Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 22-04-2009
 Fundamentação Exame crítico das provas Intenção de matar Matéria de facto Admissibilidade de recurso Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Erro de julgamento Legítima defesa Animus defendendi Excesso de legítima defesa
I -A fundamentação não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença. É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto.
II - «... Estes motivos de facto que fundamentam a decisão, não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados.» III -«A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º-2. E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade...» – cf. Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229-230.
IV - A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção. E a indicação das provas que serviram para formar a convicção apenas é obrigatória na medida do que é necessário – cf. Ac. do STJ de 29-06-1995, CJSTJ, III, tomo 2, pág. 254.
V - O exame crítico das provas, a que faz referência o n.º 2 do art. 374.º do CPP, em sede de fundamentação da sentença, consiste tão-somente na indicação das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal – cf. Ac. do STJ de 24-06-1999, Proc. n.º 457/99 -3.ª, SASTJ, n.º 32, pág. 88. Com efeito, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é de cada um dos juízes e jurados que constituem o colectivo ou júri (art. 365.º, n.º 3, do CPP) – cf. Ac. do STJ de 30-06-1999, Proc. n.º 285/99 -3.ª, SASTJ, n.º 32, pág. 92.
VI - Estando em discussão a determinação da intenção do agente – intenção de matar –, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido – cf. a tal respeito, entre os mais recentes, os Acs. do STJ de 10-10-2007, Proc. n.º 3315/07 -3.ª – [A intenção de matar, enquanto matéria de facto, captada através dos meios de prova que desfilaram perante o tribunal da 1.ª instância, com os quais manteve imediação e oralidade, escapa à sindicância deste STJ]; de 17-01-2008, Proc. n.º 607/07 -5.ª [A intenção de matar é matéria de facto que escapa à censura do STJ enquanto tribunal de revista, pois pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador]; de 03-04-2008, Proc. n.º 132/08 -5.ª; de 12-06-2008, Proc. n.º 1782/08 -3.ª; de 16-10-2008, Proc. n.º 2851/08 -5.ª [O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto]; de 22-10-2008, Proc. n.º 3274/08 -3.ª [Se o recorrente nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído dos poderes do STJ]; e de 21-05-2008, Proc. n.º 678/08 -3.ª.
VII - Na verdade, a reapreciação da decisão sob recurso há-de, como princípio, confinar-se à matéria de direito, salvo se, a título excepcional, se tornar imperativo para o conhecimento da matéria de direito a ampliação da matéria de facto, a correcção de evidentes erros ou a remoção de contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, caso em que este Supremo Tribunal ordena o reenvio – arts. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), e 426.º do CPP.
VIII - Mas, ainda assim, mantendo-se no estrito âmbito da reserva de competência e do indispensável pressuposto de que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, pois a única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, sendo esse reexame feito por iniciativa própria.
IX - O erro de julgamento não é sindicável pelo STJ, uma vez que não se confunde com o vício da decisão. O erro de julgamento da matéria de facto tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP, e existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso.
X - Já os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (in RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
XI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
XII - Quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo deve dirigir o recurso directamente para o STJ se visa exclusivamente o reexame da matéria de direito; porém, se visa também o reexame da matéria de facto, deve dirigi-lo à Relação, caso em que, da decisão desta, se não for irrecorrível nos termos do art. 400.º do CPP, poderá recorrer para o STJ. Só que, nesta última hipótese, o recurso, agora restrito à matéria de direito, não pode abranger o conhecimento de eventuais erros das instâncias na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais. Ao interpor recurso directamente para o STJ o arguido aceitou a matéria de facto provada, não podendo questioná-la.
XIII - A ocorrência de legítima defesa leva a que o facto típico não seja punível, porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade – arts. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 32.º do CP.
XIV - A consagração legal da legítima defesa no CP mais não é do que a explicitação do princípio constitucional fixado no art. 21.º da CRP, que estabelece que «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública».
XV - A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve nunca recuar ou ceder perante a ilicitude.
XVI - Independentemente das dúvidas que possam existir sobre a questão de saber que bens ou interesses estritamente individuais é que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, todos concordam que ali se incluem a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património (neste sentido, cf. Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318).
XVII - Constitui legítima defesa, nos termos do art. 32.º do CP, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime –, actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem «limites imanentes» – a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.
XVIII - São, pois, pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi (a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima). São requisitos da agressão: a ilegalidade (no sentido de o seu autor não ter o direito de a praticar, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou tratar-se de um inimputável), a actualidade (no sentido de se estar a realizar, em desenvolvimento ou iminente; a agressão inicia-se – já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico-penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa) e a falta de provocação; e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.
XIX - A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cf. Ac. do STJ de 18-12-1996, Proc. n.º 115/96 -3.ª.
XX - Sendo um dos elementos constitutivos da legítima defesa a circunstância de o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa, não se verifica aquela causa de exclusão da ilicitude quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o ofendido – cf. Ac. do STJ de 16-04-1997, Proc. n.º 1255/96 -3.ª, SASTJ, n.º 10, Abril de 1997, pág. 97.
XXI - Destinando-se a legítima defesa apenas a impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão. Como refere Maia Gonçalves (in CP anotado, pág. 167), «Não pode porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa. Assim entende a doutrina autorizada – cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, pág. 396-397, havendo também jurisprudência neste sentido». XXII -Por meio utilizado deve entender-se não só o instrumento, objecto ou arma, mas também o próprio tipo de defesa. Por isso, para se averiguar da adequação do meio de defesa, deve ter-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso (designadamente o bem ou interesse agredido, o tipo e intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade física do agressor, a capacidade física do agredido e os meios de defesa disponíveis). Trata-se de um juízo objectivo, segundo o exame das circunstâncias concretas de cada caso, feito por um homem médio colocado na situação do agredido. XXIII -Como se refere no Ac. deste Supremo Tribunal de 19-07-2006, Proc. n.º 1932/06 -3.ª, «O juízo sobre a adequação da defesa e dos meios de defesa, é um juízo objectivo e ex ante, no sentido de que o juiz se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes». XXIV -Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido. XXV -Relativamente ao elemento subjectivo (o animus defendendi), entendemos – com grande parte da doutrina e da jurisprudência – ser exigível o intuito ou a vontade de defesa por parte do defendente (embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, p. ex. indignação, vingança e ódio – v.g. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 46; Leal Henriques/Simas Santos, CP anotado, pág. 335; e Acs. do STJ proferidos nos Procs. n.ºs 41982, 42682 e 42837 in www.dgsi.pt). Porém, parte da doutrina entende que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da situação de legítima defesa, ou seja, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação. Assim, face a uma agressão actual e ilícita, deve ter-se por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa – cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318; Cavaleiro de Ferreira e Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, 1990, pág. 611. XXVI -A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser resultante de factos objectivos que a indiciem, tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira. XXVII -Por outro lado, não haverá causa de exclusão por ilicitude, segundo o disposto no art. 32.º do CP, no caso do agente fraudulentamente se ter colocado na situação objectiva de legítima defesa mediante provocação deliberada e tendo desencadeado o ataque neste sentido. XXVIII -O excesso de legítima defesa consiste na verificação de uma acção que, pressuposta uma situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão. Assim, desde logo, para que haja excesso de legítima defesa têm de se verificar os requisitos da legítima defesa.
Proc. n.º 303/06.0GEVFX.S1 -3.ª Secção Fernando Fróis (relator) Henriques Gaspar