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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 25-03-2009
 Competência do Supremo Tribunal de Justiça Alteração da qualificação jurídica Reformatio in pejus Comunicação ao arguido Princípio do contraditório Burla tributária Execução continuada Consumação
I-A vexata quaestio da alteração do enquadramento jurídico da conduta imputada ao arguido em figura criminal mais grave e da consequente necessidade ou não de dar conhecimento ao arguido de tal modificação culminou, em termos jurisprudenciais, com a prolação do “Assento” n.º 3/2000, de 15-12-1999 (Proc. n.º 43073, DR Série I-A, n.º 35, de 11-022000), que reformulou o “Assento” n.º 2/93, de 27-01-92, fixando a seguinte doutrina: «Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do respectivo enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para o que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa».
II - É nesta linha que se situa a alteração introduzida ao processo penal pela Lei 48/2007, de 29-08, estabelecendo o n.º 3 do art. 424.º do CPP que «Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias».
III - Este normativo tem aplicação no caso de o tribunal verificar, por iniciativa própria, que, face aos factos provados, o enquadramento jurídico-criminal se deve fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa – a exemplo do que ocorre no processo civil com o art. 3.º do CPC, mas aqui com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e de garantias de defesa constitucionalmente acauteladas –, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação.
IV - Assim, nada impede este Supremo Tribunal de indagar, por iniciativa própria, da correcção da subsunção jurídica efectuada no acórdão em reexame, com ressalva dos limites decorrentes do princípio da proibição de reformatio in pejus.
V - Todavia, importa conciliar esta liberdade de procurar o correcto enquadramento jurídico-criminal com as garantias de defesa, daí emergindo um dever de prevenção: o de comunicação ao arguido da possível nova qualificação, de modo a propiciar o exercício do contraditório.
VI - Por isso, o dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido (v.g., se, como ocorre no caso presente, a alteração resulta da posição do MP expressa nas conclusões do recurso, pois que os arguidos foram oportunamente notificados para responder, podendo, então, tomar posição) – cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1164.
VII - A burla tributária é um novo tipo de crime criado em 2001, e encontra-se previsto no art. 87.º da Lei 15/2001, de 05-06-2001 [diploma que sofreu várias alterações ao longo dos anos: Declaração de Rectificação n.º 15/2001, in DR, Série I-A, n.º 180, de 04-08-2001, Lei 109-B/2001, de 27-12-2001 (art. 51.º), DL 229/2002, de 31-10 (art. 3.º), Lei 107B/2003, de 31-12 (art. 45.º), Lei 55-B/2004, de 30-12 (art. 42.º), Lei 39-A/2005, de 29-07 (art. 19.º), Lei 60-A/2005, de 30-12 (art. 60.º), Lei 53-A/2006, de 29-12 (arts. 95.º e 96.º), Lei 22-A/2007, de 29-06 (arts. 8.º e 9.º), DL 307-A/2007, de 31-08 (art. 3.º), Lei 67A/2007, DR I-A, Suplemento, de 31-12-2007 (arts. 86.º e 87.º), e Lei 64-A/2008, DR I-A, Suplemento, de 31-12-2008 (arts. 113.º, 114.º e 115.º)].
VIII - Tendo em consideração que: -o diploma em causa (RGIT) – como resulta do seu art. 14.º – entrou em vigor em 05-072001; -o anterior RJIFNA, revogado pela Lei 15/2001 (à excepção do seu art. 58.º), não continha disposição paralela ao art. 87.º do RGIT, não se prevendo então a incriminação por burla tributária; -a execução continuada de uma determinada actividade não pode ter por efeito a incriminação de uma conduta que não estava prevista como integrante de crime antes da entrada em vigor da lei incriminadora; dúvidas não haverá de que, caso os arguidos tivessem cessado a actividade em 04-07-2001, não teriam cometido o crime de burla tributária, que só surge no universo dos crimes, como tal, no dia seguinte – em causa está a observância do princípio da legalidade vazado no art. 1.º, n.º 1, do CP [Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática], que tem como corolário o princípio da não retroactividade da lei penal, expresso no art. 2.º, n.º 1, do mesmo Código [As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem], de que é reflexo, no âmbito da criminalidade tributária, aduaneira e fiscal, o disposto no art. 2.º, n.º 1, do RGIT [Constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior].
IX - Porém, estando demonstrado que a actividade dos arguidos se prolongou de 1999 até 1803-2003, altura em que foram detidos, importa apurar se a conduta posterior a 05-07-2001 integra o crime de burla tributária, e se na forma qualificada, tema que remete para a questão do momento da consumação do crime.
X - Em consonância com o que dispõe o art. 3.º do CP, estabelece o art. 5.º, n.º 1, do RGIT que «As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3.» XI -Ponderando que: -os arguidos JN, SN, HM e PV – considerando apenas as quantias recebidas com base em declarações feitas em plena vigência do RGIT, ou seja, após 05-07-2001 – viram depositado nas contas ou recebido por outros meios o valor global de € 29 805,58; -no caso em apreço não existia uma relação tributária, uma relação Estado/contribuinte, não estando em causa o Estado enquanto credor tributário, uma vez que os arguidos ficcionaram, encenaram, a existência de relações tributárias entre o Estado e terceiros e, por meio da falsificação de declarações de IRS, conseguiram enriquecimento dos seus patrimónios, através de “reembolsos” que apenas nominalmente o eram [o reembolso supõe uma relação tributária verdadeira, em que o sujeito passivo pagou a mais e após a liquidação do imposto tem direito a reposição, a devolução do que a mais do devido entregara]; -o dano para o fisco apenas surge quando se efectiva a indevida atribuição patrimonial de que vai resultar o enriquecimento ilegítimo do agente [a burla não se consuma com a mera subscrição ou preenchimento dos impressos modelo de declaração de IRS, nem com a entrega dos mesmos nas repartições da administração fiscal, mas com a efectivação dos “reembolsos”, com a concretização da ordem de pagamento emitida pela administração tributária, mediante as transferências directas dos montantes apurados como devidos a esse título para as contas movimentadas pelos arguidos, ou com o recebimento das quantias tituladas pelos cheques do Tesouro]. Em caso de algum modo paralelo, o STJ firmou jurisprudência, no Ac. n.º 2/2006, de 23-11-2005 (Proc. n.º 603/03 -3ª, DR Série IA, n.º 3, de 04-01-2006), no sentido de que o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no art. 36.º do DL 28/84, de 20-01, se consuma com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente; -trata-se de um crime de resultado, consumando-se com a lesão efectiva do património público, com a produção do resultado lesivo, no momento em que a administração tributária opera a transferência para a conta ou é emitido e entregue o cheque do Tesouro, no cumprimento de uma suposta obrigação de reembolso que verdadeiramente inexiste [não sendo, por isso de contabilizar os variados casos em que, tendo os arguidos procedido da forma usual, com o preenchimento de modelos de declarações de IRS, completando o “iter criminis” naquilo que deles dependia, por suspeitas suscitadas na entidade receptora, foram as declarações encaminhadas para os serviços de inspecção e ordenado o não pagamento de qualquer quantia a título de reembolso]; é de integrar a conduta dos arguidos, como co-autores, do crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo n.º 3 do art. 87.º do RGIT, atento o valor consideravelmente elevado por estes alcançado (a UC para o triénio 2001 a 2003 era de € 79,81, sendo que a 200 UC correspondiam € 15 962).
Proc. n.º 314/09 -3.ª Secção Raul Borges (relator) Fernando Fróis Henriques Gaspar Armindo Monteiro