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Proc. nº 201/95
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS instaurou em 1981 execução fiscal contra A ..., Lda... e contra B e o cônjuge. Nessa execução vieram a ser penhorados bens móveis da sociedade executada e bens móveis e imóveis dos co-executados avalistas. Nessa execução, o representante da Fazenda Pública reclamou créditos sobre a executada sociedade do Centro Regional de Segurança Social de Coimbra e do Fundo do Desemprego, com referência aos móveis penhorados, tendo a Caixa de Previdência e Abono de Família do Comércio do Distrito de Lisboa reclamado créditos privilegiados sobre bens penhorados ao executado B.
A Caixa Geral de Depósitos interpôs recurso para o Tribunal Tributário de Segunda Instância da decisão que graduou os créditos na execução, por entender que os créditos reclamados de instituições públicas sobre a sociedade A ... não podiam ser graduados relativamente aos bens penhorados ao sócio B, visto não fruírem de qualquer privilégio sobre tais bens.
Por despacho do Juiz do 1º Juízo do Tribunal Tributário de 1º Instância de Lisboa, proferido a fls. 37, não foi admitido o recurso da Caixa Geral de Depósitos com fundamento em intempestividade da sua interposição, visto se considerar que a entrada em vigor do Código de Processo Tributário tinha acarretado a revogação do art. 5º do Decreto-Lei nº 32276, de 24 de Novembro de
1943, diploma em que a Caixa se tinha baseado para considerar tempestiva a interposição desse recurso.
A recorrente reclamou do despacho de não admissão do recurso, tendo sido revogado tal despacho por decisão do Presidente do Tribunal Tributário de Segunda Instância, proferida em 5 de Junho de 1992 (a fls. 64 a 67 dos autos). Nessa decisão, considerou-se que estava em vigor a norma do art. 5º do Decreto-Lei nº 33276.
Subiu o recurso então ao Tribunal Tributário de Segunda Instância.
Através de acórdão de 17 de Maio de 1994(a fls 99 a 103 dos autos), aquele Tribunal de Segunda Instância negou 'provimento ao recurso' e 'confirmou a decisão que não admitiu o recurso porque intempestivo'. Fundamentou essa intempestividade na inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei nº 33276, nos seguintes termos:
'Resulta do exposto que a CGD tinha a faculdade de atacar a sentença de verificação e graduação de créditos não só a partir do momento em que é da mesma notificada e, ainda, a partir do momento em que era notificada da conta se esta se houver limitado a aplicar as disposições da sentença.
Qualquer outro credor apenas pode recorrer da sentença de verificação e graduação e só poderá atacar a conta se esta não estiver de acordo com a sentença, o que bem se compreende por existir sobre aquela caso julgado.
Tudo se resume a um alargamento do prazo concedido à CGD para atacar a sentença de verificação e graduação de créditos já que ainda estará em tempo de atacar tal sentença se o recurso der entrada no Tribunal no oitavo dia após se considerar notificada da conta de liquidação.
Não se encontrando fundamento material válido para tal diferenciação de tratamento já que estamos perante «uma distinção de tratamento injustificado e, por isso mesmo, irrazoável e arbitrária, com desrespeito pelo princípio da igualdade» (Ac. do TC de 26-10-93, DR IIª S. de 19-01-94, p. 524, a propósito de situação algo semelhante à dos presentes autos) entende-se que a norma mencionada é inconstitucional, por violação do art. 13º da CRP, cabendo a este tribunal recusar a sua aplicação' (a fls. 102 dos autos).
Notificado desta decisão, dela interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público (a fls 106 dos autos).
A Caixa Geral de Depósitos interpôs recurso deste acórdão para a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (a fls. 110 a 113).
Apenas foi admitido o primeiro recurso, por despacho de fls. 116.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
A entidade recorrente sustentou, nas conclusões da sua alegação, a improcedência do recurso de constitucionalidade, nos seguintes termos:
'A norma constante do § único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 32276, de 24 de Novembro de 1943, ao facultar à Caixa Geral de Depósitos, sem qualquer justificação objectiva, a prerrogativa consistente em diferir a eventual interposição do recurso da sentença de verificação e graduação de créditos em acção executiva para momento contado da notificação do acto da secretaria que executa estritamente o decidido, viola o principio da igualdade de armas, resultante do estatuído nos artigos 13º e 20º da Lei Fundamental'.
A Caixa Geral de Depósitos sustentou a vigência e a não inconstitucionalidade da norma desaplicada (a fls. 137 a 139).
3. Foram corridos os vistos legais.
Importa conhecer do objecto do recurso, por não se vislumbrarem razões que a tal obstem.
II
4. Constitui objecto do presente recurso a norma do § único do art. 5º do Decreto-Lei nº 32276, de 24 de Novembro de 1943, que tem o seguinte teor:
'Dentro dos oito dias seguintes à notificação poderá a Administração da Caixa ou reclamar contra a conta ou recorrer da sentença de graduação se a conta se houver limitado a aplicar as disposições da sentença'.
O corpo do artigo estabelece que, nas execuções em que a Caixa Geral de Depósitos seja reclamante, será 'notificada à Administração da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência toda a conta de liquidação em que o crédito da Caixa ou de alguma das suas instituições anexas, reclamados no processo, não recebam pagamento pela totalidade'.
Este artigo foi expressamente mantido em vigor pelo art. 18º, nº 1, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro. À data em que foi admitido o recurso para o Tribunal Tributário de Segunda Instância ainda não tinha sido publicado o Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, que transformou a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (diploma esse que revogou, de um modo geral, a legislação privativa da instituição, nomeadamente o Decreto-Lei nº 693/70 - cfr. o art. 9º, nº 1, daquele diploma de 1993).
5. Como é evidente, a competência do Tribunal Constitucional confina-se a apreciar a questão de constitucionalidade da norma desaplicada pelo tribunal recorrido, não lhe cabendo pronunciar-se sobre se a mesma havia ou não sido revogada em 1991 pelo decreto-lei preambular que aprovou o Código de Processo Tributário. Essa questão de direito ordinário foi resolvida pela decisão recorrida e é no quadro de resultado desse juízo de vigência da norma, depois desaplicada com fundamento em inconstitucionalidade, que tem de mover-se este Tribunal.
6. Como se refere no acórdão recorrido, a propósito da norma do art. 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, teve já ocasião o Tribunal Constitucional, através da sua 2ª Secção, de se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma, sendo certo que também ela conferia uma situação de privilégio processual à Caixa Geral de Depósitos (acórdão nº 516/93).
Estava então em causa a anulação de uma venda executiva pela Caixa Geral de Depósitos, estatuindo a norma referida que o despacho que ordenasse a venda em processo em que esta instituição fosse exequente ou reclamante ser-lhe-ia 'sempre notificado, e a falta dessa notificação' importaria a anulação da mesma venda. Ora, tal determinação não considerava que o art. 4º do Decreto-Lei nº 33276 já impunha ao Ministério Público deveres de comunicação à Caixa da realização da diligência para venda, impondo mesmo certas obrigações ao juiz de fiscalização da realização dessas notificações. Por outro lado, ocorria uma situação de desigualdade entre a posição da Caixa e a de outros credores exequentes ou reclamantes:
'A diferença mais relevante é, pois, a seguinte: a Caixa, para obter a anulação da venda, dispõe, em princípio, do prazo de um ano (cfr. artigo 287º do Código Civil); qualquer outro credor hipotecário que não tenha assistido à praça apenas dispõe, em regra, do prazo de cinco dias contados da data da primeira notificação que, na execução, lhe for feita após a realização da praça (e, assim, da venda): cfr. os citados artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil.
Ora, não se descobre fundamento material para uma tal diferença de regimes - uma diferença que se traduz em dispor a Caixa de um prazo razoável para exercer o direito de fazer anular a venda, enquanto que os demais credores, a quem se aplique esse regime, dispõem de um prazo curto para o efeito'. (in Diário da República, II Serie, nº 15, de 19 de Janeiro de 1994).
7. No caso sub judicio, e como resulta do relatório da presente decisão, a Caixa Geral de Depósitos não se conformou com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida em apenso a uma execução fiscal em que era exequente mas, em vez de interpor o recurso no prazo normal de oito dias a contar da notificação da própria sentença, pretendeu fazê-lo em prazo subsequente, isto é, contado a partir apenas da notificação
àquela entidade de conta de liquidação, para tal utilizando o privilégio concedido por legislação editada apenas para a Caixa Geral de Depósitos (art.
5º, §º único, do referido Decreto-Lei nº 33276). A verdade é que a Caixa Geral de Depósitos havia sido notificada dessa sentença anteriormente (em 12 de Novembro de 1991; a interposição do recurso só se deu em 9 de Janeiro do ano subsequente).
Como se refere com detalhe nas alegações da entidade recorrente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido que, embora não autonomamente consagrados na Constituição para os processos sem natureza criminal, 'os princípios da igualdade das partes e do contraditório possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do Estado de direito [...]. Por outro lado, aqueles princípios processuais constituem directas emanações do princípio da igualdade. Assim, a sua hipotética violação consubstancia, naturalmente, uma inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2º e 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa' (acórdão nº
62/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º volume, págs. 158-159; cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, págs. 55 e segs.).
8. Ora, é seguro que, no presente, não têm qualquer fundamento racional certos privilégios conferidos por legislação especial à Caixa Geral de Depósitos, em termos de destruir o equilíbrio, na execução fiscal, do princípio da igualdade das partes, na sua vertente de igualdade processual das partes (ou de igualdade de armas). Não pode deixar de concordar-se com o que se escreve nas alegações da entidade recorrente:
'No caso dos autos, verifica-se que a norma desaplicada na decisão recorrida e questionada no presente recurso atribui efectivamente uma prerrogativa processual à Caixa Geral de Depósitos, na medida em que inibe, quanto a ela, o normal trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, permitindo-lhe ainda impugná-la em prazo contado da notificação do acto da secretaria que lhe dá execução - e sendo certo que as restantes partes na acção executiva [...] apenas podem reagir contra tal decisão nos termos gerais, e portanto em prazo contado da respectiva prolação e notificação.
Ora, afigura-se efectivamente - em conformidade com o decidido no acórdão recorrido - que tal ampliação do prazo de eventual impugnação da sentença de verificação e graduação de créditos carece de fundamento material bastante, não podendo, designadamente, justificar-se em função da natureza daquela instituição ou da especificidade das funções que lhe estavam cometidas' (a fls. 133-134 dos autos).
De facto, se é verdade que o Tribunal Constitucional tem admitido que a natureza de instituto público da Caixa Geral de Depósitos - que esta instituição manteve até 1993 - pode justificar a manutenção de certos regimes especiais (privilégio de foro para cobrança dos seus créditos, através dos tribunais fiscais, situação que foi considerada conforme à Constituição por diferentes acórdãos deste Tribunal, nomeadamente pelos acórdãos nºs. 371/94, 372/94 e 417/94, os dois primeiros publicados no Diário da República, II Série, nº 204, de 3 de Setembro de 1994, e nº 207, de 7 do mesmo mês, ano, respectivamente e o último inédito), a verdade é que os fins de interesse público não podem constituir fundamento de normas que conferem privilégios processuais à mesma Caixa Geral, em termos de postergação do princípio de igualdade das partes, sem que se consiga vislumbrar hoje qualquer fundamento material para o regime excepcional.
9. Daí a conclusão de que não merece provimento o presente recurso de constitucionalidade.
III
10. Nestes termos e pelas razões referidas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade, julgando-se inconstitucional a norma do § único do art. 5º do Decreto-Lei nº 32.276, de 24 de Novembro de 1943, por violação do disposto nos arts. 13º e 20º, nº 1, da Constituição.
Lisboa, 7 de Maio de 1996 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Luis Nunes de Almeida