ACSTJ de 04-12-2008
Concurso de infracções Crime continuado Crime único Culpa Bens eminentemente pessoais Roubo Bem jurídico protegido
I -Do exame sumário do art. 30.º do CP, na sua globalidade, verifica-se que o mesmo não regula a matéria do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único de forma «abrangente e esgotante», na medida em que as soluções ali indicadas se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de infracções. Trata-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador, a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá, em última análise, encontrar as soluções mais adequadas, tendo em vista a multiplicidade de situações que se prefiguram. II - Enquanto no n.º 1 do art. 30.º se estabelecem critérios relativos à problemática do concurso de crimes tout court, no n.º 2 pretende-se regular situações que também têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador juridicamente unifica em um só crime. Neste último caso estamos perante o chamado crime continuado, bem como face a outros casos de unificação jurídica (crime único com pluralidade de actos ou acções). III - No n.º 3, aditado pela Lei 59/2007, de 04-09, incluiu-se no texto legal acrescento que chegou a fazer parte do n.º 2 do art. 33.º do Projecto da Parte Geral do CP de 1963, e que foi aprovado na 13.ª Sessão da Comissão Revisora, em 08-02-1964, merecendo do Professor Eduardo Correia comentário segundo o qual aquele acrescento podia realmente ser consagrado, embora não fosse de reputar de todo indispensável, uma vez que a conclusão no mesmo contida já se retiraria da expressão «o mesmo bem jurídico». IV - Do exame do texto do n.º 1 do art. 30.º do CP decorre que o mesmo contém duas partes, ambas se referindo a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, sendo que, quer na primeira quer na segunda, o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só acção, como em vários factos (naturais) ou várias acções. V - Com efeito, a partir de um só facto ou de uma só acção podem realizar-se diversos crimes, por violação (simultânea) de várias normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora, tal como a partir de vários factos ou várias acções pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação (repetida) da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras. Em qualquer dos casos, estamos, no entanto, perante concurso de crimes, já que este ocorre, sempre, desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer através de vários factos. VI - Mas, porque toda e qualquer infracção criminal é constituída por três elementos – o facto típico, a culpabilidade e a punibilidade – não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma. É indispensável que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É preciso que cada crime seja doloso ou culposo, e como tal punível – nulla poena sine culpa – (art. 13.º do CP). VII - Assim sendo, a expressão «tipos de crime» utilizada no n.º 1 do art. 30.º tem o significado de «tipo legal objectivo e subjectivo», a significar que a vontade culpável, como dolo ou como negligência, por um só acto de vontade ou por actos plúrimos da vontade, deve ter por objecto todos os crimes concorrentes, que serão dolosos ou culposos, consoante a vontade tomar quanto a cada um deles a forma de dolo ou de negligência. VIII - No n.º 2 do art. 30.º do CP pretende-se regular as diversas situações em que, ocorrendo uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, quer por violação repetida do mesmo tipo legal, quer por violação plúrima de vários tipos legais de crime, o legislador procede a uma unificação jurídica, de forma a considerá-las como se um só crime houvesse ocorrido. IX - Na base do instituto do crime continuado encontra-se, assim, um concurso de crimes, pois que aquele se traduz objectivamente na «realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico (...)». A diferença – que desde logo se salienta – está em que, no caso de «concurso heterogéneo» se limita o campo próprio do crime continuado à violação de várias normas incriminadoras que protejam essencialmente o mesmo bem jurídico, o que equivale a dizer que, por outro lado, se alarga a noção de «concurso homogéneo» consoante resultaria da distinção feita nas 1.ª e 2.ª partes do n.º 1 do art. 30.º. Na realidade, o «concurso homogéneo», para efeitos do n.º 2 do art. 30.º, compreende não só a plúrima violação da mesma norma incriminadora mas também a violação de diversas normas incriminadoras, desde que sejam da mesma espécie, isto é, protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico. X - Porém, como se vê da 2.ª parte do n.º 2 do referido preceito, o instituto do crime continuado exige algo mais, para além da ocorrência de um concurso de crimes, com o âmbito e conteúdo já referidos: é necessário que aquele concurso seja executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. XI - Deste modo, verifica-se que, fundamentalmente, são razões atinentes à culpa do agente que justificam o instituto do crime continuado: é a diminuição considerável desta, a qual segundo o texto legal deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que arrastam aquele para o crime, e não em razões de carácter endógeno. XII - No n.º 3 do art. 30.º do CP excluiu-se a possibilidade de qualificação de uma pluralidade de factos como integrantes de continuação criminosa ou de crime único quando, tutelando aqueles bens eminentemente pessoais, é ofendida mais que uma pessoa. XIII - O crime de roubo, como crime complexo que é, ofende quer bens jurídicos patrimoniais – concretamente o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – quer bens jurídicos pessoais, designadamente a liberdade individual de decisão e de acção e a integridade física, podendo até ofender, em certos casos de roubo agravado, a própria vida (o texto legal alude a constrangimento de outra pessoa, violência e ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física). XIV - No entanto, havendo que ter presente que o crime de roubo é um crime contra a propriedade, surgindo a ofensa aos bens pessoais como meio de lesão dos bens patrimoniais, será a partir da lesão destes últimos, em ligação com a pessoa ou pessoas ofendidas, que se terá de aferir da ocorrência de um ou mais crimes de roubo. XV - Numa situação em que os recorrentes, com intenção de se apropriarem de bens existentes na residência dos ofendidos NC e JC (pertença de ambos) e de bens que cada um deles ostentava e consigo trazia (pertença de cada um), exerceram violência sobre ambos e ofenderam a integridade física do ofendido NC, tendo-se apoderado daqueles bens, dúvidas não restam de que cometeram dois crimes de roubo (qualificado), posto que os recorrentes, com o comportamento delituoso conscientemente assumido, ofenderam o direito de propriedade de ambos e de cada um dos ofendidos, bem como a sua liberdade e a integridade física do ofendido NC, não sendo a sua conduta subsumível ao n.º 2 do art. 30.º do CP.
Proc. n.º 3275/08 -3.ª Secção
Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa
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