Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 08-01-2009
 Tráfico de estupefacientes Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Dupla conforme Aplicação da lei processual penal no tempo Competência do Supremo Tribunal de Justiça Pena de prisão Suspensão da execução da pena Aplicação da lei penal no te
I -É admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação proferido em 04-03-2008 [que julgou improcedente o recurso interposto], porque o acórdão da 1.ª instância [que condenou o recorrente, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, na pena de 4 anos e 5 meses de prisão] é anterior às alterações introduzi-das pela Lei 48/2007, de 29-08, tendo sido com a prolação de tal decisão que se abriu a nova fase processual dos recursos.
II - Nessa altura, a lei processual penal admitia recurso da decisão condenatória até ao STJ, mesmo que a Relação viesse a confirmar a decisão da 1.ª instância. Com efeito, o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP dispunha o seguinte: «Não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções». Portanto, para se verificar a chamada dupla conforme obstativa de recurso para o STJ, era necessário que a pena aplicável não fosse superior a 8 anos de prisão.
III - Actualmente, vigorando a alteração introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, o critério não é o da pena aplicável, mas o da pena aplicada. Aplicando-se este último critério, não seria admissível o recurso para este Tribunal, dado que a Relação confirmou a decisão da 1.ª instância e a pena aplicada não é superior a 8 anos.
IV - Todavia, tendo a alteração sido introduzida em plena fase processual de recursos, não é a mesma de aplicar imediatamente, porquanto contrariaria o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPP: «A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa». É um facto que, da aplicação imediata da nova lei resultaria a consequência prevenida naquele dispositivo legal, com incidência no direito de defesa do arguido, pois ser-lhe-ia amputado um grau de recurso, que a lei vigente ao tempo da interposição do recurso da decisão da 1.ª instância admitia.
V - O recurso para este Tribunal é admissível à sombra de tal lei, sendo certo que ao crime pelo qual o recorrente foi condenado é aplicável pena superior a 8 anos de prisão.
VI - O art. 50.º do CP (redacção da Lei 59/2007, de 04-09, aplicável por força do art. 2.º, n.º 4, do mesmo diploma legal – lei mais favorável) contempla a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos por uma pena não detentiva, consistente em suspender a execução dessa pena pelo mesmo período de tempo.
VII - Ter a pena aplicada sido estabelecida em medida não superior a 5 anos é o primeiro pressuposto (o pressuposto indispensável) para a substituição da pena de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder/dever ou poder vinculado. É necessário, no entanto, que para além do referido pressuposto, que é um requisito de ordem formal, se verifiquem outros requisitos, estes de ordem material e por isso agrupados habitualmente sob a designação comum de pressuposto material. São eles os que vêm indicados na segunda parte do n.º 1 daquele art. 50.º e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
VIII - A suspensão da execução da pena tem sobretudo na sua base considerações de prevenção especial, traduzidas no facto de, considerando a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, for possível concluir, por um juízo de prognose favorável, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para o afastar da criminalidade. As exigências de prevenção geral impor-se-ão aqui como limite, isto é, como circunstância obstativa, quando a defesa do ordenamento jurídico reclame, em última instância, a efectivação da pena de prisão.
IX - Considerando que: -o contacto do recorrente com as drogas (e drogas leves) tem sido muito esporádico e ligado a circunstâncias fortuitas, apesar de viver num «bairro associado ao consumo e tráfico de estupefacientes»; -não obstante a constatação de circunstâncias adversas, concluiu o 12.º ano em regime nocturno, ao mesmo tempo que foi trabalhando em variadíssimas profissões; mais tarde, sob o incentivo da namorada, iniciou um curso de nível superior em Instituto Politécnico, ao mesmo tempo que trabalhava; desinteressou-se desses estudos após o falecimento da namorada, caindo então no consumo ocasional das referidas drogas leves; retomou esses estudos presentemente, já em fase de cumprimento da medida coactiva de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, concluindo o 3.º ano do curso onde estava inscrito; tem revelado uma postura digna e adulta no cumprimento da referida medida; alterou o seu estilo de vida de uma forma construtiva, com auxílio da família; -o recorrente não tem antecedentes criminais e confessou os factos, muito embora se possa dizer que tal confissão tem pouco relevo para a descoberta da verdade, sendo certo, todavia, que representa sempre uma assunção do facto praticado, num julgamento público; -quanto às circunstâncias da infracção, o arguido acedeu a transportar no seu carro uma quantidade indeterminada de haxixe, que depois se veio a revelar consistir em 80,5 kg, a troco do recebimento de uma quantia de € 500, acrescida da importância de € 100 para pagamento de portagens e gasolina; todas estas circunstâncias confluem no sentido de se esperar fundadamente do arguido um trajecto futuro de vida pautado pela observância das regras sociais de boa convivência, mormente das regras jurídicas de carácter penal, não cometendo crimes; o facto cometido pelo arguido e que levou à sua condenação enquadra-se, pelo menos aparentemente e segundo o seu estilo de vida, num circunstancialismo ocasional, para o qual terão contribuído os «azares» a que tem sido sujeito, avultando a morte da namorada e um acidente de mota; de resto, pode dizer-se que, atentas as circunstâncias em que se desenvolveu cultural, social e economicamente, o arguido tem conseguido, apesar de tudo, resistir à adversidade que delas promana e ascender a um nível talvez pouco comum.
X - É certo que as exigências de prevenção geral são, neste tipo de crimes, muito fortes, mas convém não sobrevalorizá-las de forma abstracta ou mecânica. Considerando que o arguido: -serviu de «correio» de uma droga leve, em circunstâncias que minoram quer a sua culpa, quer a ilicitude do facto, sendo de considerar que mesmo a quantidade transportada não era tão significativa como isso, tendo em conta tratar-se de haxixe; -sofreu já uma sanção de certo tomo, como foi a de ficar privado do seu carro, por este ter sido declarado perdido a favor do Estado, o que não deixa de constituir um revés com o seu quantum de sacrifício, limitando-lhe a liberdade de movimentos, do mesmo passo que perdeu o correspondente ao seu valor económico; -cumpriu já quase 3 anos de privação de liberdade, primeiro em regime de prisão preventiva (uns dias) e depois em regime de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, em que ainda se encontra; estes são factos que atenuam fortemente as exigências de prevenção geral, ao mesmo tempo que serviram (principalmente a privação de liberdade) para o arguido interiorizar a reprovação da sua conduta, tendo já dado mostras de tal efeito positivo, quer pela forma como tem cumprido a medida coactiva, quer pela valorização pessoal e aproveitamento positivo das suas capacidades.
XI - Neste contexto, o encarceramento do arguido num estabelecimento prisional representaria um sacrifício excessivo e, porventura, mesmo contraproducente do ponto de vista das finalidades da punição. Por tudo isto, bastará a simples suspensão da execução da pena.
Proc. n.º 2041/08 -5.ª Secção Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor