ACSTJ de 19-03-2009
Personalidade borderline Erro notório na apreciação da prova Imputabilidade diminuída Atenuação especial da pena Perigosidade criminal Especial censurabilidade Especial perversidade Culpa Homicídio qualificado Cônjuge Direito a alimentos Maiori
I -O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV-TR) define o transtorno de personalidade “borderline” como «um padrão inerente de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, auto-imagem e afectos e acentuada impulsividade». II - «O quadro engloba algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, mas em geral os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para serem enquadrados em tais classificações. A síndrome “borderline” é, portanto, um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos» (cf. Arch. Gen. Psychiatry, 2001 58(6): 590-596 – The Prevalence of Personality Disorders in a Community Sample – Torgersen Svenn, in www.cienciasecognição.org). III - O mesmo DSM-IV (4.ª ed., XXIII e XXIV), a propósito da utilização do diagnóstico clínico de uma perturbação mental para fins forenses, ensina que «Na maior parte das situações, o diagnóstico clínico de uma perturbação mental…não é suficiente para estabelecer a existência para fins legais de uma «perturbação mental», uma «incapacidade mental», uma «doença mental» ou um «defeito mental». Na determinação de quando um sujeito está dentro de uma determinada norma legal específica (por exemplo, competência, responsabilidade criminal ou incapacidade), é geralmente necessária informação adicional para além da contida no diagnóstico…. Isto pode incluir informação sobre incapacidades funcionais individuais e como estas incapacidades afectam aquelas capacidades particulares postas em questão. É precisamente porque incapacidades, capacidades e diminuições das capacidades variam amplamente dentro de cada categoria diagnóstica que a indicação de um diagnóstico particular não implica um nível específico de diminuição da capacidade ou incapacidade». IV - O facto de o arguido ter uma personalidade de estrutura borderline não significa que, aquando da prática dos factos dados como provados, não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente, pois das características daquele tipo de personalidade, por si só, não resulta sempre e desde logo uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente. V - Daí que inexista qualquer erro notório na apreciação da prova ao considerar-se, por um lado, que o arguido agiu com dolo directo e intenso, sendo a sua actuação reveladora de uma atitude persistente e fria e, por outro, que o mesmo apresenta uma personalidade de estrutura borderline, com característica limite e dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção de pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress. VI - Não estando provados outros factos que o impusessem, o facto de o arguido sofrer daquele “transtorno” de personalidade não implica que o tribunal tivesse de considerar que (aquele) agiu “de forma impulsiva, sem completo domínio da vontade e com perturbação acentuada do comportamento devido à doença de que padece”, para concluir pela existência de uma imputabilidade diminuída. VII - E, como refere Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 77), «não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo, parece, porém, não querer obstar à doutrina – também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado, de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos». VIII - Sendo assim, mesmo que se provasse a existência de imputabilidade diminuída, esta não justificaria uma atenuação especial da pena, face à perigosidade do arguido [que, de acordo com o relatório da perícia, apresenta, ao nível da personalidade, traços ou características anti-sociais, ansiosos, e impulsividade, que determinam uma personalidade de estrutura borderline, com característica limite; denota um fraco investimento no contacto e identificação com os outros, dificuldades relacionais na gestão de conflitos, estabelecendo relações de forma superficial, sendo o modo comum de relacionamento o confronto e a rivalidade, factores estes que comprometem a sua socialização; apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio, e na contenção das pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress] e à especial censurabilidade e perversidade. IX - Aliás, a especial censurabilidade e a especial diminuição da culpa são inconciliáveis – cf., neste sentido, Ac. do STJ de 02-05-1996, Proc. n.º 70/96. X - A nova circunstância qualificativa do homicídio constante da al. b) do n.º 2 do art. 132.º – introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09 – é a relação conjugal ou análoga e justificar-se-á face à evolução legislativa que tem tido em vista as situações de violência doméstica e os maus tratos familiares. XI - Tendo em consideração que: -o arguido e a vítima tinham casado um com o outro em 26-06-1982, ou seja, há mais de 25 anos (à data da prática do crime); -essa relação conjugal de tantos anos impunha ao arguido o especial dever de não ter atitudes violentas para com sua mulher, mãe dos seus dois filhos, com 24 e 16 anos de idade; -o arguido atingiu mortalmente a esposa, no interior da casa de habitação de ambos e dos filhos (casa de morada de família), numa ocasião em que sabia perfeitamente que ambos os filhos ali se encontravam, ciente de que ambos sentiam grande afecto pela mãe; -quando o filho se aproximou dele, após o primeiro tiro, estando já a vítima agonizante, o arguido apontou-lhe a arma, culpando-o do sucedido, após o que desferiu um segundo tiro na vítima; -após este segundo tiro, o arguido ainda disparou mais duas vezes sobre a vítima, tendo, antes disso, perseguido o filho, de arma empunhada; -o filho apercebeu-se de toda a conduta do arguido e do estado da mãe; -o arguido fez os disparos de forma a garantir a morte de sua mulher e mãe dos seus filhos, sendo certo que a filha tinha apenas 15 anos de idade, em formação de personalidade, precisando muito do apoio e carinho da mãe; -o arguido bem sabia que, após o primeiro disparo, a vítima ficou totalmente desprevenida e incapaz de se opor àquele tipo de agressão; é de concluir que a conduta do arguido – que agiu com manifesta superioridade em razão da arma – revela, não só completa insensibilidade, absoluta indiferença e manifesto desprezo e falta de respeito pela vida humana, mas também uma especial censurabilidade e perversidade, verificando-se a agravante qualificativa referida na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP. XII - Sendo sabido que os filhos têm direito a alimentos dos pais, o art. 2013.º do CC, ao elencar as causas de cessação dessa obrigação alimentar, não prevê, como tal, o atingir da maioridade, antes sendo necessário que a cessação daquela obrigação seja ordenada judicialmente. XIII - E, na verdade, a jurisprudência vem entendendo que o facto de o filho atingir a maioridade não determina, por si só, o fim da referida obrigação alimentar. Esta pode e deve manter-se até que o alimentado complete a sua formação e possa autonomamente prover ao seu sustento – isto, naturalmente, dentro de um prazo razoável. XIV - Tem vindo a considerar-se que a idade (média) com que se atinge aquela formação e a capacidade para, autonomamente, prover ao seu sustento, ronda os 25 anos.
Proc. n.º 315/09 -3.ª Secção
Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar
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