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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 12-03-2009
 Direito ao recurso Admissibilidade de recurso Aplicação da lei processual penal no tempo Acórdão da Relação Absolvição Assistente Duplo grau de jurisdição Inaudibilidade da prova gravada Irregularidade Sanação Pedido de indemnização civil Dolo
I -O direito ao recurso inscreve-se no leque dos direitos fundamentais do arguido, no art. 32.º da CRP, mas, tal como doutrina Paulo Pinto de Albuquerque, não é ilimitado, não se estende a todas as decisões e nem é de esgotamento de todas as instâncias de recurso, de todos os graus de jurisdição de recurso, sequer assegura audiência de julgamento de recurso em todos os casos – cf. Comentário ao Código de Processo Penal, pág. 994.
II - A nossa jurisprudência e a doutrina são unânimes em reconhecer que a lei reguladora da admissibilidade do recurso é a vigente na data em que é proferida a decisão recorrida – lex temporis regit actum – (cf. Acs. deste STJ de 17-12-1969, BMJ 192.º/192, de 04-12-1976, BMJ 254.º/144, de 11-11-1982, BMJ 331.º/438, de 10-12-1986, BMJ 362.º/474, e José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, 1997, I, pág. 189), e isto porque as expectativas eventualmente criadas às partes ao abrigo da lei antiga se dissiparam à face da lei nova, não havendo que tutelá-las, “não tinham razão de ser” (cf. Antunes Varela, Miguel Beleza, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 54-55).
III - Mas importa distinguir, para efeitos de aplicação da lei processual no tempo, entre as regras que fixam as condições de admissibilidade do recurso e as que se limitam a regularas formalidades de preparação, instrução e julgamento do recurso, estas, sem margem para dúvida, de imediata aplicação – cf. Prof. Alberto dos Reis, RLJ, Ano 86.º, págs. 49-53 e 84-87.
IV - Porque em sede de direito e processo penal se jogam interesses públicos, afectando ou podendo afectar direitos fundamentais tão valiosos como o da liberdade humana, para efeitos de aplicação da lei no tempo é de analisar se com ela resulta agravamento da posição substantiva do arguido, levando, na hipótese afirmativa, a que se devam ponderar as expectativas, justas, do recorrente, em termos de continuar a deparar-se-lhe a possibilidade de lhe assistir o recurso nos moldes firmados na lei antiga.
V - O art. 5.º do CPP, nos termos em que se mostra redigido, dispondo que a lei processual nova é de aplicação imediata a todos os processos pendentes, quando assuma uma natureza exclusivamente processual e não já quando da sua aplicabilidade imediata derive o agravamento sensível da posição processual do arguido, realiza o interesse público da protecção de interesses que se jogam na sucessão de leis processuais penais.
VI - Deste modo se perfilha o entendimento segundo o qual se, ao abrigo da lei em vigor na data da decisão inicialmente recorrida, estava assegurado o direito ao recurso, deve ele continuar a assistir-lhe, mesmo que outra, posterior, lho retire, a fim de não agravar a situação processual do arguido, marcando aquela data o pressuposto do nascimento do direito.
VII - À face da lei processual penal antiga, sob cuja égide foi interposto recurso da decisão da 1.ª instância, não era admissível recurso do acórdão da Relação para o STJ, por força do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, visto ao crime de denúncia caluniosa caber, abstractamente, pena de prisão inferior a 5 anos.
VIII - A Lei 48/2007, de 29-08, deu ao art. 400.º, n.º 1, al. e) nova redacção, segundo a qual não é admissível recurso de decisões proferidas pela Relação que apliquem pena não privativa de liberdade.
IX - Não é o caso, pois se trata de acórdão absolutório. Porém, a recorribilidade, em princípio, face à lacuna da lei, poderia firmar-se na al. d) do n.º 1 do art. 400.º, na versão da lei nova, por argumento a contrario, pois que se trata de decisão absolutória da Relação, mas que não confirma a de 1.ª instância – que condenou em pena não privativa da liberdade.
X - Mas tal interpretação confrontar-se-ia com o pensamento do legislador histórico de restringir os recursos para o STJ, reservando-os para os casos de maior complexidade ou de elevado valor, levando a que, como se consignou no Ac. deste STJ de 03-09-2008 (Proc. n.º 1883/08), fosse admitido recurso para o STJ de sentença absolutória da Relação quando, por força do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, só em caso de condenação em pena de prisão superior a 5 anos tal era facultado.
XI - A teleologia inspiradora dos recursos a partir daquele art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP funciona como limite incontornável à interpretação da lei, restringindo o alcance indesejável a que conduziria a letra da lei, interpretação que não atraiçoa o espírito do legislador, com tradução objectivada na Proposta de Lei 109/X, atalhando as soluções incongruentes e chocantes a que o sistema conduziria, de permitir que qualquer caso simples chegasse ao STJ, a partir da Relação, estribado numa interpretação a contrario.
XII - Impõe-se, pois, uma leitura restritiva da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, reconduzindoa não só ao espírito do legislador como à sua interpenetração com o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código.
XIII - Numa visão que respeite a unidade do sistema e a vontade do legislador em matéria de recursos e compatibilize os textos legais das als. d) e e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, a solução que se impõe é a de rejeitar o recurso, consequência que se retira tanto à face da lei antiga como da nova.
XIV - Por fim, e não menos importante, a consideração de que a interposição do recurso pelo assistente, estando ao alcance do STJ alterar o decidido pela Relação, poderia redundar num agravamento sensível da posição do arguido, conduzindo, também, a não se admitir o recurso, nos termos do art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPP.
XV - E nenhum prejuízo advém aos direitos do assistente, uma vez que a lei nova não admitindo, na interpretação que dela se faz, o recurso, também o não restringe, porque já ao abrigo da lei processual penal vigente em 15-03-2006 tal lhe não era consentido, sendo exacto que o art. 32.º, n.º 1, da CRP não garante a existência de um duplo grau de jurisdição de recurso em todas as situações: questões há cuja gravidade não justifica mais do que um grau de recurso, seja qual for o sentido da decisão da Relação – cf. Acs. do STJ de 06-12-2007, Proc. n.º 3752/07 -5.ª, e de 28-02-2008, Proc. n.º 98/08 -5.ª.
XVI - O legislador da Lei 48/2007, de 29-08, rompeu claramente com o princípio da adesão, equiparando a acção penal à acção cível, implicando que, nos termos do art. 400.º, n.º 3, do CPP, «Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível», suposto que concorram os pressupostos indicados no n.º 2 daquele preceito.
XVII - Não estava excluído, à partida, que a Relação, deparando-se com tal norma de clara aplicação imediata aos casos pendentes, por não brigar com o princípio fundamental sobre a aplicação da lei penal no tempo previsto no art. 2.º, n.º 4, do CP, se debruçasse sobre a dedução do pedido cível indemnizatório pelo assistente.
XVIII - O assistente, que agora aponta à decisão penal – e consequentemente à do pedido cível, que dela não pode divergir – uma base factual deficitária, mercê da gravação imperfeita em 1.ª instância, recorreu do quantum indemnizatório atribuído no recurso da condenação primitivamente decretada, mas não invocou essa anomalia integrante de irregularidade logo que interveio no processo, só o fazendo depois da decisão proferida no TC que ordenou a discriminação entre factos provados e não provados, deficiência factual que, por isso, impedia um correcto fundamento do princípio in dubio pro reo.
XIX - Essa irregularidade que, como é jurisprudência pacífica deste STJ, diz respeito à documentação da matéria de facto para fins de impugnação, tem de ser arguida no próprio acto ou nos 3 dias subsequentes à intervenção no processo, nos termos do art. 123.º, n.º 1, do CPP – cf. Acs. de 20-03-2007, Proc. n.º 775/06, de 30-11-2006, Proc. n.º 3110/06, de 26-09-2007, Proc. n.º 2052/07, de 19-11-2007, Proc. n.º 3785/08, de 26-03-2008, Proc. n.º 105/08, e de 27-04-2006, Proc. n.º 4012/06 –, já que sobre os sujeitos processuais se impõe um acompanhamento pari passu do processo nunca tão dilatado que se reserve a sua notícia para o recurso, e muito menos para uma fase posterior a esse controle, isto também numa perspectiva de celeridade e lealdade processual, correndo-se o risco de inutilização do processado, perfeitamente evitável, em fase avançada do processo.
XX - Não tendo sido arguida a irregularidade oportunamente, está vedado ao recorrente arguir tal deficiência.
XXI - À Relação cumprirá, assim, mercê de nulidade por omissão parcial de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, indagar sobre o pressuposto de direito substantivo mera culpa que, uma vez aflorado o dolo, neste ainda se contém como um minus (pois que também a mera culpa, ou seja a violação de um dever objectivo de cuidado, a negligência, uma atitude pessoal de descuido ou de leviandade, funciona, nos termos do art. 483.º do CC, como fonte da obrigação de indemnizar), naturalmente que de acordo com os factos provados, que duplamente balizam o seu poder cognitivo: por serem os provados e por aquela irregularidade, a existir, se encontrar sanada.
Proc. n.º 2884/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral