ACSTJ de 04-12-2008
Habeas corpus Prisão preventiva Pressupostos Tráfico de estupefacientes Sentença criminal Convolação Tráfico de menor gravidade Prisão ilegal Alteração da qualificação jurídica Princípio do contraditório Direitos de defesa
I -O art. 202.º do CPP faz depender, na al. a) do seu n.º 1, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, para além dos restantes pressupostos, do facto de existirem no caso concreto “fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos”. II - A relação processual é dinâmica, e não estática, podendo oferecer em diversos momentos uma diferente perspectiva da factualidade que constitui o seu pressuposto. Assim, é evidente que uma coisa é a apreciação dos factos numa fase inicial do processo em sede de inquérito, em que os indícios existentes vão ser objecto de uma concretização posterior, e outra a fase de julgamento, implicando uma análise exaustiva da prova que, em relação ao libelo acusatório e dentro dos limites propostos pelo princípio do acusatório, foi produzida. Em julgamento concretiza-se toda a actividade probatória, provando-se, ou não, os factos que numa fase prévia constituíam uma mera indiciação, qualitativamente menos afinada e sustentada. III - Num caso em que os factos considerados provados em sede de julgamento são substancialmente distintos daqueles que são apontados no despacho que determinou a prisão preventiva, pois que ali não se provou que os cerca de 200 g de heroína existentes na residência do arguido fossem sua propriedade, bem como não se considerou provado que o mesmo se dedicasse ao tráfico, o que conduziu o tribunal à conclusão de que o mesmo teria cometido o crime p. e p. nos termos do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01 (assim se convolando a imputada infracção do art. 21.º daquele diploma), é de liminar percepção a conclusão de que se alteraram substancialmente os pressupostos de facto que motivaram a aplicação inicial da medida de coacção de prisão preventiva. IV - Perante tal qualificação jurídica, e considerando, como se deve considerar, que os factos a equacionar são os constantes da sentença, é evidente que o crime pelo qual o arguido foi condenado enquadra uma moldura legal que não se coaduna com as exigências do art. 202.º, n.º 1, al. a), do CPP, quando reclama indícios da prática de crime doloso punível com pena de máximo superior a 5 anos de prisão, o que conduz à ilegalidade da prisão a que se encontra sujeito o requerente. V - Como acentua a jurisprudência do TC, um dos princípios constitucionais que estruturam o processo penal de um Estado de direito democrático é o princípio da contraditoriedade, mais conhecido por princípio do contraditório. Tal princípio consiste em que nenhuma decisão pode ser tomada contra o arguido em processo penal sem que se lhe tenha dado a possibilidade de discutir essa decisão e os seus eventuais fundamentos, e de os discutir em condições de plena liberdade e igualdade com os restantes actores processuais, designadamente o MP. VI - Inquestionável na sua dignidade constitucional – art. 20.º da CRP –, o princípio do contraditório tem subjacente uma concepção inerente ao princípio de audiência, consubstanciando a oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo. VII - Assim, apesar de ao STJ merecer discordância, face aos factos considerados provados, a qualificação jurídica operada pela sentença proferida – já que, mesmo na ausência de prova segura de que o arguido se dedicasse à venda de produtos estupefacientes, não merece a nossa concordância a conclusão de que a situação global comprovada permite afirmar a considerável diminuição da ilicitude do facto, sendo de qualificar os factos como integradores da previsão do art. 21.º do aludido diploma – e de o STJ não estar vinculado a uma qualificação jurídica operada em sede de 1.ª instância, este Tribunal não pode agora, considerando a qualificação que entende mais correcta, concluir pela legalidade da medida de coacção aplicada, pois que tal decisão, proferida ex novo quer nos seus fundamentos de facto quer nos de direito, assentaria em pressupostos relativamente aos quais o requerente não teria a oportunidade de exercer o direito de defesa inscrito no princípio do contraditório.
Proc. n.º 3934/08 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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