Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-12-2008
 Abuso de confiança fiscal Crime continuado Infracções contínuas sucessivas Aplicação da lei penal no tempo Consumação Apropriação Constitucionalidade Condição da suspensão da execução da pena Suspensão da execução da pena Prazo
I -Constituindo o crime continuado, segundo a definição do n.º 2 do art. 30.º do CP, “a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, de modo algum pode a actividade praticada pelo arguido ser considerada como continuação criminosa: não só não ressalta da matéria de facto que o recorrente, enquanto sócio-gerente de A, tenha agido por pressão de alguma circunstância exterior que tenha produzido uma diminuição da sua culpa; como, pelo contrário, ficou provado que a sociedade arguida ao apoderar-se das quantias de IVA cobrado e de IRS retido, fazendo-as suas, “quis obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, utilizando-as para fins empresariais, no interesse da empresa e do arguido financiando-se à custa do Estado” e, muito especialmente que “na contabilidade da sociedade arguida figuram registados créditos sobre os sócios no montante de € 877.084,19 o que traduz uma descapitalização da primeira em benefício dos segundos”. Provado ficou também que “a falta de entrega aos serviços da administração fiscal dos impostos devidos arrastou-se no tempo, integrando-se na forma de actuação usual da sociedade arguida e do seu gerente, o ora arguido e ocorria sempre que existiam dificuldades de liquidez” e, perante a falta de liquidez, o recorrente tomou a resolução de deixar de entregar as importâncias devidas ao Estado relativas ao IVA, que recebera dos seus clientes, e ao IRS, que deduzira aos seus trabalhadores.
II - Esta factualidade integra melhor a figura denominada de “infracções contínuas sucessivas”, que se renovam constantemente em todos os seus elementos constitutivos (cf. Lopes Rocha, “Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço”, Jornadas de Direito Criminal – Centro de Estudos Judiciários, pág. 102, inspirado na doutrina francesa).
III - Com a publicação do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05-06, passou a considerar-se suficiente para a consumação do crime de abuso de confiança previsto no art. 105.º a não entrega da prestação tributária deduzida nos termos da lei, enquanto a apropriação dessas importâncias era elemento constitutivo do crime previsto no art. 24.º do RJIFNA; da alteração legislativa resulta um agravamento da situação do agente, apesar de terem sido mantidas as molduras penais abstractas.
IV - Perante a sucessão destes dois regimes, a lei nova só pode vir a ser aplicada à totalidade dos factos, se os que ocorreram no domínio da lei antiga preencherem o tipo previsto na lei que então se encontrava em vigor.
V - O reconhecimento de que o RGIT é um regime que sucede ao RJIFNA, não justifica o entendimento – sufragado pelo recorrente –, de que devem ser punidos apenas os factos verificados durante a vigência da nova lei, com a consequente despenalização dos praticados anteriormente.
VI - Não procede, também, a tese sustentada pelo recorrente de que, sendo punida, através do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, não a apropriação, mas a falta de entrega das prestações tributárias, houve uma descontinuidade relativamente ao art. 24.º, n.º 1, do RJIFNA; com efeito e sem embargo de se dever reconhecer que, com a publicação do RGIT, o legislador introduziu profundas alterações no crime de abuso de confiança fiscal, não é menos certo que em ambas as versões se tutela o património tributário do Estado, sancionando-se criminalmente o incumprimento do dever de entrega de prestação tributária que o agente detém por força dos deveres de colaboração impostos pelas leis fiscais, com base numa relação de confiança.
VII - Não contende com os princípios da necessidade das sanções penais, da igualdade e da proporcionalidade, não sendo inconstitucional, o art. 14.º do RGIT, que obriga a que a suspensão da execução da pena fique sujeita à condição do pagamento da indemnização, pois, como se afirmou no ac. de 21-12-2006 – Proc. n.º 2946/06 -5.ª –, “a exigência do pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, à margem da avaliação do quadro económico do responsável tributário, nada tem de desmedida, mostrando-se inteiramente justificada pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário”.
VIII - A alteração de paradigma quanto ao tempo de suspensão da execução da pena, operada pela reforma do CP levada a efeito pela Lei 59/2007, de 04-09, ao impor que o tempo de suspensão seja igual ao da medida concreta da pena de prisão, desde que superior a 1 ano, coloca a questão da sua aplicabilidade às infracções fiscais, sabido que, nos termos do art. 3.º do RGIT, as normas do CP são subsidiariamente aplicáveis IX-Procurando a lei com os ilícitos fiscais proteger as receitas tributárias enquanto componente activa do património tributário do Estado, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena nestes casos se afaste do novo regime geral do CP, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que na realidade permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta.
X - De todo o modo, configura-se uma questão de aplicação da lei penal no tempo. Assim, se, em abstracto, a nova norma do art. 50.º do CP é, em princípio, mais favorável ao agente, por ter retirado ao julgador a possibilidade de alargar o período de suspensão para limites superiores ao da pena aplicada, de harmonia com o seu juízo de prognose, tal regime, mostra-se, em concreto, desfavorável ao recorrente, porque, ao restringir o período de duração da suspensão, vai obrigá-lo a um esforço financeiro bem maior para conseguir pagar, num período mais curto, o elevado montante da prestação tributária em dívida e legais acréscimos, para poder beneficiar da suspensão da execução da pena que foi fixada.
Proc. n.º 20/07 -5.ª Secção Arménio Sottomayor (relator) ** Souto Moura Soares Ramos Simas Santos