Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 12-02-2009
 Homicídio Tentativa Detenção ilegal de arma Medida da pena Medida concreta da pena Pena de prisão Concurso de infracções Cúmulo jurídico Suspensão da execução da pena Fins das penas Prevenção especial Prevenção geral Culpa Juízo de prognose
I - O ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art. 40.º do CP, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o n.º 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
II - Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Do mesmo modo, a chamada “expiação da culpa” ficará remetida para a condição de consequência positiva, caso venha a ter lugar, mas não de finalidade primária da pena.
III - Quando pois o art. 71.º do CP nos vem dizer, no seu n.º 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40.º. Por um lado, a expressão “em função da culpa do agente” não pode ser vista como uma cedência à retribuição. Por outro, fica aberta a porta a que a doutrina possa defender que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (cf. Figueiredo Dias in, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 227 e ss).
IV - Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológiconormativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.
V - O tribunal de 1.ª instância decidiu condenar o arguido, como autor material de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 22.º, 23.º, 131.º e 73.º do CP, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão e, como autor material de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6.º da Lei 22/97, de 27-06, na pena de 4 meses de prisão; em cúmulo jurídico das penas aplicadas foi condenado na pena única de 3 anos de prisão. Mais decidiu suspender, na sua execução, a aludida pena única de prisão pelo período de 4 anos, sob condição de o mesmo, no prazo de 6 meses, proceder ao depósito à ordem dos presentes autos da quantia arbitrada a título de indemnização civil, que foi de € 3750, ao abrigo dos arts. 50.º, n.º 1, e 51.º, n.º 1, al. a), do CP.
VI - Tendo em conta que: -a culpa do agente quanto ao crime de homicídio situa-se, no caso, num patamar alto, porque a acção foi desenvolvida com dolo directo e a intenção de matar exteriorizou-se, entre o mais, na insistência revelada com o número de disparos efectuado; -o grau de ilicitude do crime cometido é o inerente à forma tentada, mas de um crime que sendo de homicídio, e voluntário, atinge o bem mais valioso da nossa ordem jurídico-penal, em perfeita congruência, aliás, com a ordem de valores constitucional; -do circunstancialismo do cometimento do crime ressalta, à partida, uma explicação para o mesmo (que não justificação), derivada de desentendimento e agressões mútuas, de facto ocorridas entre arguido e assistente, o que deixa legitimamente presumir que o arguido cometeu os crimes dos autos sob um estado de exaltação; mas, não pode ser escamoteada a realidade de, face à matéria dada por provada, a contenda ter começado com os socos que o arguido deu no assistente; depois de ter sido o arguido a iniciar a altercação, envolveram-se ambos em luta, a qual veio a terminar por intervenção da filha do assistente; certo que a factualidade apurada não aponta, minimamente, no sentido de ter sido para pôr termo à agressão de que estava a ser vítima, que o arguido foi a casa buscar a arma; inexistindo, pois, qualquer sinal de um propósito seu, defensivo, somos confrontados, simplesmente, com o intuito de o arguido querer matar o assistente; disparou para tanto, pelo menos três tiros, um dos quais atingiu o ofendido, embora sem grandes consequências, e só não disparou mais porque a arma encravou caindo as munições que nela restavam, quando pretendia pô-la outra vez a funcionar; após o crime, o arguido foi a casa, vestiu outra roupa, e afastou-se do local no seu automóvel; -o arguido mostrou-se arrependido pelo seu comportamento, e não tinha qualquer passado criminal registado; -cometeu o crime na sequência de uma altercação com a vítima; entende-se que deve a pena situar-se, inequivocamente, abaixo do meio da moldura (1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão) e considera-se justa a aplicação da pena de 3 anos e 4 meses de prisão pelo crime de homicídio na forma tentada.
VII - O arguido foi ainda condenado pelo crime de detenção de arma proibida do art. 6.º da Lei 22/97, de 27-06, assim se aplicando um regime penal contemporâneo da prática do facto, e mais favorável do que aquele que se lhe seguiu (art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 2302). A pena prevista para tal crime é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. Foi aplicada a pena de 4 meses de prisão. Nenhum reparo merece esta opção.
VIII - Procedendo agora ao cúmulo das penas aplicadas, interessará ter em conta, à luz do art. 77.º, n.º 1, do CP, para escolha da medida da pena única, “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
IX - Vem-se entendendo que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias (idem, pág. 291), “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
X - Sem se ignorar a detenção antecedente da arma, por parte do arguido, o que é certo é que os dois crimes cometidos se encontram unidos num mesmo episódio, assumindo o p. e p. no art. 6.º da Lei 22/97, de 27-06, um carácter instrumental, em relação ao de homicídio. A pena única terá que ser encontrada entre os 3 anos e 4 meses de prisão, e 3 anos e 8 meses de prisão. Na gravidade do ilícito global perpetrado o facto da arma usada não estar registada e manifestada desempenha um papel muito modesto. Daí que o factor de agravação ou exasperação da pena de 4 anos, aplicada pelo homicídio, seja, neste caso particular, reduzido. Porém, o facto de o arguido ser detentor da arma nessas condições (arma que aliás deriva de uma modificação, pode apresentar perigo também para o utilizador, e se adquire por preço relativamente baixo), e além disso não ter hesitado em a utilizar, revela características de personalidade a corrigir. Por isso se entende adequado aplicar em cúmulo a pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
XI - É sabido que só se deve optar pela suspensão da execução da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
XII - Esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344).
XIII - De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não inviabilize propósitos de prevenção especial, e deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado; por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. A suspensão não poderá ser vista pela comunidade como um “perdão judicial”.
XIV - A aposta que a opção pela suspensão, sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta: personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.
XV - Os dados de que se dispõe quanto à personalidade do arguido, as suas condições de vida, o comportamento anterior e posterior ao crime (o CRC, reportado a 06-02-2009, está em branco), não impediriam só por si a substituição da pena de prisão; apesar de deter uma pistola clandestina em casa e não hesitar em ir buscá-la, o que é certo é que o arguido tinha 49 anos e era primário quando cometeu o crime dos autos, sem voltar, que se saiba, a delinquir, depois de ter sido detido e libertado a seguir; o relatório do I.R.S. não desabona do arguido, e termina mesmo com a afirmação de que “caso venha a ser condenado, (…) possui condições intrínsecas e materiais para o cumprimento de uma medida não privativa da liberdade”. Daqui resulta que serão sobretudo considerações de prevenção geral positiva que decidirão da inviabilização da aludida suspensão da execução da pena de prisão.
XVI - O legislador quis estender a hipótese de suspensão a penas de prisão até 5 anos, sem se excluir, obviamente, à partida, nenhum tipo legal de crime, dessa possibilidade. A ressonância do presente caso é naturalmente mais forte a nível local, e o sentimento normal de tal comunidade irá no sentido de ser reclamada, para o arguido, uma pena de prisão efectiva, estando a par do condicionalismo que rodeia o evento. Mesmo em relação a todos quantos, em geral, do caso tiverem conhecimento, não poderá ficar instalada qualquer dúvida, sobre a adequada reacção do sistema, a um facto com a gravidade de se atentar voluntariamente contra a vida alheia. Serve para dizer, que se entende que a pena de prisão aplicada não deve ser suspensa na sua execução.
Proc. n.º 2191/08 -5.ª Secção Souto Moura (relator) Soares Ramos