ACSTJ de 12-03-2009
Intenção de matar Matéria de facto In dubio pro reo Matéria de direito Competência do Supremo Tribunal de Justiça Livre apreciação da prova Acórdão da Relação Fundamentação Homicídio Tentativa Tentativa impossível Suspensão da execução da pena
I -A intenção de matar constitui matéria de facto, em princípio imodificável, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem – cf., entre outros, Acs. do STJ de 25-05-2006, Proc. n.º 1183/06 -5.ª, de 13-09-2006, Proc. n.º 1934/06 -3.ª, de 0211-2006, Proc. n.º 3841/06 -5.ª, de 17-10-2007, Proc. n.º 3395/07 -3.ª, de 03-04-2008, Proc. n.º 132/08 -5.ª, de 18-07-2008, Proc. n.º 102/08 -5.ª, de 16-10-2008, Proc. n.º 2851/08 -5.ª, e de 22-10-2008, Proc. n.º 3274/08 -3.ª. II-O«in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437. III - O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. IV - Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. V - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. VI - Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada. VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. VIII - No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever –o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203. IX - O TC (Ac. 1165/96, de 19-11, Proc. n.º 142/96 -1.ª, in BMJ 461.º/93), debruçando-se sobre a norma do art. 127.º do CPP, acompanhou estas considerações, realçando que a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. X - A fundamentação decisória do acórdão proferido em recurso exerce-se sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção; nesse sentido, não é uma fundamentação originária mas derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções. XI - Tendo em conta que a decisão recorrida para o STJ é a da Relação e que a fundamentação que pode estar em causa é a desta última e não a da 1.ª instância, não se exige ao tribunal de recurso que tenha de «refazer e deixar expresso todo o processo de avaliação e de ponderação dos meios de prova levada a cabo pela decisão de 1.ª instância, cuja correcção apreciava» (cf. Ac. do TC n.º 387/05, DR Série II, de 19-10-2005). XII - Em idênticos termos aos acima consignados também a livre apreciação da prova está sujeita ao controlo do tribunal de recurso, ainda que este conheça somente de direito, sempre que a violação do princípio da objectividade for evidente, sem necessidade de outras indagações probatórias. XIII - E é com esta conformação que se tem dito que o STJ, como tribunal de revista – e não de instância –, não reaprecia o acerto da decisão em matéria de facto, ainda que venha crismada com outro nomen iuris, como seja a violação do princípio in dubio pro reo ou do princípio da livre apreciação da prova, ou mesmo sob a cobertura dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. XIV - Não se considera suficiente para fundamentar uma tentativa a mera intenção, mas é necessário que esta se exteriorize em actos que contenham já, eles próprios, um momento de ilicitude – Eduardo Correia, aquando da discussão do art. 22.º do Projecto, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, 1.º vol., Lisboa, 1965, págs. 170-171 –, actos executivos esses subsumíveis às als. do n.º 2 do art. 22.º do CP, que preenchem os elementos constitutivos de uma infracção penal. XV - No crime tentado o agente desencadeia o processo objectivo causal, processo de execução conducente ao resultado desviante, simplesmente este não se verifica por motivos alheios à sua vontade. XVI - Na denominada tentativa impossível, através dos actos de execução praticados o agente cria um perigo objectivo, embora aparente, que desencadeia ou pode desencadear alarme ou intranquilidade na comunidade, e é isso que lhe confere dignidade punitiva. XVII - O resultado não sobrevém, seja porque o meio utilizado não é idóneo, seja porque há carência do objecto. XVIII - A punição da tentativa impossível depende de a inexistência do objecto essencial à consumação do crime ou a inaptidão do meio utilizado pelo agente serem manifestas,à data da prática do facto ilícito – art. 23.º, n.º 3, do CP. XIX - Este conceito de “manifesto” é, então, sinónimo de claro, ostensivo, público ou evidente, não para o agente, mas para a generalidade das pessoas, posto que o primeiro tem que estar convencido da idoneidade do meio, sem o que não é possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime; sendo assim, este juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é um juízo objectivo. XX - A inidoneidade do meio (falta de potencialidade causal para produzir o resultado típico) pode ser absoluta (aquele que por essência ou natureza nunca é capaz de produzir o resultado) ou relativa (se o meio normalmente eficaz deixou de operar pelas circunstâncias em que foi empregado), sendo certo que só o meio absolutamente inidóneo exclui a tentativa, configurando a tentativa inidónea ou impossível – cf. Marques da Silva, Direito Penal Português, II, Editorial Verbo, 1998, pág. 249; Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, 4.ª ed., págs. 436-438; Simas Santos e Leal-Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, 3.ª ed., Rei dos Livros, 2009, págs. 131-132; e Acs. do STJ de 07-01-1998, Proc. n.º 1030/97 -3.ª, de 12-04-2000, Proc. n.º 841/99 -3.ª, e de 01-06-2000, Proc. n.º 126/00 -5.ª. XXI - Mostrando-se provado que, no decurso de uma altercação, o recorrente, munido de uma pistola, efectuou um disparo para o ar, disparou novamente duas vezes atingindo uma pessoa, e que, a curta distância, a apontou ao tronco de outra, expressando verbalmente a intenção de a matar, ao mesmo tempo que premiu duas vezes o gatilho, é inadmissível dizer-se que a arma era manifestamente inidónea para a produção do resultado almejado, não se estando perante um caso de tentativa não punível, a que alude o n.º 3 do art. 23.º do CP. XXII -Muito pelo contrário, ponderando a estreita proximidade temporal da descrita actuação, as regras da experiência, da normalidade e da lógica legitimam a conclusão de que a arma tinha potencialidade letal e que, do ponto de vista do recorrente, era apta para tal. XXIII -O recorrente usou um meio reputado apto a consumar o crime de homicídio, mas que veio a tornar-se inapto, verificando-se uma inidoneidade superveniente que se integra no conceito de inidoneidade relativa, não manifesta. E, enquanto tal, punível. XXIV -Tendo em consideração que: -a execução da pena de prisão cominada ao recorrente ficou suspensa por 4 anos, ou seja, em medida superior à duração da pena de prisão [de 2 anos e 10 meses], estando subordinada ao pagamento de uma quantia monetária, «fraccionada no tempo em prestações quadrimestrais»; -o art. 50.º, n.º 5, do CP, com a alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, impõe que o período de suspensão tenha duração igual à da pena de prisão determinada na sentença; -vigorando actualmente uma lei com teor diferente da vigente ao tempo da decisão, ter-seá de ponderar a diminuição do período de tempo anteriormente fixado, de forma a igualar a medida dessa pena; -tal poderá implicar um ajustamento do ciclo de pagamentos a que a suspensão da execução da pena ficou sujeita, reformulação essa a que o STJ não pode proceder, sob pena de inviabilizar as garantias de defesa do arguido/recorrente; -trata-se de uma “questão nova”, que não teve oportunidade de ser tratada, nem pela 1.ª instância nem pela Relação, fruto apenas da alteração da lei penal substantiva; deve a 1.ª instância reabrir a audiência (arts. 370.º a 371.º-A do CPP), procedendo às diligências que se revelarem adequadas à nova previsão do n.º 5 do art. 50.º do CP e, consequentemente, aos termos estabelecidos na condição da suspensão da execução da pena de prisão – art. 51.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do mesmo diploma.
Proc. n.º 1769/07 -3.ª Secção
Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Santos Cabral
Oliveira Mendes
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