ACSTJ de 04-03-2009
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Dupla conforme Concurso de infracções Aplicação da lei processual penal no tempo Competência do Supremo Tribunal de Justiça Cúmulo jurídico Pena única Fundamentação Medida concreta da pena Responsabi
I -Face ao art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29-08, era jurisprudência firme do STJ (cf. Ac. de 08-11-2006, Proc. n.º 3113/06 -3.ª, entre outros) que não era admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmassem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que fosse aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, face à denominada “dupla conforme”. II - Entendia-se que a expressão «mesmo em caso de concurso de infracções», constante da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, significava que, apesar de no caso se configurar um concurso de infracções, a regra primária da referida norma continuava a valer, incluindo nela também as situações em que os crimes do concurso se integrem nos limites da primeira referência a «pena aplicável», isto é, em que uma das penas aplicáveis a um dos crimes do concurso não ultrapassasse 8 anos de prisão, havendo identidade de condenação nas instâncias. III - Nesta ordem de ideias, desde que a pena abstractamente aplicável, independentemente do concurso de infracções, não fosse superior a 8 anos, não seria admissível recurso do acórdão da Relação para o STJ (na tese usualmente seguida pelo Supremo), sendo que uma outra tese, não seguida por esta Secção, entendia que, na interpretação mais favorável para o recorrente, apenas seria admissível recurso da pena conjunta que correspondesse ao concurso de crimes a que fosse aplicável pena de prisão superior a 8 anos. IV - Com a revisão do CPP operada pela Lei 48/2007, de 29-08, na al. f) do art. 400.º deixou de subsistir o critério do “crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos”, para se estabelecer o critério da pena aplicada não superior a 8 anos; daí que se eliminasse a expressão “mesmo no caso de concurso de infracções”. Assim, mesmo que ao crime seja aplicável pena superior a 8 anos, não é admissível recurso para o Supremo se a condenação confirmada não ultrapassar 8 anos de prisão. Ao invés, se ao crime não for aplicável pena superior a 8 anos de prisão, só é admissível recurso para o STJ se a condenação confirmada ultrapassar oito anos de prisão, decorrente de cúmulo, e restrito então o recurso à pena conjunta. V - O art. 5.º do CPP não tem aplicação no caso concreto, no domínio das penas parcelares, pois que, como se decidiu no Ac. do STJ de 05-06-2008, Proc. n.º 08P1151, da 5.ª Secção, a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1.ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido. VI - Tendo em atenção que o acórdão da 1.ª instância foi proferido em 21-07-2006, anteriormente à vigência da Lei 48/2007, de 29-08, e que quer as penas parcelares aplicadas, quer as abstractamente aplicáveis aos crimes que motivam a condenação não excedem 8 anos de prisão, só em relação à pena conjunta aplicada ao arguido FC é admissível o recurso, por exceder 8 anos de prisão. VII - O STJ não é um tribunal de instância, que conheça de todos os recursos que se lhe dirijam, pois que é um tribunal de revista, nos termos do art. 434.º do CPP, em que a admissibilidade de recurso para o STJ está vinculada e limitada, apertis verbis, pelo disposto no art. 432.º do mesmo diploma legal adjectivo. VIII - O critério especial de determinação da pena conjunta do concurso constante do art. 77.º, n.º 1, do CP, impõe que do teor da decisão conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja consequente de um acto intuitivo, da apregoada e ultrapassada arte de julgar, puramente mecânico, e, por isso, arbitrário. IX - Embora não seja exigível o rigor e a extensão nos termos do n.º 2 do art. 72.º do CP, nem por isso tal dever de fundamentação deixa de ser obrigatório, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista material, e sem prejuízo de os factores enumerados no citado n.º 2 poderem servir de orientação na determinação da medida da pena do concurso. X - Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 243, nota 2), «A moldura do concurso de crimes é construída, não de acordo com o princípio da absorção puro (punição do concurso com a pena concreta do crime mais grave), nem com o princípio da exasperação ou agravação (punição do concurso com moldura do crime mais grave, devendo a pena concreta ser agravada em virtude do concurso de crimes), mas antes com o princípio da cumulação, de acordo com o qual se procede à punição do concurso com uma pena conjunta determinada no âmbito de uma moldura cujo limite máximo resulta da soma das penas concretas aplicadas a cada crime imputado, mas cuja medida concreta é decidida em função da imagem global dos crimes imputados e da personalidade do agente, (…) Trata-se de um sistema de cumulação. Mas na forma de um cúmulo jurídico.» XI -Tendo em atenção que: -na consideração global dos factos, com particular destaque para o comportamento do arguido na prática dos crimes, revelador de uma personalidade manifestamente desconforme aos valores tutelados pelo direito, acentuam-se patentes necessidades de prevenção geral positiva ou de integração e de prevenção especial positiva ou de socialização; -é elevadíssimo o grau de ilicitude dos factos, face aos concretos valores envolvidos na prática dos crimes, cujo modo de execução consistiu em socorrer-se o arguido de um plano particularmente persistente e elaborado, em que o dolo surge de forma intensa, agindo o arguido de modo concertado, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei, sendo que o arguido prolongou no tempo, durante, pelo menos, cerca de 8 meses, a prática do esquema de fraude, revelando que as penas de prisão anteriormente sofridas não foram o suficiente para o afastar da criminalidade e que a sua vida comercial era exclusivamente sustentada nestes artifícios fraudulentos, evidenciando, assim, o arguido, por outro lado, falta de preparação para manter conduta lícita e apetência para delinquir, tanto mais que foi condenado várias vezes por crimes contra o património, sendo-lhe aplicada no processo comum colectivo n.º 1… a pena de 14 anos de prisão, declarada integralmente cumprida em 20-03-2000; -o modo e os fins e motivos determinantes da actuação do arguido estão patenteados no enriquecimento ilegítimo, por via da obtenção de valores particularmente elevados; -inexistiu reparação das consequências dos crimes; -o arguido tem situação social modesta e vive com dificuldades económicas; -a moldura concreta da pena conjunta se situa entre os 7 anos e 5 meses e os 19 anos e 3 meses de prisão; não se mostra desproporcional, nem contrária às regras da experiência, a pena conjunta aplicada, de 16 anos de prisão, que satisfaz as exigências da prevenção geral e especial e não excede a medida da culpa. XII - Face ao princípio da adesão, de harmonia com o princípio da suficiência do processo penal, nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa – art. 7.º, n.º 1, do CPP. XIII - Nesta ordem de ideias se compreende que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitua caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis – art. 84.º do CPP –, e que a sentença, ainda que absolutória, condene o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art. 82.º – art. 377.º, n.º 1, do CPP. XIV - Perante o princípio da adesão, a norma do n.º 3 do art. 82.º do CPP é uma norma excepcional, qual válvula de escape, em que o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal. XV - A responsabilidade civil contratual está excluída do âmbito do princípio da adesão em processo penal – cf. acórdão de fixação de jurisprudência deste STJ n.º 7/99, de 17-06, in DR Série I-A, de 03-08. XVI - Tendo em consideração que: -as entregas dos empilhadores por parte das demandantes aos arguidos foram determinadas não por dolo malus – de que fala o art. 253.º do CC – mas por actos constitutivos de crimes de burla; -o art. 892.º do CC é peremptório ao estabelecer que é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; -como determina o art. 898.º do mesmo diploma, se um dos contraentes houver procedido de boa fé e o outro dolosamente, o primeiro tem direito a ser indemnizado, nos termos gerais, de todos os prejuízos que não teria sofrido se o contrato fosse válido desde o começo, ou não houvesse sido celebrado, conforme venha ou não a ser sanada a nulidade; assiste razão à decisão recorrida quando conclui que os empilhadores nunca saíram da esfera jurídica das demandantes, e que as vendas posteriormente feitas de tais objectos pelos arguidos, como res inter alios, são absolutamente ineficazes em relação àquelas, continuando a pertencer-lhes o direito de propriedade. XVII - Determinando o tribunal a restituição dos empilhadores à proprietária, o valor indemnizatório pelos prejuízos sofridos haverá de ser determinado com exactidão após essa devolução e avaliação concreta do estado dos bens, o que deverá ser efectuado em sede de liquidação em execução de sentença.
Proc. n.º 160/09 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
Fernando Fróis
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