ACSTJ de 18-02-2009
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Pedido de indemnização civil Aplicação da lei processual penal no tempo Caso julgado Acidente de viação Presunção de culpa Comissário Danos patrimoniais Danos futuros Incapacidade permanente parcial
I -Numa situação em que os factos, o acidente de viação, a decisão de 1.ª instância reformulada e a interposição do recurso são anteriores a 15-09-2007, data da entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, mas a decisão recorrida é posterior, tendo tido lugar em 06-05-2008, coloca-se a questão de saber se será de aplicar de imediato a disposição do n.º 3 do art. 400.º do CPP, introduzida por aquele diploma, que veio estipular a recorribilidade da decisão cível ainda que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, contrariando a jurisprudência fixada pelo “Assento” n.º 1/2002. II - No plano civilístico, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que a lei reguladora da admissibilidade do recurso é a vigente na data em que é proferida a decisão recorrida – lex temporis regit actum. III - Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 56-57) salientam que entre as normas que regulam os recursos importa distinguir, para o efeito da sua aplicação no tempo, entre as que fixam as condições de admissibilidade do recurso e as que se limitam a regular as formalidades da preparação, instrução e julgamento do recurso. IV - No que respeita a estas, porque não interferem na relação substantiva, cuidando do puro formalismo processual, são imediatamente aplicáveis, não só aos recursos que venham a ser interpostos no futuro em acções pendentes como aos próprios recursos pendentes. V - No que toca às normas que fixam as condições de admissibilidade do recurso, considerando que a sua aplicação pode ter influência decisiva na relação substantiva, a doutrina distingue os tipos de situações que podem verificar-se. VI - «A nova lei que admita recurso de decisões que anteriormente o não comportavam, é ponto assente que não deve aplicar-se às decisões já proferidas à data da sua entrada em vigor. De outro modo, a nova lei destruiria retroactivamente a força do caso julgado que a decisão adquirira à sombra da antiga legislação». VII - «Em relação às decisões que venham a ser proferidas (no futuro) em acções pendentes, a nova lei é imediatamente aplicável, quer admita recurso onde anteriormente o não havia, quer negue o recurso em relação a decisões anteriormente recorríveis. As expectativas criadas pelas partes ao abrigo da legislação anterior já não tinham razão de ser na altura capital em que a decisão foi proferida e, por isso, já não justificam o retardamento da aplicação da nova lei». VIII - De acordo com o n.º 1 do art. 5.º do CPP, a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior. IX - Num caso, como o presente, em que não houve recurso da matéria criminal e o da matéria cível é interposto somente pelo demandante, não é de chamar à colação o disposto no n.º 2 daquele art. 5.º, já que, no caso, não há que atender a garantias da situação processual do arguido, de protecção dos direitos de defesa, ou seja, encarar o não recurso como limitação do seu direito de defesa, agravamento sensível da situação processual do arguido ou quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo. X - Em matéria de recursos tomar como ponto de referência a data da decisão proferida em 1.ª instância só fará sentido – e fará todo o sentido – se estiver em causa a salvaguarda das garantias de defesa do arguido, o direito do arguido ao recurso, maxime quando a lei nova expropriar uma possibilidade de recurso antes prevista. XI - Por outro lado, a aplicação da lei nova não desrespeita o caso julgado formado com respeito à parte criminal, não correndo riscos a estabilidade da decisão nessa parte, encontrando-se o arguido definitivamente condenado, não havendo que salvaguardar qualquer aspecto da posição processual do arguido, qua tale, que em nada é prejudicado pela aplicação imediata da nova lei. XII - Sendo possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como inculca o n.º 1 do art. 403.º do CPP, deve manter-se no plano da facticidade uma lógica de coerência interna, apenas podendo ser reapreciado o que pode ser separado, sempre sem prejuízo da unidade e coerência do que ficou assente em sede de definição do acidente e determinação do prejuízo susceptível de reparação, naquilo que consubstancia apenas matéria de facto. XIII - Este STJ já se pronunciou sobre esta questão, como se extrai dos Acs. de 05-11-2008, Proc. n.º 3182/08, e de 10-12-2008, Proc. n.º 3638/08, ambos da 3.ª Secção e do mesmo relator, onde se conclui que o recurso restrito ao pedido cível não pode, em nenhuma circunstância, ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal, não sendo, consequentemente, admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta tal responsabilização criminal; o recurso relativo à matéria cível apenas pode abarcar a impugnação da decisão proferida no que toca especificamente ao conhecimento e decisão próprios do pedido cível, ou seja, ao prejuízo reparável. XIV - A culpa presumida pressupõe uma relação de comissão, que o condutor de certo veículo causador de um acidente esteja a agir como comissário de outrem – o comitente –, o que implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só esta possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo, seu subordinado. XV - A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada. Como observa Jacinto Bastos (in Das Obrigações em Geral, tomo 2), a responsabilidade objectiva assenta neste caso em a actividade do comissário representar, tanto na responsabilidade contratual como na extracontratual, um simples prolongamento da actividade do comitente, tudo se passando como se fosse este a agir. XVI - Para que funcione a presunção de culpa estabelecida no n.º 3 do art. 503.º do CC não basta a demonstração da propriedade e a presunção natural da direcção efectiva e interessada do veículo. XVII - A presunção de que o dono do veículo tem a sua direcção efectiva e interessada, uma vez provada a propriedade do mesmo, esgota-se aí, não podendo dar lugar a uma segunda presunção, a de que, tendo em regra o proprietário a direcção do veículo e a sua utilização interessada, quem quer que o conduza é seu comissário – cf. Ac. do STJ de 07-01-1991, BMJ 403.º/393. XVIII - O simples facto de o arguido conduzir o veículo em causa não significa que o fizesse por conta e sob a direcção do pai, que estivesse encarregado de alguma missão, de uma função que lhe fosse confiada, que se encontrasse vinculado ao dono do veículo por uma relação de subordinação, que dele recebesse ordens ou instruções, e, não estando provada a relação comitente-comissário, não há que lançar mão dessa presunção. XIX - Numa situação em que se está perante responsabilidade partilhada, com fixação de culpa efectiva, culpa positivamente provada, embora em concurso, não faz sentido o apelo a culpa presumida, sendo que a relação estabelecida entre pai e filho não cabe na configuração de comissão. XX - Os danos patrimoniais futuros não se restringem aos correspondentes à perda da capacidade aquisitiva de ganho, ou seja, ao plano da actividade estritamente profissional. XXI - Há que distinguir duas formas de afectação funcional, duas vertentes que podem resultar da incapacidade permanente: -por um lado, a susceptibilidade de afectação e diminuição definitiva ou temporária da potencialidade de ganho, por via da perda ou diminuição da remuneração, ou ainda por implicar para o lesado um grau de esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho; -uma outra, não relacionada directamente com proventos profissionais, mas antes com dificuldades acrescidas para o exercício das várias tarefas e actividades gerais do dia-a-dia, fora do contexto profissional e de perda de rendimento de trabalho, relevando aqui a incapacidade funcional do corpo humano ou de um seu órgão como dano corporal em si, despido da sua ligação à vertente patrimonial, entendendo-se neste caso que deve ter-se em conta o designado dano biológico, ainda como dano patrimonial futuro, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado. XXII -Tendo em consideração que: -do acidente resultaram para o recorrente sequelas geradoras da incapacidade permanente parcial de 13%, o que representa esforço acrescido no exercício profissional, situação a não considerar atenta a aposentação; -essa incapacidade funcional (assente sobretudo na diminuição ligeira da força da mão direita, sendo o recorrente destro, ligeira limitação dos movimentos do ombro direito, ligeira atrofia do membro inferior direito e limitação dos movimentos do joelho direito) determina que o demandante não possa continuar a exercer as actividades desportivas de caça, pesca e atletismo a que se dedicava antes do acidente com regularidade e desde há longos anos, pelo que terá direito a ser por ela indemnizado; -«Sempre que as sequelas existentes e o prejuízo funcional dela resultante têm algum reflexo nas capacidades de acção ligadas a actividades lúdicas e de lazer (incluindo actividades de relacionamento social ou de expressão artística) que a vítima praticava previamente ao traumatismo que determinou o dano em apreço, estamos perante um prejuízo acrescido que, dentro do princípio da reparação integral dos danos, terá de ser avaliado» – cf. Nuno Duarte Vieira, in A “missão” de avaliação do dano corporal em direito civil, Sub Judice, n.º 17, Janeiro/Março 2000, págs. 23-30; -nessa quantificação só se pode recorrer à equidade; tem-se por equilibrado fixar a reparação em € 5000, incidindo sobre a quota parte cabível em função da determinação da concorrência de culpas juros de mora nos termos fixados pelas instâncias.
Proc. n.º 2839/08 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
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