ACSTJ de 25-02-2009
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Tribunal singular Pedido de indemnização civil Omissão de pronúncia In dubio pro reo Matéria de facto Competência do Supremo Tribunal de Justiça Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Infrac
I -Estando em causa uma pena aplicada que não excede 5 anos de prisão, ainda que suspensa na sua execução, não é admissível recurso para o STJ da decisão da Relação, face à interpretativa teleológica do disposto na al. b) do art. 400.º do CPP, tendo em conta a harmonia do sistema e o regime dos recursos em processo penal – cujo preâmbulo, nomeadamente, refere: «procurou-se simplificar todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso. Por isso, os tribunais de relação passam a conhecer em última instância das decisões finais do juiz singular e das decisões interlocutórias do tribunal colectivo e do júri (…)» –, e visto o disposto na al. c) do art. 432.º do CPP. II - Seria ilógico, contraditório e até irrisório, não fazendo qualquer sentido normativo (material e processual) que, em caso onde não era admissível recurso do acórdão da 1.ª instância para o STJ, por ter aplicado pena de prisão não superior a 5 anos, tendo, por isso, sido interposto recurso para a Relação – tribunal competente para apreciar esse recurso –, que lhe negou provimento, já pudesse haver recurso para o STJ dessa decisão do tribunal superior competente para o julgamento do mesmo recurso. III - É, pois, manifesto não ser admissível recurso para o STJ de decisão penal proferida por tribunal singular – cf., em sentido similar, os Acs. do STJ de 12-11-2008, Procs. n.ºs 3183/08 e 3546/08, ambos da 3.ª Secção. IV - Uma vez que a Relação negou provimento aos recursos, subsiste a decisão da 1.ª instância que condenou os demandados «a pagar solidariamente à demandante a quantia total de sessenta e cinco mil euros, acrescida de juros de mora desde a data de notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento», pelo que, excedendo essa quantia a alçada do Tribunal da Relação, é admissível o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil – cf. arts. 400.º, n.ºs 2 e 3, do CPP e 24.º da Lei 105/2003, de 10-12. V - O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal segue as regras do processo penal, atento o princípio da adesão (cf. arts. 71.º e ss. do CPP), embora a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime seja regulada pela lei civil – art. 129.º do CPP – quantitativamente e nos seus pressupostos. VI - Porém, a invocação de omissão de pronúncia respeita a questões de facto, integrantes do objecto penal do processo, cuja factualidade juridicamente relevante foi definitivamente fixada pelo acórdão da Relação. VII - Assim, não sendo tal acórdão recorrível nessa parte, e encontrando-se os factos fixados de harmonia com essa decisão, dela não pode conhecer o STJ, pois que, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito – cf. art. 434.º do CPP. VII - O princípio in dubio pro reo não é uma questão de direito; é um princípio de apreciação e valoração da prova privativo do processo penal e, portanto, integra matéria de facto relativa à decisão em matéria penal, só podendo ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. VIII - A ponderação sobre o uso de tal princípio pela instância recorrida não pode ter lugar no caso concreto, face à irrecorribilidade da decisão penal. IX - Por outro lado, o STJ não conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP como fundamento de recurso mas apenas oficiosamente quando os detecte na decisão recorrida, nos termos do art. 434.º do CPP. X - Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída – art. 570.º, n.º 1, do CC. XI - Mas é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa – art. 487.º do CC. XII - Não há culpa presumida do lesado. XIII - Vindo provado, para além do mais, que: -«Nos termos desse plano de segurança e saúde dessa obra, o responsável pela segurança da mesma é o empreiteiro geral ou alguém por ele nomeado»; -«Os arguidos FC e JR sabiam que era da sua responsabilidade garantir a protecção da obra e dos trabalhadores da mesma, nomeadamente, que era obrigatório a colocação de guarda-costas e cabeças nos pisos superiores da obra, e não obstante saberem dessa sua obrigação, agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, com intenção de não assegurar essas condições de segurança aos trabalhadores da dita obra, não obstante saberem que essa sua omissão podia colocar em perigo a integridade física e a vida dos trabalhadores, como aconteceu, embora não se tenham conformado com esse resultado»; -«No dia 13 de Março de 2004, cerca das 13h30m, o AF estava a trabalhar no primeiro andar da referida obra, sob as ordens e direcção do arguido JR»; -«O AF não trazia consigo qualquer equipamento de protecção individual»; -«O AF não era trabalhador do arguido AP»; -«A dada altura, o AF disse ao JR que ia buscar um martelo que se encontrava na varanda do lado. Instantes depois, e quando pretendia transpor a divisória da varanda para aceder à outra varanda, e em circunstâncias não concretamente apuradas, o AF desequilibrou-se e caiu da varanda onde estava a trabalhar, situada no primeiro andar, e ficou imobilizado no solo»; -«Se existissem guarda-corpos nas varandas, a queda podia ter sido evitada porquanto os mesmos, dada a altura de segurança que criam, impedem a queda de qualquer corpo dos pisos onde as mesmas estão instaladas»; conclui-se que não foi dado como provado qualquer facto culposo do lesado que tivesse concorrido para a produção ou agravamento dos danos. XIV - De harmonia com o art. 496.º, n.º 1, do CC, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e, segundo o n.º 3 do mesmo preceito, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º, designadamente o grau de culpabilidade do agente e a situação económica deste e do lesado. XV - Na indemnização pelo dano não patrimonial o pretium doloris deve ser fixado por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida – Ac. deste STJ de 07-11-2006, Proc. n.º 3349/06 -1.ª. XVI - A expressão «em qualquer caso» abrange tanto o dolo como a mera culpa – cf. CJ 1986, tomo 2, pág. 233, e Vaz Serra, RLJ 113.º/96. XVII - «Demais circunstâncias do caso» é uma expressão genérica que pretende referir-se a todos os elementos concretos caracterizadores da gravidade do dano, incluindo a desvalorização da moeda. XVIII - Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto. XIX - Como já se entendia no Ac. do STJ de 11-09-1994 (CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 92), «a indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do art. 496.º do Cód. Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa». XX - E a gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado, e deve ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ter gravidade bastante para justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. XXI - Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deve limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, «as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» – cf. Ac. do STJ de 17-06-2004, Proc. n.º 2364/04 -5.ª. XXII -À míngua de outro critério legal, na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais. E, por outro, conforme os casos, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento das existência no dia-a-dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica. XXIII -Tendo em conta que: -os factos ocorreram no dia 13-03-2004 – o AF não trazia consigo qualquer equipamento de protecção individual e estava a trabalhar no 1.º andar da referida obra; quando pretendia transpor a divisória da varanda para aceder à outra varanda, e em circunstâncias não concretamente apuradas, desequilibrou-se e caiu da varanda onde estava a trabalhar, e ficou imobilizado no solo, junto da base da grua que estava instalada no piso térreo dessa obra; -as varandas situadas no 1.º andar encontram-se a uma altura de cerca de 5,50 m do solo; -em consequência de tal queda, AF sofreu fractura craniana, com 16 cm, com infiltração nos tecidos ósseos e tecidos adjacentes, fractura da região occipital-parietal direita com 5 cm por 4 cm, apagamento generalizado das circunvoluções cerebrais e edema cerebral, múltiplos focos de contusão hemorrágica fronto-parieto-temporais, e do tronco cerebral, hemorragia tetraventrícular, hematoma extradural, parieto-occipital, hematoma subdural fronto-parieto-temporal direito; ao nível do tronco sofreu congestão e edema de ambos os pulmões: nos membros inferiores, sofreu fractura com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes, ao nível do terço superior da tíbia direita; lesões estas que foram causa adequada da sua morte em 16-03-2004; -aquando da queda do AF, nas varandas desse mesmo piso não existiam guarda-corpos. Se existissem, a queda podia ter sido evitada porquanto os mesmos, dada a altura de segurança que criam, impedem a queda de qualquer corpo dos pisos onde os mesmos estão instalados; -o arguido FC, na qualidade de empreiteiro, sabia que devia encarregar-se da segurança da obra, nomeadamente da colocação de guarda-costas e cabeças nos pisos superiores; o arguido JR, enquanto subempreiteiro, sabia que devia encarregar-se da segurança da referida obra, designadamente da colocação de guarda-costas e cabeças nos pisos superiores; ambos sabiam que era da sua responsabilidade garantir a protecção da obra e dos trabalhadores da mesma, nomeadamente que era obrigatória a colocação de guarda-costas e cabeças nos pisos superiores da obra, e não obstante saberem dessa sua obrigação, agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, com intenção de não assegurar essas condições de segurança aos trabalhadores da dita obra, não obstante saberem que essa sua omissão podia colocar em perigo a integridade física e a vida dos trabalhadores, como aconteceu, embora não se tenham conformado com esse resultado; -o AF estava a trabalhar no 1.º andar da referida obra, sob as ordens e direcção do arguido JR; -após a queda, o AF foi transportado para o Hospital de Felgueiras e depois para o Hospital de S. João, onde veio a falecer três dias depois, ou seja, no dia 16-03-2004; -nesses três dias, por força das lesões que essa queda lhe causou, o AF sofreu dores intensas e angústia; -a MF era casada com o AF; -o AF, aquando o acidente, tinha 43 anos de idade; -gozava de boa saúde e era uma pessoa robusta, e vivia em harmonia com a sua mulher; -a morte do AF causou à MF desgosto e sofrimento; -após a morte do AF,a MF passou a viver sozinha; -nos três dias em que o AF esteve internado, a MF sentiu-se angustiada e sofreu; -a MF viva do rendimento que o AF auferia; são de manter as indemnizações arbitradas na 1.ª instância, relativas à compensação pelo direito à vida de AF em € 40 000, a compensação pelos danos não patrimoniais que o AF sofreu nos três dias de internamento em € 10 000, e a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela sua esposa em € 15 000, confirmadas pelo acórdão recorrido, pois que se revelam equitativas, de harmonia com a gravidade do dano, e não são contrárias às regras da experiência.
Proc. n.º 390/09 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
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