ACSTJ de 29-04-2009
Âmbito do recurso Motivação do recurso Conclusões da motivação Convite ao aperfeiçoamento Audiência de julgamento Documentação da prova Imperfeição da gravação Irregularidade Princípio da lealdade processual Princípio da proporcionalidade
I -Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, enumerados pelo recorrente com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente referidos (quanto à questão de facto) ou com indicação da regra de direito respeitante à prova ou à matéria controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com enunciação do sentido em que foi aplicada e daquele com que deveria ter sido aplicada. II - Assim, o julgamento em recurso não é o da causa mas o do recurso e tão-só quanto às questões concretamente suscitadas, e nele estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas). III - O objecto do recurso é aquele que é delimitado pelo recorrente na motivação e conclusões. Definidos os contornos do mesmo, não pode o recorrente, em momento posterior, alterar o objecto do recurso visando uma finalidade diversa, pois que a admissão de tal tipo de comportamento equivaleria a uma duplicação de recursos. IV - Tendo o recorrente sido convidado a esclarecer as conclusões que primitivamente formulou, só estas e os esclarecimentos posteriores que sobre as mesmas incidiram podem ser objecto do recurso. V - São actos processuais distintos a audiência de julgamento e a documentação desta e, consequentemente, o facto de esta sofrer de determinada patologia não afecta necessariamente a regularidade daquela. VI - A imperfeição da gravação realizada, não integrando o capítulo das nulidades referidas na lei, constitui irregularidade, pelo que deverá ser invocada nos termos do n.º 1 do art. 123.º do CPP: esta é não só a posição que tem sustentação teórica como aquela que este Supremo Tribunal erigiu como a mais correcta em termos de orientação e uniformização jurisprudencial – cf. Ac. n.º 5/2002, de 27-06. VII - Tal questão não é um mero exercício teórico mas tem séria relevância em termos práticos, pois que se o acto inválido é a imperfeita, ou nula, documentação das declarações prestadas em audiência e se a regularidade desta não é afectada, então a reparação do vício não pode omitir a prova prestada na mesma audiência. Dito por outra forma, se o depoimento de uma testemunha não ficou devidamente gravado a sua repetição não se destina à prestação de um depoimento ex novo mas sim a renovar, tanto quanto possível, o previamente prestado em audiência de julgamento. VIII - É nessa perspectiva circunscrita que deve ser interpretado o único diploma legal publicado sobre gravação da prova – DL 39/95 – quando dispõe que, se em qualquer momento se verificar que foi omitida parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade. Se este último requisito não se verificar não há lugar a repetição. IX - Uma tal interpretação está de acordo com a teleologia do processo penal, não significando uma menor preocupação com a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias individuais, sobretudo quando o processo, como é o nosso caso, tem estrutura acusatória e atribui aos diversos sujeitos processuais amplos poderes de conformação e fiscalização. X - Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» – cf. Ac. n.º 429/95 do TC. XI - Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência. XII - E não se argumente com razões gongóricas de impossibilidade burocrática, uma vez que, realizada a respectiva diligência, impende sobre o tribunal que efectuou o registo a obrigação de facultar cópia no prazo máximo de oito dias após a realização daquele – art. 7.º do aludido DL. XIII - Por último, seria ofensivo do princípio da proporcionalidade o facto de, a pretexto de uma fracção milimétrica da gravação, cuja relevância nem sequer é averiguada, se anular um julgamento realizado com observância de todas as formalidades legais e com a possibilidade do mais amplo exercício dos direitos de defesa e do contraditório.
Proc. n.º 77/00.9GAMUR.S1 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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