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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 27-01-2009
 Competência da Relação Recurso da matéria de facto Ónus da impugnação especificada Sentença criminal Fundamentação Erro notório na apreciação da prova Competência do Supremo Tribunal de Justiça Conhecimento oficioso Legítima defesa Pressupostos
I -O Tribunal da Relação fecha, como regra, o ciclo de conhecimento da matéria de facto, nos termos do art. 428.º do CPP, a ele cabendo a reapreciação daquela matéria, não de uma forma ilimitada, ignorando a fixação naquele domínio pela 1.ª instância, procedendo a um seu reexame na globalidade, fazendo do anterior julgamento autêntica tábua rasa, como se não existisse e, ainda assim, no pressuposto do cumprimento, nas conclusões do recurso, do ónus de impugnação imprimido no art. 412.º, n.º 4, do CPP.
II - Esse julgamento é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam conduzir.
III - A extensão desse julgamento, restrito a pontos de facto concretos, é uma conclusão recorrente deste STJ, tanto bastando para se rejeitar, liminarmente, a pretensão do recorrente com o sentido de atingir toda a matéria de facto – cf. Ac. de 09-03-2006, Proc. n.º 06P461.
IV - Não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação restrita da matéria de facto, o exercício por parte da Relação de um poder que se quede por afirmações de pura adesão aos fundamentos da decisão, de aceitação puramente acrítica das provas, apoiada na afirmação exteriorizada na estruturação formal decisória, ou seja, na fundamentação da credibilidade das provas, sob alegação de que são obtidas em função da imediação, oralidade e concentração actuadas em 1.ª instância, para a partir daí, em operação de sinal contrário, se concluir pela imutabilidade da matéria de facto, quando o que se pretende é exactamente o reexame dos factos com apoio no elenco das provas apresentadas e, de seguida, resposta à demanda impugnatória enxertada no recurso, sob pena de se frustrar o encargo confiado à Relação de assegurar um segundo grau de jurisdição em termos de matéria de facto e a sua reponderação em recurso em um grau.
V - O que se pede à Relação é um reexame meramente parcelar, substitutivo, envolvendo uma participação activa de olhos postos na matéria de facto posta em crise e um juízo crítico, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, incidente sobre ela, um juízo reflexivo, expressivo de uma atitude de proximidade com os factos, falho, sem dúvida, da imediação de que a 1.ª instância é beneficiária, mas que, porque incide sobre uma base factual já prefixada, comporta autoridade bastante para ser a derradeira palavra na matéria, seja de confirmação, seja de – à luz daquele exame e juízo censórios – alteração, ou até mesmo a afirmação de um estado de dúvida, imperando, ainda aí, a livre convicção probatória, desde que lhe esteja subjacente o processo lógico, objectivamente explicitado, que torne compreensível a opção factual na problemática instalada. A jurisprudência deste STJ é abundante e sem discrepância, merecendo, por isso mesmo, ao menos, ser tomada como fornecendo critérios de orientação, caminhos de solução.
VI - O legislador do CPP de 2007, através da Lei 48/2007, de 29-08, abandonou a transcrição da audiência de julgamento para pôr termo a uma das principais razões de morosidade na tramitação do recurso: o recorrente pode transcrever as passagens mas não é obrigado; o tribunal ad quem é que procede à audição ou visualização das passagens indicadas e outras que, porventura, repute relevantes, clarificou o legislador na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X, que precedeu a Lei 48/2007.
VII - O Tribunal da Relação repondera a matéria de facto impugnada quando ouve as passagens indicadas ou as visualiza e não quando credencia a fundamentação qua tale, valorizando-a sob pretexto de que ante ele a prova se não desenrolou, com ela não manteve contacto e imediação, e, aderindo àquela valia, recusa, sem mais, reexaminar o facto.
VIII - A motivação das sentenças judiciais é um dos Direitos do Homem, constante do art. 6.º, § 1, da CEDH, reputada como o direito do acusado a um processo justo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da CRP, e é considerada como o remédio essencial contra o arbítrio, através dela prestando o juiz contas, aos sujeitos processuais e à colectividade, dos critérios adoptados e dos resultados adquiridos.
IX - Não tem que consistir na análise aprofundada de todas as deduções das partes nem num exame pormenorizado de todos os elementos do processo, não tem que apresentar uma extensão “épica” (observa o Juiz Franz Matsher, citado no estudo de Lopes Rocha, in Documentação e Direito Comparado, BMJ n.ºs 75/76, págs. 99 e ss.), convertendo a motivação num complexo processo escrito e por vezes contraditório, satisfazendo-se com um raciocínio justificativo mediante o qual o juiz mostra que a decisão se funda em “bases racionais idóneas” para a tornarem aceitável, credível.
X - O erro notório, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP – que se cifra num erro insustentável na apreciação das provas, conducente e fixando factos materiais chocantes e arbitrários, que a lógica e o senso comum desmentem, devendo resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, pela sua imediata intuição, sem esforço de detecção –, não pode, atenta a sua conexão com a matéria de facto, erigir-se em fundamento de recurso para este STJ.
XI - Oficiosamente, como é jurisprudência pacífica, impõe-se, no entanto, que o STJ o declare, como os demais enunciados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, situando-se, ainda, dentro dos seus limites de competência específica de dizer o direito, sempre que se torne preciso, ao aplicá-lo, dispor de uma base factual escorreita, em ordem a estabelecer a coerência interna do decidido, a harmonia das suas premissas do silogismo judiciário, uma das quais repousa nos factos provados.
XII - A legítima defesa, nos termos do art. 32.º do CP, pressupõe que o facto é praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores; não pré-ordenada, ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime; actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação; e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado, menos gravoso ou prejudicial – por a todo o direito corresponderem “limites imanentes” –, a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.
XIII - Mesmo quando é enormíssima, mediante o recurso a um só meio, a desproporção entre o dano causado por esse meio e o interesse por ele defendido, tem de entender-se que a agressão é legítima, suportando aquela causa de exclusão de ilicitude.
XIV - Taipa de Carvalho, alargando o conceito de actualidade, recondu-la também àqueles casos em que a agressão não seja, em si mesma, ainda idónea a lesar o bem jurídico e nem sequer constitua um começo de lesão, mas seja, contudo, de esperar, segundo a experiência normal, que tal conduta se sucederá – cf. A Legítima Defesa, Coimbra Editora, pág. 272.
XV - A legítima defesa não dispensa, ainda, a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a natureza subsidiária da defesa face à actuada pelos órgãos do Estado, requisito não enunciado no CP82, em contrário da versão de 1886, mas de que a jurisprudência não abdica.
XVI - Essencial à legítima defesa é o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque, se suspender uma agressão ilegítima actual. Essa intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem.
XVII - Segundo a jurisprudência deste STJ, o agente há-de ter consciência da legítima defesa, enquanto elemento subjectivo da acção, de afirmação de um seu direito, de realização, no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso, pese embora com aquela vontade ou intenção de legítima defesa possam concorrer outros motivos, como o ódio, a vingança ou a indignação.
Proc. n.º 3978/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral