Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 19-03-2009
 Fundamentação Exame crítico das provas Roubo Sequestro Rapto Extorsão Concurso de infracções Concurso aparente Non bis in idem Pena única Pluriocasionalidade
I -A motivação é condição de fiabilidade das decisões, devendo enunciar, de modo racional e crítico, a carga probatória que suportou o julgamento da matéria de facto, nomeadamente qual a precisa razão de ciência em que assentou certa prova (oral, documental ou pericial), em detrimento de outra, mormente a que foi apresentada pela defesa, ao menos para se aquilatar que o tribunal não teve qualquer dúvida insanável sobre os factos descritos na acusação ou pronúncia – cf. Correia Gomes, A Motivação em Processo Penal e as Garantias Constitucionais, in Rev. Julgar, n.º 6, pág. 92.
II - O exame crítico das provas encerra um esforço tendencialmente de convicção sobre a razão porque certas provas são aceitáveis aos olhos do julgador e outras merecem o seu repúdio, juízo de que se não abdica em caso de impugnação da matéria de facto.
III - Esse exame crítico das provas é um direito do recorrente na correcção de julgamento que pede à 2.ª instancia com base nas provas anteproduzidas em audiência, em que, verdadeiramente, não está em jogo a discussão do princípio da livre convicção probatória – cf. Damião da Cunha, Caso Julgado Parcial, UCP, 2002, págs. 547-551.
IV - A motivação em todas as suas vertentes é condição de fiabilidade de uma decisão e passa por uma exposição objectiva e clara, pela promoção da sua aceitação e compreensão, por uma valoração crítica e racional, como se decidiu nos Acs. do TC n.ºs 401/02 e 546/98 (in Acs. do TC, vol. 3).
V - A base argumentativa em que se apoia a decisão judicial exige cada vez mais que por ela se explique o seu conteúdo às partes, ao público em geral, que espera dos tribunais decisões claras e credíveis, e faculte ao tribunal superior um seu reexame, ou seja, ela deve apresentar-se como uma decisão “correcta, possível, adequada ao ordenamento jurídico e ao contributo efectivo que as partes deram para o delinear do caminho que conduziu a ela” – cf. rev. cit., pág. 75.
VI - O crime de roubo p. e p. pelo art. 210.º do CP é um crime complexo, composto por elementos em que concorrem o crime de furto agravado e simples – a vertente patrimonial do ilícito – e a sua particular componente pessoal, preponderante no tipo, sob a forma de violência – física ou psíquica –, ofensa à integridade física e impossibilidade de resistir por parte do ofendido, elementos esses numa relação de consunção, pela especialidade, constituinte da agravação punitiva face ao delito patrimonial.
VII - O crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1, do CP é um crime de execução livre e permanente, cessando com a restituição da vítima à liberdade, admitindo qualquer meio adequado à privação da liberdade ambulatória, que deve ser absoluta, não bastando que seja dificultada, sendo o bem jurídico que visa proteger a liberdade de movimentos de outra pessoa, no sentido mais amplo de liberdade de deslocação actual potencial ou de auto ou heterolocomoção.
VIII - O rapto distingue-se deste ilícito por se traduzir numa acção de subtracção e transferência não consentida de uma pessoa para outro lado, ficando a vítima sob o domínio fáctico de outrem – cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 428.
IX - Este ilícito é de execução vinculada, só podendo ser cometido através das acções enunciadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 161.º do CP – violência, ameaça ou astúcia –, intercedendo entre ele e o sequestro uma relação de especialidade: o rapto é um crime especial de sequestro, pelo que em concurso aquele afasta este, por força da lex specialis derrogat lex generalis – cf. Actas CP, Figueiredo Dias, 1993, pág. 241, e Ac. do STJ de 3004-1997 (CJSTJ, V, tomo 2, pág. 189).
X - Basta o dolo genérico no sequestro, mas não se prescinde de um dolo específico no rapto (art. 161.º, n.º 1, do CP), crime cortado em que o tipo subjectivo contém uma intenção de realização de um resultado que não faz parte do tipo objectivo mas que é provocado por uma acção ulterior a praticar pelo agente ou terceiro.
XI - Na extorsão p. e p. pelo art. 223.º do CP pressupõe-se o constrangimento de outra pessoa, por meio de violência e ameaça de um mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou outrem, prejuízo. A acção típica deve ser adequada à prática da disposição patrimonial, devendo nesse juízo de adequação ser ponderadas as características físicas e psíquicas da pessoa vítima do constrangimento do agente e do crime – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, págs. 613-614. Nele cabe toda a ameaça de um mal suficiente para vergar o homem médio – Ac. do STJ de 06-05-98, CJSTJ, VI, tomo 2, pág. 197.
XII - Entre o crime de extorsão tentado (crime-fim) e o de rapto (crime-meio) há um concurso aparente de infracções, na medida em que o conteúdo criminal do art. 161.º, n.º 1, al. a), do CP, ao aludir ao rapto com fim de extorsão, absorve, consome, objectiva e subjectivamente, aquele outro, punindo o agente extorsionário de forma mais gravosa; a extorsão perde, então, autonomia.
XIII - De contrário verificar-se-ia a ofensa ao princípio non bis in idem – cf. Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 140; em sentido contrário Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, para quem, sem ser inconciliável o concurso efectivo, real, de infracções entre a tentativa de extorsão e o rapto, a punição, de um ponto de vista de política criminal, fica assegurada mais eficazmente pelo recurso à punição estabelecida para o rapto.
XIV - No concurso de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse contemporaneamente com a sentença todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projectando-o retroactivamente.
XV - A fundamentação da pena de conjunto – sanção determinada dentro da moldura penal abstracta da pena de concurso – faz nascer uma pena que, sem as apagar, não se reconduz à soma aritmética de todas as penas parcelares, e é o produto de uma culpa pelos factos na sua globalidade, pelos factos em relação, como que uma nova culpa, por um ilícito com a marca da globalidade na valoração, em conjunto, dos factos e da personalidade.
XVI - Na consideração dos conjunto dos factos está presente uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em apreço a conexão e o tipo de conexões entre os factos; na consideração da personalidade deve aferir-se se os factos representam uma tendência desvaliosa enraizada na personalidade do agente ou, apenas, uma prática acidental pluriocasional, sem origem na personalidade daquele, enquanto substrato de manifestações existenciais em sentido de conformação ou desconformação com o normativismo socialmente imposto.
XVII - Concluindo-se por aquela tendência, a pena do concurso, que se distancia da mera acumulação material de penas, será exacerbada; no caso contrário será mitigada – cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime.
XVIII - No aspecto da personalidade do agente não pode deixar de se ponderar o grande relevo que deve ter a “análise do efeito previsível da pena sobre o futuro comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”, a consciência crítica do agente para se deixar influenciar pela pena.
XIX - Naquela conexão não se pode abstrair do contexto factual, da sua maior ou menor autonomia, da frequência da sua comissão, da homo ou heretogeneidade dos bens protegidos violados, da forma de comissão, do peso conjunto das circunstâncias do facto sujeitas a julgamento, bem como da receptividade do agente à pena, questão que o concurso deve convocar.
Proc. n.º 381/09 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral