Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 10-12-2008
 Concurso de infracções Conhecimento superveniente Cúmulo jurídico Pena única Fundamentação Omissão de pronúncia Nulidade da sentença
I -O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, aplicável ao caso de conhecimento superveniente do concurso, adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.
II - Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.
III - Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação. Afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP.
IV - Tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz – ou puramente mecânico e portanto arbitrário», embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor nem a extensão pressupostos pelo art. 71.º.
V - Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
VI - Contudo, na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo factor com o mesmo sentido: assim, se a decisão faz apelo à gravidade objectiva dos crimes está a referir-se a factores de medida da pena que já foram devidamente equacionados na formação das penas parcelares.
VII - Por outro lado, afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.
VIII - Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade. Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado – cf. Ac. deste STJ e desta 3.ª Secção de 09-01-2008, Proc. n.º 3177/07, Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 197 e ss., e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 276 e ss..
IX - Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do seu conjunto, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso – cf. Ac. do STJ de 06-02-2008, Proc. n.º 4454/07 -3.ª.
X - Não é necessário nem útil que a decisão que efectue o cúmulo de penas constantes de condenações já transitadas em julgado enumere os factos provados que integraram as decisões onde foram aplicadas as penas parcelares, mas já é necessário que a decisão cumulatória descreva ou resuma todos os factos pertinentes de forma a habilitar os destinatários da decisão e o tribunal superior a conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos, bem como os factos anteriormente provados que demonstrem qual a personalidade, modo de vida e inserção social do agente, com vista a poder compreender-se o processo lógico, o raciocínio da ponderação conjunta dos factos e personalidade do mesmo que conduziu o tribunal à fixação da pena única (cf. Ac. deste Supremo de 27-03-2003, Proc. n.º 4408/02 -5.ª).
XI - Numa situação em que o acórdão recorrido, apesar de se referir aos pressupostos legais formais da realização do cúmulo e de citar o Prof. Figueiredo Dias sobre os pressupostos materiais de determinação da medida da pena do cúmulo, não indica, ainda que em resumo sucinto, os factos atinentes às ilicitudes desencadeadoras das condenações objecto de concurso, e, em termos de valoração do ilícito global, apenas refere «Há que ponderar os factos e a personalidade do arguido, designadamente que ambos os crimes revestem gravidade significativa e que os maus tratos ao cônjuge se prolongaram por quase dois anos, impondo a fixação de uma pena de prisão efectiva, quer em primeira instância, quer com a sua confirmação pelo Tribunal Superior, que o arguido actualmente cumpre. Atende-se ainda a que o arguido sofreu condenação anterior em processo do Tribunal Militar da Marinha, sendo condenado na pena de 90 dias de multa, pela prática de crime de furto, tendo tal pena sido declarada extinta pelo cumprimento, confessou os factos dos presentes autos integralmente e sem reservas, com relevância para a descoberta da verdade e revelou arrependimento; À data dos factos era consumidor de dez a quinze gramas de […] uma quantia mensal entre os 600 e os 800 euros, possui 7º ano de escolaridade, tinha emprego garantido junto da sua anterior entidade patronal e o apoio da namorada. Tem uma filha com um ano e seis meses de idade que vive com a mãe, mas com quem pretende manter relação afectiva. Tudo visto, ponderando ainda que importa aplicar uma pena de prisão que possibilite a sua efectiva reintegração social, não descurando as necessidades de prevenção geral positiva, entende-se como adequada a pena única de 5 anos e 2 meses de prisão», é evidente que tal decisão não efectua uma ponderação em conjunto, interligada, quer da apreciação dos factos, de forma a poder avaliar-se globalmente a gravidade destes, quer da personalidade neles manifestada, de forma a concluir sobre a sua motivação subjacente (se oriunda de tendência para delinquir ou de pluriocasionalidade não fundamentada na personalidade), nem sobre os efeitos previsíveis da pena aplicada no comportamento futuro do agente, inexistindo, pois, fundamentação específica sobre a determinação da pena do cúmulo que, aliás, constituiu o objecto da audiência realizada.
XII - Se, para além disso, ao proceder ao cúmulo jurídico de penas, o tribunal não fez alusão a uma condenação sofrida pelo arguido, transitada em julgado e que se encontra em concurso com as levadas em conta pela decisão recorrida, apesar de a mesma já constar do CRC junto aos autos – sendo que a factualidade subjacente a tal condenação faz parte integrante do objecto da audiência nos termos do art. 472.º do CPP, e é necessariamente relevante para valoração do ilícito global perpetrado – omitiu conhecimento de questão de que devia conhecer, o que constitui omissão de pronúncia, a implicar nulidade da decisão recorrida, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Proc. n.º 3851/08 -3.ª Secção Pires da Graça (relator) Raul Borges