ACSTJ de 11-02-2009
Concurso de infracções Cúmulo jurídico Fundamentação Pena única Pluriocasionalidade Prevenção geral Prevenção especial Princípio da proporcionalidade Medida concreta da pena
I -Acentuando-se no acórdão cumulatório as afirmações produzidas no relatório social no sentido da existência de uma «“frágil interiorização do desvalor da conduta sancionada, com uma percepção deficitária da sua gravosidade social e das normas por que deve pautar a vida comunitária”; a falta de consistência dos projectos laborais, o entorno sócio-familiar frágil, e por “continuar a evidenciar forte défice cognitivo-crítico e instabilidade emocional”, conforme consta do despacho do Tribunal de Execução das Penas, de 27.01.2006», e referindo o mesmo, relativamente aos restantes vectores da formação da pena conjunta que «Considerando em conjunto os factos, verificamos que o arguido tem vindo a praticar de forma reiterada, crimes contra o património; a reiteração da sua conduta consta das decisões condenatórias já que se reportam a factos praticados pelo arguido desde 1995 até 2000, altura em que veio a ser detido. Tal como consta do relatório social o arguido denota uma tendência para a “reincidência”, agravada, do nosso ponto de vista, com a ausência de inibição da prática de crimes mesmo em estado de reclusão, como foi o caso dos autos em que os factos foram praticados a partir do estabelecimento prisional», tal referência, e só ela é apresentada como pressuposto decisório, é manifestamente limitada e restritiva, pois que se exime a uma visão global do percurso criminoso, não olhando para os factos naquilo que relevam como fundamento da pena, quer na sua vertente de ilicitude quer, necessariamente, da culpa. II - Na verdade, não é inócua a diferenciação entre a prática de crimes de burla de uma dimensão qualitativa e quantitativa menor e a burla cometida através de meios elaborados ou atingindo patamares elevados em termos de pluralidade de ofendidos ou de montantes – tal dimensão retrata a perspectiva global de ilicitude e é, no mínimo, desproporcionado punir com a mesma severidade crimes contra o património de dimensões diferentes e situados em patamares qualitativos diversos. III - A aferição da prevenção especial, em que o eixo essencial da decisão recorrida se centra, não pode surgir desgarrada dos factos, sob pena de a punição deixar de ter como fundamento o facto criminoso praticado e passar a assentar na personalidade do agente. IV - Temos por correcto na elaboração do cúmulo jurídico o entendimento de que, após o estabelecimento da respectiva moldura legal a aplicar, em função da penas parcelares, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção. Porém, como afirma Figueiredo Dias, nem por isso se dirá que estamos em face de uma hipótese normal de determinação da medida da pena, uma vez que a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º do CP, um critério especial que se consubstancia na consideração conjunta dos factos e da personalidade. V - Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». Como referem Maurach, Gossel e Zipf, a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos (Schonke-Schröder-Stree), «a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa». VI - Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). VII - A substituição daquela operação valorativa por um processo de índole essencialmente aritmética de fracções e somas torna-se incompatível com a natureza própria da segunda fase do processo. Com efeito, fazer contas indica voltar às penas já medidas, ao passo que o sistema parece exigir um regresso aos próprios factos. Dito de outro modo, e como refere Cláudia Santos (RPDC, Ano 16.º, pág. 154 e ss.), as operações aritméticas podem fazer-se com números, não com valorações autónomas. VIII - Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de ilicitude reportada à globalidade dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, e ao núcleo de bens essenciais, em relação à ofensa de bens patrimoniais, como sucedeu no caso vertente. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa revelada pelo número de infracções, pela sua perduração no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade. IX - Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado. X - Recorrendo à prevenção, importa verificar relativamente à prevenção geral o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente, para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos. XI - Serão esses factores de medida da pena conjunta que necessariamente deverão ser tomados em atenção na sua determinação, sendo então o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do quantum necessário para se atingir as finalidades da mesma pena mas tendo, também, presente o sentido da proporcionalidade que deve presidir à fixação da pena conjunta. XII - É destituída de fundamento a alusão a especiais razões de prevenção especial perante um burlão que fez dessa actividade a sua profissão, mas sem que as quantias alcançadas tenham atingido um valor elevado. Embora subsista a frequência, manifestamente inusitada, dos actos ilícitos praticados, a sua perspectivação unicamente em termos de prevenção especial, atribuindo uma especial carga sancionatória, carece de fundamento legal. XIII - Torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto e a gravidade da pena: ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado, no exercício do seu direito de punir, e esta sanção poderá importar uma limitação da sua liberdade, sendo que uma das principais ideias presente no princípio da proporcionalidade é, justamente, a de invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo, isto é, a de a invadir na medida do estritamente necessário à finalidade da pena que se aplica, porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido. XIV - Atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas à transcendência social – mais do que ao dano social – que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. XV - É exactamente essa proporcionalidade do ponto de vista preventivo geral e especial, avaliada em função do bem jurídico protegido e violado, que está em causa com a pena aplicada, de 13 anos de prisão, sendo certo que, em abstracto, em termos parcelares, o crime a que corresponde o limite máximo da moldura penal se situa nos 8 anos de prisão. XVI - Assim, não deve ser mantido o cúmulo jurídico efectuado, indo o arguido condenado na pena única de 10 anos de prisão.
Proc. n.º 4131/08 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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