ACSTJ de 26-02-2009
Homicídio qualificado Infanticídio Asfixia Autoria Co-autoria Acordo tácito Omissão Influência perturbadora do parto Insuficiência da matéria de facto Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Conhecimento oficioso Competência do Supremo
I -Através da análise da matéria de facto na sua globalidade, é possível determinar que houve, ao menos, um acordo tácito entre os arguidos e também um auxílio, senão mesmo uma actuação conjunta, pois a arguida, que deu à luz na casa de banho, quis abandonar a bebé caída no interior da sanita para assim lhe provocar a morte por omissão de assistência [recorde-se que se estava em Fevereiro, isto é, no Inverno e, portanto, a morte ocorreria mais tarde ou mais cedo por algidez] e, depois, quando o seu companheiro, passados 10 minutos, pegou no corpo da bebé, e envolveu-o completamente com uma toalha, impedindo-a de respirar, de forma a abreviar a morte, pela asfixia da bebé, a arguida não se opôs, por qualquer forma, à execução do acto, tendo, pelo contrário, ajudado o seu coarguido a afastar a testemunha LF, que queria intervir em socorro da recém-nascida. II - A recorrente não teve o domínio do facto, como alega, mas o conceito de domínio do facto não pode ser arvorado em critério de autoria nem nos delitos negligentes, nem nos de omissão, nem nos chamados “delitos de dever” (em que o facto é caracterizado em primeira linha não por uma acção, mas pela violação de um dever que recai unicamente sobre pessoas determinadas e de que constituem exemplo paradigmático os crimes específicos, mas também os crimes de omissão), nem nos crimes de mão própria. III - A recorrrente, através duma conduta omissiva, deu acordo, ainda que tácito, a que o seu companheiro agisse duma forma tal que levou a que a recém-nascida viesse a sufocar, querendo ambos tirar-lhe a vida, pelo que se constituiu autora do homicídio. IV - As instâncias condenaram a recorrente pelo crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e i), do CP, mas a recorrente reclama que cometeu o crime de infanticídio, com previsão legal no art. 136.º do CP. V - O infanticídio constituiu outrora uma figura que, ora se traduzia numa subespécie de homicídio qualificado, justificada por razões ligadas ao carácter particularmente indefeso e vulnerável da vítima, ora numa espécie de homicídio privilegiado, ao atenuar a pena da mãe que cometesse infanticídio para ocultar a sua desonra, circunstância que foi eliminada na reforma do CP de 1995, resultando o privilegiamento apenas da influência perturbadora do parto. VI - Apesar de existir a norma penal que pune o infanticídio nos termos indicados, e pese embora se tenha apurado desde o início da investigação policial que a morte da recém-nascida ocorrera de imediato após o parto, o tribunal de 1.ª instância sempre ignorou em absoluto a possibilidade de estar perante esse tipo privilegiado de crime, criando com essa omissão uma situação de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que constitui o vício da al. a) do n.º 1 do art. 410.º do CPP. VII - O Supremo, conforme permite o art. 434.º, pode conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º quando entender que a matéria de facto não é suficiente e adequada para a aplicação do direito, determinando o reenvio do processo à Relação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 426.º do CPP. VIII - Se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, aquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo nos termos indicados por Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 103: «verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136.° e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131.° ou 132.°»).
Proc. n.º 3547/08 -5.ª Secção
Arménio Sottomayor (relator)
Souto Moura
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