ACSTJ de 04-12-2008
Tráfico de estupefacientes agravado Avultada compensação remuneratória Imagem global do facto Medida concreta da pena In dubio pro reo Regras da experiência comum Actos de execução Transporte Autoria Atenuação especial da pena Art. 31.º do DL 15
I -A verificação da agravação prevista na al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01 [quando o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória], não depende de uma análise contabilística de lucros/encargos, irrealizável, pelas características clandestinas da actividade. II - O carácter “avultado” da remuneração terá que ser avaliado mediante a ponderação global de diversos factores indiciários, de índole objectiva, que forneçam uma imagem aproximada, com o rigor possível, da compensação auferida ou procurada pelo agente. III - Assim, a qualidade e quantidade dos estupefacientes traficados, o volume de vendas, a duração da actividade, o seu nível de organização e de logística, e ainda o grau de inserção do agente na rede clandestina, são factores que, valorados globalmente, darão uma imagem objectiva e aproximada da remuneração obtida ou tentada. IV - “Avultada” será, assim, a remuneração que, avaliada nesses termos, se mostre claramente acima da obtida no vulgar tráfico de estupefacientes, revelando uma actividade em que a ilicitude assuma uma dimensão invulgar, assim justificando a agravação da pena abstracta em um quarto, nos seus limites máximo e mínimo. V - Constatando-se que: -o recorrente associou-se com outro indivíduo para, com regularidade, se dedicarem à venda lucrativa de estupefacientes, “utilizando o território nacional como plataforma logística para a introdução de grandes quantidades de cocaína que, posteriormente, seria distribuída pela Europa”; -o arguido e o seu comparsa organizaram uma rede de apoio e uma estrutura logística constituída por duas casas para guardar o estupefaciente, tendo obtido, por forma não apurada, uma quantidade de cocaína que rondava as 6 toneladas (5515 kg encontrados numa das casas, outros 197 kg transportados para Espanha, e ainda quantidade desconhecida, mas que deveria ser de idêntico montante, transportada para o mesmo país), quantidade essa de um tal volume que revela incontestavelmente um tráfico de dimensão enorme e excepcional; tais factores de natureza objectiva induzem, necessariamente, a conclusão de que o arguido procurava uma compensação remuneratória muito avultada, não merecendo censura a integração dos factos na al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01. VI - E, tendo em consideração que: -a ilicitude do facto é elevadíssima, face à enorme quantidade de estupefaciente em causa, mesmo no quadro do crime de tráfico agravado (punido com uma moldura de 5 a 15 anos de prisão), pelo que a pena não poderá deixar de se situar próximo do limite máximo; -são notórias as exigências de prevenção geral; -o arguido WP conta já com antecedentes criminais nesta área criminal e a sua forma de actuação revela um evidente profissionalismo, a par de uma culpa intensa; -as atenuantes invocadas são de pouco ou nenhum valor, sabido como a inserção social e familiar não são invulgares nos agentes deste tipo de criminalidade quando a assumem como “empresários”, como organizadores e donos do negócio; mostra-se inteiramente adequada a pena de 12 anos de prisão em que o recorrente foi condenado. VII - O princípio in dubio pro reo estabelece que, perante a persistência de uma dúvida razoável, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido. VIII - Sendo um princípio atinente à produção da prova, o STJ apenas poderá pronunciar-se pela sua violação quando, com base nos elementos constantes dos autos, nomeadamente a matéria de facto e sua fundamentação, e guiando-se pelas regras da experiência comum, for visível e inequívoco que, perante as dúvidas razoáveis que a prova suscitava, o tribunal decidiu contra o arguido. IX - Resultando da matéria de facto provada que: -o recorrente PC foi contactado para transportar para Espanha, por duas vezes, parte do estupefaciente que o co-arguido WP e outro indivíduo detinham, mediante o pagamento de € 15 000 e ainda produtos da Gillette no valor de € 10000 a € 11 000; -um primeiro transporte por automóvel, conduzido por si, foi efectuado pelo recorrente PC no dia 06-04-2006, de quantidade não apurada de cocaína, e um segundo foi por ele realizado no dia seguinte, nas mesmas circunstâncias, transportando então 197 kg de cocaína; -o recorrente sabia que transportava “droga”, não conhecendo a qualidade concreta da mesma, mas sabendo que se tratava de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao DL 15/93. em face da posição de “correio” que o recorrente PC foi chamado a desempenhar e sabido, de acordo com as regras da experiência comum, que os “correios” normalmente apenas têm conhecimento dos factos estritamente essenciais ao cumprimento da sua “missão”, é natural que o recorrente apenas soubesse o lugar de destino do transporte, ignorando a identidade do receptor; mas não podia deixar de saber, pelo carácter sigiloso da conduta, pelos cuidados que a envolviam, pela remuneração elevada que ele próprio iria receber, que se tratava de um transporte de droga (ele o reconheceu, aliás) e que estava necessariamente em causa um estupefaciente valioso, dos mais valiosos, e portanto daqueles cujo tráfico é mais severamente punido; e, sabendo-se que da segunda vez o recorrente transportava 197 kg de estupefacientes, é natural que o primeiro “carregamento” tivesse sido de idêntica dimensão (aliás, as regras da experiência comum mostram que a utilização de um automóvel, por proporcionar um carregamento de médio ou mesmo grande volume de “mercadoria”, se destina precisamente a efectuar um transporte dessa dimensão). X - Tais raciocínios não encerram nenhuma incongruência ou extrapolação ilegítima, não violando o princípio in dubio pro reo. XI - De acordo com o art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, o transporte de estupefacientes é um acto executivo do crime. Donde, o arguido PC, ao efectuar dois actos de transporte de estupefacientes, interveio como autor e não como mero cúmplice da infracção – cf. art. 26.º do CP. XII - A disposição do art. 31.º do DL 15/93, de 22-01, premeia a desistência activa e também a colaboração relevante na investigação criminal. Necessário é, porém, neste segundo caso, que as provas fornecidas pelo agente sejam decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis. XIII - Constando da matéria de facto que o recorrente PC confessou os factos em que teve intervenção directa e que essa confissão terá sido relevante para o apuramento de situações e ligações entre os principais arguidos, a sua colaboração terá sido relevante mas não decisiva para a identificação dos outros arguidos, já referenciados pelas autoridades, o que obsta à aplicação da atenuação especial prevista no referido preceito.
Proc. n.º 3456/08 -3.ª Secção
Maia Costa (relator) **
Pires da Graça
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