Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 12-03-2009
 Maus tratos Reiteração Bem jurídico protegido Direitos de defesa Crime público Crime semipúblico Dolo Desistência da queixa Prescrição do procedimento criminal Danos não patrimoniais Indemnização Equidade
I -Até à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04-09 (que manteve a incriminação e a moldura penal respectiva), o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.
II - Face à nova redacção dada pela citada Lei o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas («Quem, de modo reiterado ou não…» – art. 152.º, n.º 1, do CP), embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito (cf. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, págs. 106-107; e Ac. do STJ de 24-04-2006, Proc. 06P975, in www.dgsi.pt).
III - O art. 152.º do CP responde à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos na violência doméstica. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge, sendo que esse bem pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal daquele, designadamente por ofensas corporais simples. Protege-se a dignidade humana, em particular a saúde, aqui se compreendendo o bem-estar físico, psíquico e mental (cf. Acs. do STJ de 30-10-2003, CJSTJ, XI, tomo 3, pág. 208, e de 04-02-2004, Proc. n.º 2857/03 -3.ª).
IV - Resultando da factualidade assente, para além do mais, que as agressões físicas e verbais do arguido para com a mulher (e os filhos) começaram praticamente desde o início do casamento e continuaram, quer quando, pelo menos por duas vezes, o arguido pôs a mulher fora de casa, à noite, só com a roupa interior, quer com novas agressões no Verão de 2002, quer ainda posteriormente – tendo a ofendida apresentado queixa em Abril de 2003 –, não há dúvida de que os factos provados se subsumem à previsão do art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04-09, não havendo que considerar as agressões praticadas pelo arguido no Verão de 2002 como os únicos factos criminosos, autonomizálos de todo o comportamento anterior do arguido para com a mulher e considerar que apenas cometeu um crime de ofensa à integridade física, como pretende o recorrente.
V - O facto de se terem provado outras agressões físicas (socos, pontapés, bofetadas) e agressões verbais praticadas amiúde pelo arguido contra a mulher, sem se ter conseguido apurar a data exacta da respectiva prática, não obsta à prova dessas (outras) agressões, sendo certo que isso não impede o direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado na medida em os factos essenciais – as agressões – já constavam da acusação e as datas exactas da prática das mesmas são factos que não são indispensáveis para a concretização do crime.
VI - O crime de maus tratos ao cônjuge passou a estar previsto no CP, no art. 153.º, n.º 3, na redacção dada pelo DL 400/82, de 23-09, e tal normativo não exigia a queixa do ofendido.
VII - Com a revisão operada pelo DL 48/95, de 15-03, o procedimento criminal passou a depender de queixa (art. 152.º, n.º 2, do CP), e com as alterações posteriormente introduzidas pela Lei 65/98, de 02-09, o procedimento criminal pelo referido crime continuou a depender de queixa, mas o MP podia dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida acusação (cf. art. 152.º, n.º 2, in fine, do CP, na redacção indicada).
VIII - Com a Lei 7/2000, de 27-05, o crime passou a revestir novamente a natureza de público, sendo que a nova redacção veio responder à necessidade de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos, designadamente em cônjuge e equiparado, deixando de ser exigido o dolo específico (na versão originária era necessário que o autor/agente agisse por malvadez ou egoísmo), bastando o dolo genérico.
IX - Dado que durante a maior parte do tempo que durou o casamento da ofendida o crime de maus tratos ao cônjuge tinha natureza pública, situação que se verificava à data da queixa apresentada pela assistente (26-04-2003), o facto de esta ter declarado desistir dessa queixa nas declarações que prestou em 06-06-2003 é juridicamente irrelevante e ineficaz.
X - Tratando-se de crime público, não há que atender ao estatuído no art. 115.º do CP quanto à extinção do direito de queixa, sendo aplicáveis os prazos de prescrição do procedimento criminal referidos no art. 118.º do CP, que ainda não tinham decorrido à data da apresentação da queixa pela assistente, posto que alguns dos factos integradores do crime ocorreram no Verão de 2002.
XI - Quanto aos danos não patrimoniais rege o art. 496.º do CC, de onde resulta que são indemnizáveis os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
XII - A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo (devendo, porém, considerar-se as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos. Assim, são geralmente considerados danos não patrimoniais relevantes a dor física ou psíquica, a ofensa à honra ou reputação do indivíduo, o desgosto pelo atraso na conclusão de um curso ou de uma carreira – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado (anotação ao art. 496.º).
XIII - Esta indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário. Pretende compensar o lesado, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantêm, assim como da situação de debilidade física resultante dos factos (cf., neste sentido, Ac. do STJ de 26-01-1994, CJSTJ, tomo II, pág. 67).
XIV - E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respectiva indemnização deve recorrer-se à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso (art. 496.º, n.º 3, do CC).
XV - Resultando da matéria de facto assente que a assistente MO, ex-mulher do arguido, foi vítima de agressões (físicas e psicológicas) e humilhações, pelo que sofreu dores e teve ansiedade, medo e intranquilidade em casa, com perda de auto-estima, o que só terminou com a separação conjugal, que ocorreu em 2003, estes danos – graves e relevantes – não podem deixar de ser considerados merecedores da tutela do direito, afigurando-se justa uma indemnização de € 5000.
XVI - Tendo em consideração que a ofendida menor, filha do arguido, VA, sofreu agressões físicas e psicológicas gravíssimas, com sequelas de enorme gravidade quer ao nível da saúde – física e psicológica – quer ao nível da sua auto-estima [ela foi vítima silenciosa, ao longo de vários anos, de abusos sexuais praticados pelo pai, que lhe provocaram pesadelos (acordando assustada durante a noite) e a tornaram numa pessoa triste, revoltada e desconfiada, tendo receio de sair de casa e vir a encontrar o pai], que se manterão seguramente durante muito tempo, não se vê motivo para alterar o montante da indemnização de € 20 000, a título de danos não patrimoniais, arbitrado pelas instâncias.
Proc. n.º 236/09 -3.ª Secção Fernando Fróis (relator) Henriques Gaspar