ACSTJ de 19-03-2009
Burla Falsificação Concurso de infracções Crime continuado Culpa Vício do jogo Livre apreciação da prova Perícia médico-legal Valor probatório
I -O crime de burla surge como forma de captar o alheio, em que o agente se serve do erro, causado ou mantido, através da sua conduta astuciosa, ou do engano prolongado pela omissão do dever de informar, para, através desta falsa representação da realidade, insidiosamente induzir a vítima a defraudar o seu património ou o de terceiros. II - Tendo em consideração que: -o arguido, funcionário do Banco … (desde 04-02-1985 em várias localidades, e a partir de 02-05-2001 exercendo o cargo de director do balcão de S…), aconselhou e persuadiu vários clientes deste Banco a disponibilizarem/entregarem-lhe as quantias em dinheiro em causa nestes autos com o argumento (que não correspondia à verdade) de que as mesmas iriam ser depositadas em sucursais estrangeiras do Banco, designadamente em Londres e no Luxemburgo, e garantia àqueles clientes do Banco taxas de juro líquidas superiores às praticadas pelos bancos em Portugal; ou seja, mercê de um processo complexo e engenhoso, convenceu vários clientes do Banco … a praticar actos em prejuízo dos seus patrimónios; -desse plano fazia parte não só a indicação (falsa) de uma taxa de juros mais elevada do que a praticada pelos bancos em Portugal, mas também a elaboração/falsificação de vários documentos, alguns em idioma estrangeiro (para convencer os clientes/burlados) dos depósitos das quantias que tinham entregue) e a realização de alguns depósitos em algumas contas de clientes para os convencer dos rendimentos obtidos e a renovar as aplicações; -foi a execução desse plano elaborado minuciosamente pelo arguido que determinou a entrega a este, pelos clientes do banco, de várias quantias monetárias; -está também provada a intenção do arguido de obter um enriquecimento ilegítimo; mostram-se provados os elementos objectivos e subjectivos constitutivos do tipo legal de crime de burla (art. 217.º do CP), integrando também a conduta do arguido a prática, em concurso real, do crime de falsificação de documento (art. 256.º do CP). III - É entendimento mais ou menos pacífico da doutrina e da jurisprudência que os pressupostos essenciais do crime continuado são os seguintes: -realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); -homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); -lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado); -unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção) – as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma “linha psicológica continuada”; -persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. IV - Fundando-se a diminuição da culpa no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição, conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diversa. V - Importante, portanto, será determinar quando existiu um condicionalismo exterior ao agente que facilitou a acção daquele, facilitou a repetição da actividade criminosa (“tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 209) e, por isso, diminui/atenua a respectiva culpa. VI - É que se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa. VII - É esse o entendimento da jurisprudência dominante ao afirmar que inexiste crime continuado – mas concurso de infracções – «quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa» – cf. Acs. do STJ de 10-121997, Proc. n.º 1192/97, de 07-03-2001 e de 12-06-2002, in SASTJ, n.ºs 49 e 62, respectivamente. VIII - Tendo em consideração que, embora da matéria de facto assente resulte que o arguido agiu sempre de forma homogénea e lesou sempre o mesmo bem jurídico, dela também decorre que foi sempre o próprio arguido quem criou as condições necessárias para a prática dos factos/crimes, formulando várias resoluções criminosas, agindo e concretizando-as em função de cada caso concreto, adaptando o modus operandi às circunstâncias específicas dos seus desígnios, sem que qualquer elemento ou factor exterior ou exógeno diminua ou mitigue a sua culpa, inexiste crime continuado. IX - A doença ou patologia do vício do jogo não constitui circunstância exterior ao agente que diminua sensivelmente a sua culpa: tal patologia é atinente à personalidade do próprio arguido, podendo limitar a vontade deste, mas não podendo considerar-se factor exógeno que facilite a continuação ou repetição da actividade criminosa daquele e mitigue a respectiva culpa. X - Em processo penal a regra é a de livre apreciação da prova, como decorre do estatuído no art. 127.º do CPP, onde se estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. XI - Tal princípio não é absoluto e entre as excepções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial. Segundo Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 323), estas excepções integram-se no princípio da prova legal ou tarifada, que é usualmente baseado na segurança e certeza das decisões, consagração de regras de experiência comum e facilidade e celeridade das decisões. XII - A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (art. 388.º do CC). E, de acordo com o art. 151.º do CPP, a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. XIII - A perícia é, assim, a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. XIV - Segundo José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, IV, pág. 161), a função característica da testemunha é narrar o facto e a do perito é avaliar ou valorar o facto, emitir quanto a ele juízo de valor, utilizando a sua cultura e experiência. XV - Nos termos do art. 389.º do CC, a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal e, de acordo com o art. 591.º do CPC, tanto a primeira como a segunda perícias são livremente apreciadas pelo tribunal – a propósito da diferença de regimes entre o processo civil e o penal cf. o Ac. do TC n.º 422/99, de 30-06-1999, in Proc. 698/98, DR, II Série, de 29-11-1999. XVI - Figueiredo Dias, insurgindo-se contra a ideia da absoluta liberdade da apreciação da prova pericial pelo juiz, escreveu em 1974 (in Direito Processual Penal, vol. I, págs. 208209 – idem na reimpressão de 2004) que «…se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer –, já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base do facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal (...)». XVII - Esta orientação veio a ser consagrada no CPP87, estabelecendo o n.º 1 do seu art. 163.º que «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», e acrescentando o n.º 2 que «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência». XVIII - Para Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1999, II, pág. 178) «a presunção que o art. 163.º, n.º 1, consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial». XIX - Na jurisprudência acolheram-se estas soluções, de que são exemplo inúmeros Acs. do STJ, entre os quais, mais recentemente, os de 11-07-2007, Proc. n.º 1416/07 -3.ª, de 19-092007, Proc. n.º 2811/07 -3.ª, e de 07-11-2007, Proc. n.º 3986/07 -3.ª. XX - Estando em causa uma perícia efectuada pelo IML, o tribunal terá de aceitar a respectiva conclusão, porque subtraída à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 163.º, n.º 1, do CPP, por se tratar de juízo técnico ou científico inerente à prova pericial, a menos que fundamente a sua divergência. XXI - Pelo contrário, os relatórios de avaliação psicológica com estudo de personalidade e de avaliação psiquiátrica elaborados por uma psicóloga clínica e por um médico psiquiatra – apresentados pelo arguido no decurso da audiência de julgamento e cujos subscritores depuseram como testemunhas –, porque não realizados nos termos dos arts. 159.º do CPP e da Lei 45/2004, de 19-08, não estão sujeitos à regra da prova vinculada do art. 163.º, n.º 1, do CPP, podendo e devendo ser apreciados com base em critérios diferentes da prova obtida através de perícias realizadas pelo IML, ou seja, estão sujeitos à livre apreciação do tribunal (art. 127.º do CPP).
Proc. n.º 392/09 -3.ª Secção
Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar
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