ACSTJ de 22-04-2009
Descaracterização de acidente de trabalho Negligência grosseira Factos conclusivos Ilações Violação de regras de segurança
I -Os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção). II - A expressão “inadvertidamente”, utilizada na decisão fáctica quando se relata que o sinistrado “ingeriu inadvertidamente líquido corrosivo -ácido de soldar” traduz uma situação do foro cognitivo-sensorial do sinistrado e reveste a natureza de dado de facto, sendo, como tal, passível de ser objecto de instrução e prova. III - A negligência grosseira a que alude o art. 7.º, n.º 1, al. b) da LAT/97 e o n.º 2 do art.º 8º do RLAT traduz um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade. IV - O STJ, dados os seus limitados poderes em matéria de facto, constantes dos art.ºs 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2 do CPC, não pode censurar as ilações de facto tiradas pela Relação, contidas no quadro de decorrência lógica da factualidade fixada pelo julgador de facto da 1ª instância. V - .É de concluir que houve negligência grosseira e exclusiva do sinistrado que trabalhava como trolha na reconstrução de uma casa, ao ingerir o líquido que o veio a vitimar, no seguinte quadro de facto: o líquido estava dentro de uma garrafa apropriada, com rotulagem claramente indicativa da perigosidade do respectivo conteúdo (rótulo com uma caveira desenhada, bem como dizeres relativos à perigosidade do seu conteúdo); a garrafa encontrava-se dentro de um espaço fechado (armário na cozinha); o sinistrado sabia ler e até pelo próprio cheiro, se detectava o conteúdo e perigosidade do líquido. VI - Tratou-se de um acto voluntário que, no contexto apurado, teve na base uma situação de clamorosa desatenção, descuido ou distracção, em que só incorreria alguém extremamente descuidado e negligente. VI - Não tem virtualidade para tornar mais exigente o preenchimento do conceito de “negligência grosseira”, o simples facto provado de o sinistrado ser pessoa que “ingeria bastantes bebidas alcoólicas”, nada consentindo as afirmações de que o empregador disso soubesse, de que o sinistrado se sentisse compelido a beber de qualquer garrafa que lhe parecesse conter uma bebida alcoólica, de que uma garrafa guardada num armário da cozinha fosse por ele apercebida como uma garrafa contendo uma bebida alcoólica, de que estivesse sob o efeito do álcool quando ingeriu o ácido ou de que tinha na ocasião afectada a sua capacidade de discernimento e de entendimento. VII - É vedada ao Supremo a extracção de eventuais presunções decorrentes da factualidade dada como provada, tarefa que está reservada às instâncias, na medida em que, ao fazê-lo, estão a conferir matéria factual que pode ser estabelecida por livre apreciação do julgador. VIII - Não se verifica violação de regras de segurança no trabalho por parte do empregador que levava a efeito a obra de construção civil se o risco estava identificado e havia aviso informador, claro e suficiente, aos trabalhadores que pudessem, por qualquer motivo, vir a entrar em contacto com a garrafa -o líquido corrosivo não se encontrava exposto ou colocado em local facilmente manuseável ou em termos de se poder confundir com instrumento ou material de trabalho utilizável, mas num armário, não estava guardado em garrafa de cerveja ou outra, destinada ao consumo de bebidas alcoólicas ou outro tipo de líquidos bebíveis, que se pudesse confundir com elas e induzir, portanto, o sinistrado em erro sobre o exacto conteúdo da garrafa, mas dentro de uma garrafa com rótulo indicador de que continha líquido perigoso -, não sendo exigível, atento todo o contexto apurado, que o empregador tivesse assumido precauções acrescidas no acondicionamento e guarda do produto.
Recurso n.º 1901/08 -4.ª Secção Mário Pereira (Relator)* Sousa Peixoto Sousa Grandão
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