ACSTJ de 25-03-2009
Crime continuado Bens eminentemente pessoais Culpa Abuso sexual de crianças Concurso de infracções
I -A alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ao art. 30.º do CP, acrescentando-lhe o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa, corresponde ao n.º 2 do art. 33.º do Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, e foi discutida na 13.ª sessão da comissão de revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada. II - Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que seria desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, na natureza das coisas – cf. Maia Gonçalves, in Código Penal anotado. III - A alteração introduzida é, pois, pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ, ou seja, a de que, quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstânciasexteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem. IV - Esse aditamento não permite, assim, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito. V - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. VI - São circunstâncias exteriores que apontam para a redução de culpa que é pressuposto do crime continuado: -o facto de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos (veja-se o caso de violação a que se seguem relações de sexo consentido); -o facto de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; -a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; -o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa. VII - Vindo provado que: -a ofendida L, que nasceu em 27-02-1990, é surda-muda, e foi confiada à guarda da Casa Pia de Lisboa, ficando colocada no Instituto J…, visitando com regularidade mensal ou quinzenal o pai, ora arguido, passando com ele os fins-de-semana; -entre 1999 e 2004, o arguido, pelo menos 7 vezes, deitou-se com a sua filha L, introduzindo o pénis na sua vagina até aí ejacular, apresentando, ao exame ginecológico, sinais de cópula vaginal não recente, nomeadamente «hímen em crescente de altura com cerca de 3 mm com entalhe às três horas e laceração não recente às sete horas e ostíolo himenial permeável», ou seja, sinais orgânicos de desfloramento; -o arguido sempre exigiu à filha que não contasse a ninguém o sucedido; estes descritos actos de cópula completa mostram um nítido aproveitamento do arguido da menor, sua filha, quando esta passava curtos períodos na sua casa paterna, para satisfazer o seu desejo sexual, que a relação de parentesco e a inferioridade física da jovem – surda-muda – não serviram de contramotivação aos seus instintos libidinosos, estando longe de se perfilar um conjunto de circunstâncias exteriores ao agente diminuindo-lhe a culpa; pelo contrário, essa prática parte de um acto que lhe é próprio, qual seja o de acolhimento da menor na sua casa, ao abrigo dos deveres de assistência que lhe são impostos legalmente (art. 1878.º do CC) e da ascendência que, naturalmente, tinha sobre aquela. VIII - E quando se prove que «a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado» – cf. Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 251). IX - A ser diferentemente ter-se-ia que entender, raiando o absurdo, que os pais que abusam sexualmente dos seus filhos veriam a sua responsabilidade criminal atenuada e os seus próprios filhos seriam concorrentes na prática do crime, através de uma vontade que a lei não releva, numa lógica desmentida pela própria lei ao agravar, no art. 177.º, n.º 1, al. a), do CP, na redacção anterior à trazida pela Lei 59/2007, de 04-09, esse procedimento. X - Por isso, os factos descritos repercutem, à face da lei penal, a prática de 7 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, e não um único crime, na forma continuada.
Proc. n.º 490/09 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
|