ACSTJ de 12-03-2009
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Questão interlocutória Duplo grau de jurisdição Órgãos de polícia criminal Competência Medidas cautelares Prova Métodos proibidos de prova Efeito à distância Prova indiciária Regras da experiência c
I -Na parte em que recaiu sobre as matérias da nulidade da busca domiciliária e da irregularidade das gravações o acórdão do Tribunal da Relação é insusceptível de recurso, pois que se trata de decisão que não pôs termo à causa e, como tal, abrangida pela regra da irrecorribilidade imposta pela al. c) do n.º 1 do art. 400.°, por referência da al. b) do art. 432.º, ambos do CPP. II - Tratando-se de questões interlocutórias, e apesar de o acórdão recorrido conter outras decisões que puseram termo à causa e susceptíveis de recurso para o STJ, o facto de não terem sido objecto de recurso autónomo não lhes confere recorribilidade fundamentada na circunstância de as restantes admitirem recurso para este Tribunal. Como se considerou, por ex., no Ac. do STJ de 22-09-2005, Proc. n.º 1752/05 -5.ª, embora a questão interlocutória acompanhe a decisão final, pode e deve ser dela cindida, sendo que sobre ela até já se formou dupla conforme. III - Este entendimento, respeitando a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, está em perfeita consonância com o regime dos recursos traçados pela Reforma de 1998 para o STJ, que obstou, de forma clara, ao segundo grau de recurso, terceiro grau de jurisdição, relativo a questões processuais ou que não tenham posto termo à causa. A excepção é a prevista na al. c) do art. 432.º do CPP, à qual não é subsumível a hipótese em apreço. IV - De igual modo a Reforma introduzida pela Lei 48/2007 consagra, no art. 432.º, n.º 1, al. d), a regra de que as decisões interlocutórias que devem ser apreciadas pelo STJ são unicamente as que devam subir com os das als. b) e c). V - O CPP consagra agora a possibilidade de medidas cautelares visando a obtenção de prova que, de outra forma, poderia perder-se, provocando danos irreparáveis nas finalidades do processo. É exactamente esse o campo de aplicação do art. 249.º do CPP ao atribuir aos órgãos de policia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, competência para praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. VI - Para Damião da Cunha (in O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal, pág. 143) não pode haver qualquer tipo de dúvida quanto à clara integração processual penal das medidas cautelares e de polícia, pelo menos na sua maioria. Elas são a consequência lógica do conceito «actos com relevância processual penal», enquanto actos decorrentes da actividade de luta contra a criminalidade que ganham relevância para a descoberta de um crime. VII - Por outro lado, sendo estas medidas actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, não significa isto que a responsabilização funcional seja a estes imputada. É que, por um lado, aqueles actos perdem qualquer significado autónomo, na medida em que, integrando-se na posterior tramitação processual concreta, serão, por isso, sujeitos a uma avaliação ex post dos titulares das competências, e, por outro, serão também pressupostos das decisões finais a tomar pelos órgãos coadjuvados. VIII - Sendo actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, são ainda praticados na dependência funcional das autoridades judiciárias. Isto é, falte embora um comando das autoridades judiciárias, ainda assim os órgãos de polícia criminal devem actuar com a específica intencionalidade que os torna órgãos auxiliares da administração de justiça: também a este nível lhes impende, tanto quanto possível, não só descobrir circunstâncias fundamentadoras ou agravantes da responsabilidade criminal, como todas aquelas que, porventura, dirimam ou diminuam essa responsabilidade. Só assim estes actos de iniciativa própria são compatíveis com uma competência de coadjuvação e com a dependência funcional. IX - São pressuposto de aplicação do art. 249.º do CPP a necessidade e a urgência, o que se reconduz à possibilidade de contaminação da prova ou de deterioração do meio de prova, bem como à impossibilidade da sua reprodução noutro momento que não aquele em que efectivamente é produzida. X - Integra-se perfeitamente no âmbito desta prova antecipada a actuação da PJ quando, nos momentos imediatos à morte de uma pessoa, examina o local onde os factos ocorreram, tentando determinar as circunstâncias em que a mesma ocorreu. Independentemente do consentimento do arguido, a circunstância de tal acto obter uma ratificação pela autoridade judiciária é suficiente para conferir a necessária legalidade à actuação. XI - É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no art. 32.º, n.º 8, da CRP inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova. XII - O efeito à distância da prova proibida nunca poderá alcançar uma abrangência que congregue no seu efeito anulatório provas que só por uma mera relação colateral, e não relevante, se encontram ligadas à prova proibida ou que sempre se produziriam, ou seria previsível a sua produção, independentemente da existência da mesma prova proibida. XIII - Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude. XIV - Não está abrangida pela conexão de ilicitude a prova produzida quando os órgãos de investigação criminal dispõem de um meio alternativo de prova, ou seja, de um processo de conhecimento independente e efectivo, nem nas situações em que a “mancha” do processo é apagada pelas próprias autoridades judiciárias ou através da actuação livre do arguido ou de um terceiro. XV - O mesmo se dirá em relação à prova produzida através de uma prova ilícita pela sua proibição quando for imperativa a conclusão de que o mesmo resultado probatório seria sempre atingido por outro meio de obtenção de prova licitamente conformado. XVI - Fundamentando-se a condenação na prova indiciária, a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento. XVII - Como refere Jaime Torres (Presunción de Inocencia y Prueba en el Proceso Penal, pág. 65), importa distinguir dois tipos diferentes de regras de experiência: as de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas de experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação especifica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte. XVIII - O juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral, sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova. XIX - As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu. XX - O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. XXI - Só este convencimento baseado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador. Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova. XXII -A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente, o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária, pois que aqui, e para além do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerentes aos princípios da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico, que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indício e a presunção que dele se extrai. XXIII -Como tal, a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento à dedução ou inferência, sendo necessário, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual, partindo de tais indícios, se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação, ainda que sintética, é essencial para avaliar da racionalidade da inferência. XXIV -A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na al. c) – cf. os Acs. deste STJ de 07-01-2004, Proc. n.º 3213/03, e de 24-03-2004, Proc. n.º 4043/03. XXV -O facto de uma testemunha vislumbrar o arguido no átrio do prédio às 09h25 não tem a virtualidade de permitir a conclusão de que nos momentos anteriores, e nomeadamente no momento da queda, o mesmo se encontrava em casa. Todavia, já uma diferente perspectiva é permitida a partir do momento em que o mesmo arguido nega a existência de uma discussão cuja prova de existência se verificou, ou apresenta uma versão do seu percurso na altura dos factos que não corresponde com a que se considerou provada, como é o facto de negar a sua permanência naquele átrio. XXVI -Numa situação em que a convicção expressa do tribunal parte da premissa de que o arguido estava em casa e discutiu com a vítima, para daí inferir que está de acordo com as regras de experiência comum concluir que, de tal discussão, resultou o facto de o mesmo arguido ter atirado voluntariamente a mesma vítima para o vazio, dando-lhe a morte, o salto lógico é demasiado evidente para que seja admissível acriticamente, sem qualquer outro contributo probatório. Na verdade, o facto de se provar a presença do arguido na casa, e a discussão com a vítima, necessita de coadjuvação de outros contributos indiciários para permitir, sem qualquer dúvida, fundamentar uma convicção probatória solidamente alicerçada. XXVII -Mas existem esses outros elementos que corroboram o juízo lógico, ou seja, o silogismo elaborado, que se inscrevem na fundamentação de facto da decisão recorrida, embora de forma esparsa, pois que foi considerado provado que «a ausência de impressões digitais naquela janela indica claramente a mesma ilação, já que é incompatível com a transposição de parapeito medindo 88,5 cm, com o auxílio, ou não, de qualquer móvel». XXVIII -Assim, partindo do pressuposto de que o tribunal de 1.ª instância se convenceu, pela circunstância de existir um exame lofoscópico realizado com todas as garantias, de que, a haver impressões digitais, as mesmas sempre ficariam registadas, cabe na lógica comum a conclusão de que, não podendo a vítima transpor o obstáculo físico da janela unicamente pelos seus meios sem deixar impressões digitais, teria existido a intervenção de terceiro – do arguido – na sua projecção no vazio e sequente morte. XXIX -Ou seja, a ausência de impressões digitais na janela e as notas espalhadas no chão do quarto de onde a vítima caiu, conjuntamente com a apresentação de uma versão inverídica pelo arguido, permitem concluir que não estão violadas regras de experiência comum na avaliação da prova indiciária e que, consequentemente, a decisão não enferma de erro notório na apreciação da prova.XXX -Sendo sempre objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que, face à experiência comum, poderia conduzir àquele desenlace (v.g. o confronto extremo para desagravo da honra, a defesa de bens que se consideram essenciais). XXXI -Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos, são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis. XXXII -Estando em causa a prática de um crime de homicídio na sequência de uma discussão entre arguido e vítima, desconhecendo-se a forma sequencial como se processou e os motivos que estariam subjacentes, e tendo em consideração que as circunstâncias de o casal ter um filho, de viver na mesma casa ou de a vítima ter sido lançada para a morte da janela do quarto do filho não têm qualquer virtualidade para se afirmar uma culpa qualitativamente situada num patamar superior, é de concluir que o crime praticado foi o de homicídio simples p. e p. pelo art. 131.º do CP.
Proc. n.º 395/09 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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