:
a) No início dos respectivos trabalhos, a Assembleia de Apuramento Geral
(1ª Assembleia) da eleições para os órgãos das autarquias locais da área do
município de Vila Nova de Gaia, reunida entre os dias 11 e 13 de Outubro de
2005, convencionou “por unanimidade e mediante a interpretação do artigo 133.º
da Lei Eleitoral, considerar válidos somente os votos que mostrassem por forma
inequívoca a escolha feita pelos eleitores, escolha essa feita pela colocação do
sinal respectivo (total ou parcial) no lugar próprio para manifestação da
vontade”.
b) Relativamente à eleição para a Assembleia de Freguesia de Avintes, a
assembleia reapreciou e manteve a qualificação como “voto nulo” dos boletins que
como tal haviam sido considerados no apuramento local das secções n.º 1, 2 e 6,
da assembleia de voto da referida freguesia.
c) O ora recorrente apresentou a seguinte reclamação:
“O representante da candidatura do Partido Socialista de Vila Nova de Gaia, na
1ª Assembleia de Apuramento Geral das Eleições Autárquicas de 2005, vem reclamar
das deliberações sobre a manutenção da nulidade dos votos já considerados nulos
em diversas mesas de apuramento local, considerando que em 7 votos para a
Assembleia de Freguesia foi expressa uma inequívoca vontade dos eleitores em
votar no Partido Socialista.
Os votos em causa encontram-se distribuídos pelas seguintes mesas de voto da
Freguesia de Avintes:
Mesa 1 : 2 votos
Mesa 2 : 2 votos
Mesa 6: 3 votos
Pelo que se requer que os referidos votos sejam considerados válidos.”
d) Sobre a qual recaiu a seguinte deliberação:
“No que concerne à reclamação apresentada pelo representante da candidatura do
PS, José David Gonçalves da Rocha, foi deliberado, por maioria de sete votos a
favor e um contra, indeferir tal reclamação, porquanto, os votos nulos das mesas
n.º 1, 2 e 6 da Freguesia de Avintes já foram reapreciados segundo o critério
uniforme definido no início dos trabalhos da presente Assembleia, mantendo-se na
íntegra tal reapreciação quanto ao número de votos nulos das mesas acima
identificadas.”
e) Segundo a respectiva certidão (fls 114), a afixação do edital de
publicação dos resultados do apuramento geral ocorreu, quanto à 1ª assembleia,
em 14 de Outubro de 2005.
f) A petição inicial do presente recurso e demais documentos que a acompanhavam
foram recebidos no Tribunal, por telecópia, cuja transmissão decorreu entre as
16h33 e as 16h43, do mesmo dia 14 de Outubro de 2005.
3. Atendendo a que, segundo a respectiva certidão (fls 114), que não foi posta
em causa, os resultados da 1ª Assembleia de Apuramento Geral foram publicados
por edital emitido a 13 de Outubro, mas afixado a 14 de Outubro de 2005
(Sexta-feira), o recurso é tempestivo. O termo do prazo estabelecido pelo artigo
158.º da LEOAL recaiu num Sábado, pelo que se transferiu para o primeiro dia
útil seguinte, dia 17 de Outubro (artigo 278.º, alínea e) do Código Civil). Ora,
o requerimento inicial foi recebido, por telecópia, no próprio dia de afixação
do edital, portanto seguramente antes do termo do prazo, que ocorreria no dia 17
de Outubro (Segunda-feira).
4. As respostas da CDU e de “Avintes com Futuro” destacam, entre as
razões para a pretensão do recorrente não ser atendida, o facto de, no
apuramento local, não ter havido reclamação ou protesto contra a decisão aí
tomada de considerar nulos os votos cuja validade agora se discute. Está assim
colocada e tem de ser apreciada – independentemente da qualificação como
obstáculo ao conhecimento ou ao provimento do recurso contencioso – a questão,
que aliás, também poderia ser conhecida oficiosamente, de saber se a existência
de reclamação ou protesto no apuramento local é pressuposto do recurso
contencioso de decisão da assembleia de apuramento geral que mantenha a
qualificação como nulos de votos já como tal considerados no apuramento local.
A questão coloca-se porque o n.º 1 do artigo 156.º da LEOAL dispõe
que as irregularidades ocorridas no decurso da votação e no apuramento local ou
geral podem ser apreciadas em recurso contencioso, desde que hajam sido objecto
de reclamação ou protesto apresentado no acto em que se verificaram, o que
significa, segundo a jurisprudência corrente do Tribunal que a ocorrência de
reclamação ou protesto – sem que à economia da decisão interesse a distinção
material destas duas figuras do direito eleitoral – constitui pressuposto do
recurso contencioso. Poder-se-ia pensar que, mantendo a decisão da assembleia de
apuramento geral o sentido de uma decisão tomada no apuramento local, foi neste
primeiro momento que a situação de invalidade do voto foi definida, pelo que na
falta de reclamação aí apresentada o interessado não poderia, mais tarde, reagir
contenciosamente.
Há, todavia, que ter presente toda a disciplina do apuramento
eleitoral relativo aos votos nulos para resolver esta questão, isto é, para
saber qual é o acto em que a ilegalidade contra a qual se quer reagir deve
considerar-se verificada, para efeitos da parte final do n.º 1 do artigo 156.º
da LEOAL.
Dispõe o artigo 149.º da LEOAL, sob a epígrafe “Reapreciação dos
resultados do apuramento geral”, o seguinte:
“1- No início dos seus trabalhos a assembleia de apuramento geral decide sobre
os boletins de voto em relação aos quais tenha havido reclamação ou protesto e
verifica os boletins de voto considerados nulos, reapreciando-os segundo
critério uniforme.
2- Em função do resultado das operações previstas no número anterior a
assembleia corrige, se for caso disso, o apuramento da respectiva assembleia de
voto.”
A epígrafe do preceito, de que não se conhece declaração de
rectificação, parece enfermar de um lapso manifesto. O que o preceito comete à
assembleia de apuramento geral é o reexame e correcção, no âmbito que define,
dos resultados do apuramento nas assembleias de voto, ou seja, a reapreciação
dos resultados do apuramento local e não a reapreciação “do apuramento geral”.
Independentemente disso, o texto do n.º 1 é claro ao impôr à assembleia de
apuramento geral duas tarefas, no âmbito do seu poder de reapreciação, que
simultaneamente delimita: pronunciar-se sobre os boletins em relação aos quais
tenha havido reclamação ou protesto e reapreciar os boletins de voto
considerados nulos. Dito de modo breve: ainda que não tenha havido reclamação ou
protesto que sobre eles incida, a assembleia de apuramento geral reaprecia
sempre os votos que, nas assembleias de apuramento local, tenham sido
considerados nulos. Na estrutura da norma esta tarefa é distinta da apreciação
da apreciação das reclamações ou protestos (“decide sobre ... e verifica ...
reapreciando-os”).
O legislador quis que a última palavra – na fase administrativa ou de
procedimento eleitoral, entenda-se – sobre a nulidade dos votos coubesse à
assembleia de apuramento geral, independentemente de provocação dos
interessados. Há boas razões para que assim seja, isto é, para que o juízo das
assembleias de apuramento local, rectius, de cada uma das mesas por que a
assembleia de voto se distribui, seja subtraído ao princípio da aquisição
progressiva dos actos. O juízo sobre se determinado boletim de voto contém um
“voto nulo” implica ou pode implicar a desconsideração de uma manifestação de
vontade do eleitor que, embora sujeito a uma enunciação legal taxativa (artigo
133.º da LEOAL), não está imune a erros de interpretação ou aplicação ou à
ineliminável subjectividade do juízo de facto de cada observador. Essa
vulnerabilidade aumenta pela multiplicação de decisores inerente à dispersão do
apuramento local. O legislador quis reduzir esse risco, sujeitando sempre os
boletins de voto classificados no apuramento local como comportado um “voto
nulo” a reexame da assembleia de apuramento geral, em princípio única para cada
circunscrição municipal (artigo 141.º da LEOAL), que os vai reapreciar segundo
critério uniforme.
Deste modo, não pode dizer-se que a decisão da assembleia de apuramento geral
seja um acto meramente confirmativo, uma vez que, embora repita o conteúdo da
decisão anterior, o reexame dos pressupostos decorre de revisão imposta por lei.
É sobre o exercício deste poder legal – ou, em perspectiva centrada na sua
expressão, mas materialmente equivalente, sobre esta estatuição legalmente
inovatória –, que vai incidir a recurso contencioso. É, portanto este o acto em
que se verifica a ilegalidade do apuramento que se quer sujeitar à apreciação
judicial, porque é este o momento em que, segundo o procedimento legalmente
ordenado, a decisão de considerar que determinado boletim contém um “voto nulo”
se torna definitiva. Consequentemente, é relativamente a essa decisão e apenas
relativamente a essa decisão que, em recurso contencioso interposto da
deliberação de apuramento geral que mantenha a qualificação de determinado voto
(já como tal qualificado) como “voto nulo”, tem de verificar-se a existência de
reclamação, como pressuposto do recurso contencioso.
Ora, relativamente à decisão da Assembleia de Apuramento Geral foi
oportunamente apresentada reclamação, que foi indeferida, pelo que nada obsta ao
conhecimento do recurso contencioso, quanto a tal matéria.
5. Nos termos do n.º 4 do artigo 115.º, o eleitor expressa a sua vontade
assinalando com uma cruz o quadrado correspondente à candidatura em que vota.
Esclarece o artigo 133.º sob a epígrafe “Voto nulo” o seguinte:
“1- Considera-se «voto nulo» o correspondente ao boletim:
a) No qual tenha sido assinalado mais de um quadrado;
b) No qual haja dúvidas quando ao quadrado assinalado;
c) No qual tenha sido assinalado o quadrado correspondente a uma candidatura que
tenha sido rejeitada ou desistido das eleições;
d) No qual tenha sido feito qualquer corte, desenho ou rasura;
e) No qual tenha sido escrita qualquer palavra.
2- Não é considerado voto nulo o do boletim de voto no qual a cruz, embora não
sendo perfeitamente desenhada ou excedendo os limites do quadrado, assinale
inequivocamente a vontade do eleitor.
(…).”
Sobre a matéria de votos nulos, o Tribunal Constitucional dispõe de uma
jurisprudência firme e uniforme no sentido de que o boletim de voto, além da
cruz marcada no quadrado correspondente à candidatura escolhida, não pode conter
qualquer outro sinal (corte, desenho ou rasura), definindo-se a cruz como a
intersecção de dois segmentos de recta, sendo considerado o voto válido se e
quando a intersecção ocorrer dentro das linhas que delimitam o quadrado, não
sendo considerado como voto nulo o do boletim de voto no qual a cruz, embora não
sendo perfeitamente desenhada ou excedendo os limites do quadrado, assinale
inequivocamente a vontade do eleitor (veja-se a este respeito o Acórdão
n.º614/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º Vol., pág.635 e o Acórdão
nº 864/93, in Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1994).
Deste modo, o boletim para ser válido não pode ter, para além da cruz, qualquer
outro sinal, corte, desenho ou rasura. Assim, um outro traço que assinale, de
modo mais ou menos evidente, um outro quadrado que não o marcado pela cruz do
boletim de voto ou quaisquer outras cruzes ou sinais noutro qualquer local do
boletim, não pode deixar de ser havido como «desenho» tornando nulo tal boletim,
segundo a jurisprudência do Tribunal (veja-se os Acórdãos atrás citados e ainda
o Acórdão nº 862/93 e 728/97, in Diário da República, II Série, de 10 de Maio de
1994 e de 4 de Fevereiro de 1998).
No caso em apreço estão em causa 7 votos – sendo 2 na mesa n.º 1, 2 na mesa n.º
2 e 3 na mesa nº 6 da assembleia de voto daquela freguesia –, que o recorrente
pretender ver considerados como válidos e a favor do Partido Socialista, por
entender que “nos correspondentes boletins de voto os eleitores manifestaram de
forma clara e inequívoca a vontade expressa de votar no Partido Socialista”.
Sucede que, o recorrente não forneceu elementos que permitam identificar quais
dos votos nulos apurados nas mesas 1, 2 e 6, para a eleição para a Assembleia de
Freguesia de Avintes devem ser considerados como válidos para o Partido
Socialista, pois não juntou fotocópia dos votos impugnados nem indicou outra
forma de os individualizar, sendo que em cada uma dessas mesas foram
considerados nulos mais votos do que aqueles que o recorrente quer ver contados
a favor da lista que patrocina.
De todo o modo, da análise a que o Tribunal procedeu dos boletins de voto
considerados como votos nulos nas mesas 1, 2 e 6, resulta que nenhum respeita os
critérios acima enunciados para serem considerados como válidos para o Partido
Socialista, quer por terem mais de uma cruz, quer porque, além de uma cruz mais
ou menos perfeitamente desenhada e aposta no quadrado correspondente ao Partido
Socialista, contêm marcas escritas noutros quadrados ou noutro local do boletim,
quer porque a cruz foi aposta no símbolo do partido e não no quadrado
respectivo.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 24 de Outubro de 2005
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Gil Galvão (votei a decisão do acórdão, embora com
dúvidas sobre a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do
recurso,
face à ausência de reclamação ou protesto, na Assembleia de Apuramento Local,
sobre a qualificação aí dada a determinados votos considerados nulos,
qualificação
essa mantida na Assembleia de Apuramento Geral)
Bravo Serra (Votei a decisão constante do
presente aresto, embora me sobrem acentuadas dúvidas sobre a afirmação que dele
se extrai no sentido de não ser de exigir, no apuramento local, a formulação de
reclamação ou protesto sobre os votos que aí foram considerados nulos)
Maria Helena Brito (com declaração de voto,
nos mesmos termos que os Senhores Conselheiros Gil Galvão e Bravo Serra)
Paulo Mota Pinto (com declaração de voto
idêntica à do Ex.mo Conselheiro Gil Galvão)
Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050565.html ]