Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 19-03-2009
 Crime continuado Bens eminentemente pessoais Culpa Abuso sexual de crianças Concurso de infracções
I -O art. 30.º do CP fundamentou-se no art. 33.º do Projecto da Parte Geral do CP de 1963, tendo sido aprovado na 13.ª sessão da comissão revisora, em 08-02-1964, um último período para o n.º 2 donde constava: «A continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima».
II - Diz Maia Gonçalves, em anotação ao art. 30.º no seu Código Penal Português, anotado comentado (18.ª ed., pág. 154, nota 1), que: «A supressão deste período não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. A revisão do Código levada a efeito pelo Dec-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, manteve intacto o texto deste artigo, mas a que foi levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, introduzindo o n.º 3 reproduziu o referido dispositivo que foi rejeitado na versão originária».
III - O aditamento constante deste n.º 3 não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado.
IV - Como se considerou no Ac. deste STJ de 01-10-2008, Proc. n.º 2872/08 -3.ª, a alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
V - Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
VI - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
VII - Vindo provado que: -o arguido tinha perfeito conhecimento da idade de EC, que conhecia desde os 5 ou 6 anos de idade, a partir da altura em que passou a viver maritalmente com a mãe dela; -ao adoptar as condutas descritas, o arguido actuou com intenção de alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com EC, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão; -bem sabia que um relacionamento sexual, nomeadamente desta natureza, prejudicava o normal desenvolvimento da mesma; -o arguido voluntariamente exibiu a EC, nas ocasiões descritas nos autos, filmes com conteúdo pornográfico, bem sabendo que o visionamento por aquela de filmes dessa natureza era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico; -ao sujeitá-la, durante o período descrito, à prática reiterada de actos sexuais, o arguido tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações repetidas provocavam na formação e estruturação da personalidade de EC, prejudicando-a reiterada e voluntariamente no seu normal desenvolvimento físico e psicológico; -os factos ocorreram em situação de convivência e coabitação idêntica à familiar; -a situação familiar ou análoga é modo normal de manifestação da esfera privada das pessoas, de coabitação e de convivência, em espaço comum, e, por isso, não constitui solicitação que deva considerar-se exterior ao agente para a facilidade do sucumbir; -o arguido agiu impulsionado por circunstâncias endógenas, do seu interior, preparando o cenário e pressionando a menor; a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar com a menor e sua mãe, em que lhe era especialmente exigível, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor, com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela sua defesa, dela cuidando e protegendo-a, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais.
VIII - Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, pág. 649), «atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso».
IX - E, como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Código Penal Anotado, pág. 139, nota 28), «A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime».
Proc. n.º 483/09 -3.ª Secção Pires da Graça (relator) Raul Borges