ACSTJ de 10-12-2008
Recurso de revisão Natureza Declaração de inconstitucionalidade Pena de expulsão Princípio da adequação
I -A consagração da revisão de sentença na lei ordinária é uma decorrência constitucional, que actualmente encontra assento no art. 29.º da Lei Fundamental, todo ele subordinado à aplicação da lei criminal. II - Mais do que meros interesses individuais, são ponderosas razões de interesse público que ditam a existência desta última garantia, cuja teleologia se reconduz em fazer prevalecer a justiça (material, real ou extraprocessual), sobre a segurança jurídica – José Maria Rifá Soler e José Francisco Valls Gombau, Derecho Procesal Penal, Madrid, Iurgium Editores, pág. 310. III - Admitindo que a sentença judicial não tem o alcance de modificar a realidade do direito substantivo, transformando por misericordiosa ficção o injusto em justo, deverá tirar-se a consequência de que nenhuma decisão judicial seria definitiva e irrevogável. IV - Contra esta consequência se move, porém, a necessidade de segurança jurídica que, em largo limite, assim é chamada a restringir a justiça – Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, Lisboa, 1958, pág. 36; de modo concordante, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª edição, 1974 – Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 42-45. V - A reparação da decisão, condenatória ou absolutória, reputada de materialmente injusta, pressupõe que a certeza, a paz e a segurança jurídicas que o caso julgado encerra (a justiça formal, traduzida em sentença transitada em julgado), devem ceder perante a verdade material; por esta razão, trata-se de um recurso marcadamente excepcional e com fundamentos taxativos – Vicente Gimeno Sendra, Derecho Procesal Penal, Editorial Colex, 1.ª edição, 2004, pág. 769. VI - O fundamento para revisão de sentença previsto na al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP [segundo o qual a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação] foi introduzido no respectivo elenco com a reforma do CPP operada pela Lei 48/2007, de 29-08, não sendo isento de equívocos, já se tendo discutido se a declaração do TC deve, ou não, ser posterior ao trânsito em julgado da decisão revidenda – assim, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, Rei dos Livros, 2008, pág. 219. VII - Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2007, em anotação ao art. 449.º, nota 21, pág. 1217) expende: «A Lei nº 48/2007, de 29.8, resolve o problema da inexistência de um meio de execução no processo penal das sentenças do TC que declarem, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha constituído ratio decidendi da condenação, devendo, portanto, a declaração do TC ser posterior ao trânsito em julgado da decisão revidenda». VIII - A própria constitucionalidade da norma é questionada, conforme Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pág. 220: «… afigura-se que a norma da al. f) do n.º 1 do art. 449.º é inconstitucional. Com efeito, ela vem atribuir efeitos à declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação, em todos os casos penais já julgados, a apreciar em processo de revisão pelos tribunais judiciais. No entanto, é a própria Constituição que estabelece, em termos não coincidentes, os efeitos dessa mesma declaração, competindo tão só ao Tribunal Constitucional balizar os efeitos retroactivos dessa declaração. Na verdade, dispõe o n.º 3 do art. 282.º da Constituição que: “ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido”». IX - A expulsão é uma medida de autodefesa da ordem jurídica, política, económica e social dos Estados que tem de conciliar-se com as liberdades e as garantias dos direitos fundamentais do homem. Por outras palavras, esse direito de defesa dos Estados não pode coarctar o direito à liberdade e à segurança da pessoa humana (na medida, como é óbvio, em que estas não devam ser legitimamente afectadas) – cf. Parecer da PGR n.º 146/76, de 25-11-1976, BMJ 269.º/52. X - Como regra instituiu-se a equiparação, contida no n.º 1 do art. 15.º da CRP, dos estrangeiros e apátridas aos nacionais. XI - Não obstante, o direito a não ser expulso (n.º 1 do art. 33.º da CRP) é, após a revisão constitucional de 1997 (Lei 1/97, de 20-09), um dos direitos que marca a diferença de estatuto entre cidadãos portugueses e cidadãos estrangeiros. XII - O direito à não expulsão confere aos cidadãos nacionais um direito à residência em território nacional, que se configura como um direito, liberdade e garantia. XIII - Não existe um direito dos estrangeiros a entrarem e fixarem-se em Portugal – direito de imigração –, como não gozam de um direito absoluto de permanecerem em território nacional, podendo ser extraditados e, verificadas certas condições, expulsos; os direitos dos estrangeiros são apenas o direito de asilo e o direito de não serem arbitrariamente extraditados ou expulsos – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2007, pág. 531. XIV - Atento o teor do art. 30.º, n.º 4, da CRP, de harmonia com o qual «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos», muito se discutiu se seria admissível a imposição (automática), a um cidadão que tivesse cometido determinado tipo de infracções, da pena acessória de expulsão. XV - O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 14/96, de 07-11-1996 (proferido no Proc. n.º 45 706, da 3.ª Secção, e publicado no DR, Série I-A, n.º 275, de 27-11-1996, e no BMJ 461.º/54), resolvendo a querela a propósito da pena acessória de expulsão de estrangeiros, então prevista no art. 34.º, n.º 2, do DL 430/83, de 13-12, fixou a seguinte jurisprudência: «A imposição a estrangeiro da pena de expulsão prevista no n.º 2 do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, não pode ter lugar como consequência automática da sua condenação por qualquer dos crimes previstos nos seus artigos 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 28.º, 29.º e 30.º, devendo ser sempre avaliada em concreto a sua necessidade e justificação». XVI - E, pese embora as modificações legislativas, a jurisprudência deste STJ tem vindo a acentuar a ponderação, a razoabilidade, a necessidade, a adequação e a proporcionalidade ínsitas à sua aplicação – cf., exemplificativamente, os Acs. de 12-06-1996, Proc. n.º 303/96 -3.ª (CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 197), a propósito do art. 34.º do DL 15/93 e citado no AUJ n.º 14/96; de 10-07-1996, Proc. n.º 48 675 (na mesma CJSTJ, pág. 229); de 08-10-1997, Proc. n.º 671/97 (SASTJ n.º 14, pág. 134); de 26-11-1997, Proc. n.º 878/97 (SASTJ, n.º 14/15, pág. 184); de 15-04-1998 (BMJ, 476.º/66); de 06-10-2004, Proc. n.º 2502/04 -3.ª; de 14-10-2004, Proc. n.º 3018/04 -5.ª; de 06-01-2005, Proc. n.º 3490/04 -5.ª; de 11-052005, Proc. n.º 1279/05 -3.ª; de 08-06-2005, Proc. n.º 1672/05 -3.ª; de 08-06-2006, Proc. n.º 1923/06 -5.ª (CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 211), fazendo aplicação do art. 101.º do DL 244/98, na redacção dada pelo DL 4/2001, de 10-01; de 06-09-2006, Proc. n.º 1391/06 -3.ª (CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 179) [A decisão de expulsão, que constitui uma ingerência na vida da pessoa expulsa, pressupõe, pois, sempre uma avaliação de justo equilíbrio, de razoabilidade, de proporcionalidade, de fair balance entre o interesse público, a necessidade da ingerência e a prossecução das finalidades referidas no art. 8.º, n.º 2, da Convenção Europeia, e os direitos do indivíduo contra ingerências das autoridades públicas na sua vida e nas relações familiares, que podem sofrer uma séria afectação com a expulsão, especialmente quando a intensidade da permanência no país de residência corta as raízes ou enfraquece os laços com o país de origem]; de 27-09-2006, Proc. n.º 2802/06 -3.ª; de 16-11-2006, Proc. n.º 4088/06 -5.ª; de 27-09-2006, Proc. n.º 2802/06 3.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4638/06 -3.ª (CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 198); de 31-01-2008, Proc. n.º 1411/07 -5.ª; de 26-03-2008, Proc. n.º 444/08 -3.ª; de 28-05-2008, Proc. n.º 583/08 -3.ª; e de 12-06-2008, Proc. n.º 1901/07 -5.ª. XVII - Em processo de fiscalização abstracta sucessiva, o TC, reunido em plenário, no âmbito do Proc. n.º 807/99, pelo Ac. n.º 232/2004, de 31-03-2004 (in DR Série I, n.º 122, de 2505-2004, decidiu: «(…) c) -Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação das disposições conjugadas dos artigos 33.º, n.º 1, e 36.º, n.º 6, da Constituição, das normas do artigo 101º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e n.º 2, e do artigo 125º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na sua versão originária, da norma do artigo 68º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de Março, e da norma do artigo 34º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, enquanto aplicáveis a cidadãos estrangeiros que tenham a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa residentes em território nacional; d) -Fixar os efeitos da inconstitucionalidade das normas referidas na alínea anterior de modo que não fiquem ressalvados os casos julgados relativamente a penas acessórias de expulsão ainda não executadas aquando da publicação desta decisão». XVIII - Tal entendimento baseia-se na regra da proibição da separação dos filhos dos pais ser apenas uma das manifestações da protecção constitucional dada à família e constituir não só um direito subjectivo dos pais a não serem privados dos filhos, mas também um direito destes de não serem afastados dos pais. XIX - O raciocínio ali desenvolvido é o de que a expulsão de estrangeiros com filhos portugueses a seu cargo implica uma de duas consequências, ambas beliscando princípios constitucionais: ou os menores acompanham o progenitor expulso e, ipso facto, estar-seiam a expulsar cidadãos portugueses, infringindo-se o art. 33.º da Constituição; ou, em alternativa, os menores permanecem em território nacional, em clara afronta ao art. 36.º, n.º 6, do texto fundamental – Carlota Pizarro de Almeida, Exclusões Formais, Exclusões Materiais – O Lugar do Outro; Discriminação Contra Imigrantes, RFDUL, Volume XLV, n.ºs 1 e 2, Coimbra Editora, 2004, págs. 37-45, maxime pág. 43. XX - A primeira destas hipóteses configura a expulsão consequencial, em que a expulsão do progenitor estrangeiro, para evitar a quebra do agregado familiar, implica a expatriação do filho menor, ainda que português, não sendo mais do que uma forma indirecta de expulsão. Por isso, tenha-se presente que «(…) atendendo ao princípio de proibição de expulsão de nacionais, mesmo que o cidadão não tenha nacionalidade portuguesa, poderá haver situações de expulsões de cidadãos estrangeiros que se configurem como de “analogia à expulsão de nacionais” (não se poderá deixar de ter em consideração o grau de inserção do cidadão estrangeiro no território português, p. ex., a residência há muito tempo, ou ainda a consideração de que uma medida de expulsão pode ter como efeito indirecto a expulsão de nacionais, p. ex., quando ligados por laços familiares ao que deva ser expulso)» – Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, I, págs. 364-370, maxime pág. 367. XXI - E, perante esta evidência, há quem defenda (cf. Rui Elói Ferreira, Boletim da OA, n.º 31, Março/Abril de 2004, pág. 42) que deve repensar-se a aplicação da pena acessória de expulsão, designadamente, nos casos de pessoas que tenham logrado organizar suas vidas em Portugal. XXII -O que é certo e é realçado nessa decisão é que a protecção constitucional do art. 36.º, n.º 3, não pode ser levada ao limite, já que isso inviabilizaria fenómenos como os da emigração, divórcio, separação ou imposição de penas privativas da liberdade aos progenitores. XXIII -Não é demais relembrar que, por via do art. 8.º da CEDH, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem salientado que as medidas que possam conflituar com o direito à vida familiar, para além de terem de ser justificadas por necessidades sociais imperiosas, têm também de ser as menos gravosas das disponíveis e proporcionais ao fim a atingir; em suma, devem limitar-se a regular o exercício do direito, jamais podendo atingir a substância do mesmo – Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2005, págs. 181-201, designadamente págs. 194, in fine, e 197-198. XXIV -No que tange à fixação dos efeitos desta declaração de inconstitucionalidade, deflui do n.º 1 do art. 282.º da CRP que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos ex tunc, isto é, desde a data da entrada em vigor da norma julgada inconstitucional. XXV -Tendo em consideração que: -a causa de revisão prevista na al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP consiste em declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma que tenha servido de fundamento à condenação; -da leitura da decisão revidenda é inequívoco que a norma que foi aplicada e sobre a qual assentou a pena acessória de expulsão do território nacional não foi a disposição do art. 101.º, n.ºs 1, als. a), b) e c), e 2, do DL 244/98, na versão inicial, esta sim, declarada inconstitucional com força obrigatória geral, na dimensão normativa explanada supra, mas sim o referido art. 101.º, n.º 1, na reformulada redacção do DL 4/2001; -mostra-se assente que o recorrente não é cidadão nacional e que se encontrava a residir em Portugal desde 2000, sem que fosse detentor de autorização de residência, pelo que não é “estrangeiro residente” para os fins preconizados pelo art. 101.º, n.º 4, al. b), do diploma mencionado, revisto pelo DL 4/2001; -a decisão revidenda afastou claramente o regime contido neste n.º 4, al. b), porquanto o recorrente não reunia as condições legais para ser considerado residente em território nacional e, sendo assim, o caso enquadra-se na previsão normativa geral do n.º 1 do art. 101.º; é de concluir que a norma aplicada não foi aquela sobre a qual incidiu o juízo de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, razão pela qual cumpre negar a pretendida revisão de sentença.
Proc. n.º 2147/08 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
Pereira Madeira
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