ACSTJ de 04-03-2009
Mandado de Detenção Europeu Princípio do reconhecimento mútuo Tradução Notificação Nulidade Recusa obrigatória de execução Recusa facultativa de execução Irregularidade Sanação Prazo Direitos de defesa
I -O Mandado de Detenção Europeu constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e, por força da sua aplicação, a Decisão Quadro 2002/584/JAI, de 13-06-2002, do Conselho da União Europeia, acaba com o processo de extradição entre os Estados membros da União. II - Como refere Anabela Miranda Rodrigues (O Mandado de Detenção Europeu – na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?, in RPCC, Ano 13, n.º 1, pág. 23 e ss.), a decisão quadro «substitui as convenções aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre os Estados-Membros, sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados-Membros e Estados terceiros (art. 31.º, n.º 1)…». III - Nas relações entre os Estados da Comunidade, por força do MDE, o elemento chave do processo de “entrega” passou a ser o próprio “mandado” de detenção emitido pela autoridade judiciária competente, diversamente do que ocorre nas relações com o exterior do «território único», em que o elemento chave continua a ser o “pedido”, o que se justificará por nesses casos não se estar perante os pressupostos (a confiança recíproca entre os Estados membros, o reconhecimento mútuo e o postulado do respeito efectivopelos direitos fundamentais em toda a União Europeia) que justificam a judiciarização do processo de detenção e entrega. IV - Numa situação em que: -o mandado não se apresentava como o modelo perfeito traçado no n.º 5 do art. 16.º da Lei 65/2003, estando longe de primar pela clareza no que concerne à indicação da data da prática do crime indiciado, situando o tempo do cometimento da infracção numa zona indefinida, indeterminada, difusa, falha de precisão («em data indeterminada do ano de 2004»), sendo que, se já em termos normais é de exigir mais precisão na indicação da data da prática do crime, mais se impunham no caso presente as exigências de rigor, atendendo ao facto de estar em jogo a própria definição de imputabilidade ou inimputabilidade do procurado [se os factos tivessem ocorrido anteriormente a 18-02-2004, o ora recorrente teria então apenas 15 anos de idade, caso em que faria todo o sentido invocar a causa de recusa de execução do mandado prevista na al. c) do n.º 1 do art. 11.º da Lei 65/2003, que estabelece que «a execução do mandado de detenção europeu será recusada quando a pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu»); -face a esta insuficiência do mandado o Tribunal da Relação encetou diligências no sentido de, com a maior brevidade possível, coligir a informação em falta, nos termos do art. 16.º, n.º 3, da citada Lei; -o acórdão recorrido teve em atenção a informação que faltava, a indicação da data em que alegadamente foi cometido o crime, para a partir daí concluir pela imputabilidade, e fundamentou a decisão na informação prestada pela autoridade judiciária francesa, fazendo uso do documento junto, escrito em francês; -apesar de não ter sido feita a tradução do texto (mostrando-se inobservado o art. 3.º, n.º 2, da Lei 65/2003, que impõe a tradução do mandado), certo é que o requerido foi notificado por via postal registada, o mesmo acontecendo com a sua advogada, e, tendo sido mandado aguardar o decurso do prazo de pronúncia sobre a notícia notificada, só já após a prolação do acórdão recorrido foi suscitada a questão da falta de tradução através de requerimento cuja pretensão veio a ser indeferida; não se verifica qualquer nulidade, nomeadamente a constante do art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, que o recorrente pretende aplicável ex vi art. 34.º da Lei 65/2003. V - Como tem entendido a jurisprudência, a ausência dos requisitos de conteúdo e de forma do MDE, a que se refere o art. 3.º da Lei 65/2003, não é causa de recusa obrigatória ou de recusa facultativa, previstas, respectivamente, nos seus arts. 11.º e 12.º. VI - A falta desses requisitos importa uma irregularidade sanável, nos termos do art. 123.º do CPP, aplicável subsidiariamente por força do art. 34.º da Lei 65/2003 – cf., neste sentido, Acs. do STJ de 25-01-2007, Proc. n.º 271/07 -5.ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 178; de 0803-2007, Proc. n.º 733/07 -5.ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 206; de 09-08-2007, Proc. n.º 2847/07 -5.ª; e de 09-01-2008, Proc. n.º 4855/07 -3.ª –, que, no caso concreto, é de ter por sanada pois que o recorrente não tomou sobre ela qualquer posição, em tempo útil. VII - Como se diz no Ac. de 17-03-2005, Proc. n.º 1138/05 -5.ª (CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 220), a propósito da integração de eventuais insuficiências pelo pedido de informações complementares, o que importa, deste ponto de vista, é, não tanto a correcção inicial do mandado, antes que, segundo um actuante “princípio da actualidade”, com informação posterior ou sem ela, o Estado requerido, por intervenção do tribunal competente, no momento de decidir esteja na posse de todos os elementos necessários sobre o destino a dar à pedida execução do mandado. VIII - Os prazos do art. 26.º da Lei 65/2003, tal como estão configurados na lei, não têm natureza peremptória, admitindo a própria lei que o prazo de 60 dias estabelecido para ser proferida a decisão definitiva pode ser prorrogado por mais 30 dias, nomeadamente por ter sido interposto recurso, devendo informar-se a autoridade judiciária de emissão, indo mais longe o n.º 5, devido a circunstâncias excepcionais – cf. Ac. do STJ de 06-06-2007, Proc. n.º 2182/07 -5.ª. IX - O que se pretende é assegurar a celeridade da providência em consonância com a garantia dos direitos do requerido, maxime os de defesa, mas se, por força de circunstâncias incontornáveis, têm de ser levadas a cabo diligências justamente em nome da defesa, não faria sentido que o mandado já não pudesse ser executado. X - A ultrapassagem dos prazos, justificada pelo interesse da defesa, em nada colidiu com as garantias de defesa do arguido, que se encontrava em liberdade, não estando em causa o prazo, esse sim peremptório, do art. 30.º da Lei 65/2003 (prazos de duração máxima da detenção). XI - A necessidade de complementar informações do mandado será um factor de necessária paralização do processo, não podendo o juiz ordenar o seu prosseguimento, porque se impõe a prévia certificação da legalidade do mandado, o que é feito em nome da observância das garantias da pessoa procurada e em ordem a aquilatar se o caso cai na reserva de soberania, se se impõe ao Estado a recusa da execução do mandado, constituindo uma situação excepcional, fora do quadro normal do mandado em condições a que alude o n.º 5 do art. 16.º da citada Lei.
Proc. n.º 685/09 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
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