Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 12-03-2009
 Acidente de viação Atropelamento Pedido de indemnização civil Indemnização Danos não patrimoniais Culpa Morte
I -O princípio-regra [em matéria de responsabilidade por factos ilícitos] vem enunciado no art. 483.º do CC: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Tratando-se de danos não patrimoniais, rege o art. 496.º do mesmo diploma legal, que dispõe no seu n.º 1 que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º (…)”. Este manda atender ao grau de culpa – havendo, por consequência, que ter em conta a forma de culpa (dolosa ou negligente) –, à situação económica do lesante e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
II - No caso presente [em que a recorrente foi embatida por um veículo quando atravessava uma passadeira, estando sinal verde para peões], as consequências relevantes, em termos de danos não patrimoniais, a atender são as seguintes: -como consequência necessária e directa do embate, a assistente recebeu tratamento médico no serviço de urgência do Hospital de S…, onde ficou internada até ao dia seguinte; -daí foi transferida para o hospital da área da sua residência, porque este assegurava o nível de cuidados requeridos, onde ficou internada durante cerca de um mês e meio; -as lesões físicas sofridas com o atropelamento, projecção e posterior queda determinaram à assistente um período de incapacidade temporária total de 52 dias, de incapacidade geral parcial de 490 dias, e de incapacidade profissional total de 542 dias; -as lesões físicas sofridas consolidaram-se em 06-12-2004; -a assistente ficou portadora de sequelas anátomo-funcionais que lhe conferem uma IPP fixável em 35%; -apresenta limitação moderada dos movimentos de flexão e abdução da anca, e discreta do movimento de flexão do joelho à esquerda; -as vértebras cervicais da assistente fracturadas como consequência do embate encontram-se consolidadas, inexistindo complicações neurológicas ou ortopédicas passíveis de correcção cirúrgica; -esta incapacidade é impeditiva do cabal exercício da profissão de ajudante de cozinha, sendo contudo compatível com outras profissões na área da sua preparação técnico-profissional; -a assistente ficou também a padecer de um dano estético permanente qualificável como médio; -como consequência necessária e directa do embate, a assistente sofreu dores intensas no seu corpo; -presentemente, locomove-se autonomamente, sem apoio, embora claudicando; -no plano psicológico, a assistente ficou profundamente afectada; -passou a ter medo de atravessar a estrada, treme perante a aproximação de um automóvel, grita e fica descontrolada quando ouve algum ruído de travagem; -a assistente necessita de ajuda quotidiana para a realização de algumas tarefas básicas, tão-só limitada a algumas horas por dia; -é admissível que, com a idade, se agravem as queixas álgicas da assistente; -a assistente deixou de poder levantar pesos; -irá padecer sempre de fortes dores na bacia, na coluna, na cervical, na perna esquerda, nos braços e punhos esquerdo e direito; -terá muitas dificuldades em permanecer de pé, sentada ou até mesmo deitada; -a assistente no futuro necessitará de tratamentos médicos e medicamentosos regulares.
III - As consequências sofridas pela recorrente, no que se refere aos padecimentos que suportou, o quantum doloris de intensidade assinalável, as sequelas, que configuram um quadro Número 135 -Março de 2009 bastante pesado e duradouro para a recorrente, em termos de afectação na capacidade de trabalho, de achaques físicos de que ficará a sofrer, com agravamento de intensidade à medida que a idade avança e limitando drasticamente as suas possibilidades de bem-estar nas mais diversas situações, quer esteja de pé, quer sentada, quer deitada, perda de autonomia no que se refere à satisfação de certas necessidades, precisando do auxílio de uma terceira pessoa, tratamentos a que terá de se sujeitar no futuro, bem como necessidade de recorrer a assistência médica e medicamentosa, desgostos que tal situação inevitavelmente lhe provoca, que a marcarão para sempre como uma sombra, medos patológicos que compreensivelmente se apossaram dela e que deixarão o seu rasto indelével, tudo isto ainda acrescido do dano estético permanente, considerado de grau médio, enfim, a idade da recorrente, sendo muito robusta e saudável até essa altura, tudo isso não se afigura compensável com a indemnização [de € 40 000] arbitrada [pelo Tribunal da Relação].
IV - Haverá ainda que considerar que a recorrente atravessou a passadeira quando estava o sinal verde para peões, que tinha a travessia quase concluída quando foi violentamente embatida e que tal circunstancialismo configura uma culpa acentuada (grave) por parte do condutor do veículo. Aliás, conforme resulta da factualidade provada, esse condutor previu como possível causar perigo à circulação rodoviária e pôr em causa a integridade física alheia, embora não se conformasse com tal hipótese. Para além disso, a situação económica da recorrente é débil, trabalhando à altura do acidente como cozinheira e auferindo por mês cerca de € 350, desconhecendo-se a situação económica do condutor do veículo, que não se provou ser o proprietário do mesmo. Certo é que a responsabilidade pelos prejuízos causados a terceiros com a circulação do veículo tinha sido transferida para a Companhia de Seguros demandada, sem limite de capital.
V - Tendo presente todo este circunstancialismo, reputa-se como mais ajustada a indemnização de € 100 000.
VI - É certo que, nas indemnizações por morte, os quantitativos fixados para o dano “morte” por este Tribunal situam-se entre € 50 000 e € 60 000. Todavia, as consequências, neste caso são muito graves, do ponto de vista de uma pessoa ainda muito jovem, que ficará a sofrer, previsivelmente por largos anos, os estragos causados na sua saúde física, mental, na sua vida profissional, social e familiar e ainda na sua capacidade para gozar a vida, sendo certo que esse é um bem indeclinável de todo o ser humano. Estas consequências funestas não as sofre, por regra, a vítima de um acidente que morre em consequência dele. Perde a vida, é certo, o bem mais precioso que um indivíduo possui, como se costuma dizer, mas, perdendo-a, deixa de sofrer esses males e de ser atormentada uma vida inteira por eles. Por isso, pode justificar-se uma indemnização mais elevada para situações como a que curamos nestes autos.
VII - Não vigora no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma positiva ou princípio jurídico que, no âmbito dos danos não patrimoniais, impeça a atribuição duma compensação ao lesado sobrevivente superior ao máximo daquela que habitualmente tem sido atribuída pelo STJ para indemnizar o dano da morte.
VIII - Isso pode suceder quando, tendo em conta o art. 496.º, n.º 1, do CC, a perda da qualidade de vida do lesado atinja um patamar excepcionalmente elevado, expresso nas dores, sofrimentos físicos e morais e limitações de vária natureza a que tiver ficado sujeito para o resto da vida em consequência do acto lesivo.
Proc. n.º 3635/08 -5.ª Secção Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor