ACSTJ de 04-12-2008
Concurso de infracções Bem jurídico protegido Crime continuado Culpa Abuso de confiança contra a Segurança Social Crime omissivo
I -O critério determinante do concurso de crimes é, no plano da indicação legislativa (art. 30.º do CP), o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. II - O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cf. Ac. do STJ proferido no Proc. n.º 1942/06 -3.ª). III - «A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente» constitui, na definição do art. 30.º, n.º 2, do CP, um crime continuado. IV - A consideração como um só crime das condutas que realizem, de modo plural, um tipo de crime, e que, por isso, seriam naturalisticamente tratadas como pluralidade de infracções, procura responder a exigências de justiça e de economia processual, mas supõe, no plano das valorações, uma gravidade diminuída da actuação e um menor – consideravelmente menor – grau de culpa do agente. V - O crime continuado pressupõe, pois, no plano externo, uma série de acções que integrem o mesmo tipo legal de crime ou tipos legais próximos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, às quais presidiu e que foram determinadas por uma pluralidade de resoluções. O fundamento de diminuição da culpa que justifica a unidade está no momento exógeno das condutas e na disposição exterior das coisas para o facto. VI - «Pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» (cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, pág. 209). VII - Para que se possa considerar a existência de um crime continuado, há, assim, que apurar se a actuação do agente se traduz numa pluralidade de actos de execução de um mesmo tipo legal, em que se verifique uma homogeneidade do modo de comissão, que conforma como que um «dolo continuado»; se apresenta como um «fracasso psíquico», sempre homogéneo, do agente perante a mesma situação de facto, suposto, porém, que aquele não revele uma personalidade que se deixe facilmente sucumbir perante situações externas favoráveis, e que por essa fragilidade facilmente não supere o grau de inibição relativamente a comportamentos que preenchem um tipo legal de crime (cf. Hans Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, trad. da 5.ª edição, 2002, págs. 771-772). VIII - Os crimes fiscais, em particular os crimes especiais de “abuso de confiança” (especiais, por referência ao nomen homónimo do CP), embora não constituam, na essência, crimes contra o património, especialmente na mais recente descrição típica, mas contra os interesses fiscais ou parafiscais do Estado, participam, em muito, na construção típica e na dogmática, da natureza dos crimes contra o património – aqui no sentido de património público constituído pelo valor e utilidade pública fundamental da integridade das receitas fiscais. IX - A construção típica do crime de abuso de confiança fiscal (quer fiscal sensu stricto – art. 105.º do RGIT, quer contra a segurança social – art. 107.º) reverte, no essencial, à natureza de crime omissivo – a não entrega das prestações deduzidas. No caso do art. 107.º do RGIT, a não entrega às instituições da segurança social dos montantes das contribuições dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes devidas, e que as entidades empregadoras tenham deduzido. Mas o conteúdo da omissão (a não entrega) está dependente, previamente, da realização de operações que consistem na dedução nas remunerações das contribuições devidas às instituições de segurança social pelos trabalhadores e membros dos órgãos sociais. X - Deste modo, a determinação do conteúdo da acção devida (e por aqui, da omissão), bem como o tempo da prática da actividade devida, depende de regulações prévias sobre a definição das obrigações e sobre o tempo do respectivo cumprimento. XI - A integração das infracções por falta de entrega do valor das contribuições deduzidas nas remunerações, há-de, assim, ser determinada pela delimitação e verificação dos comportamentos omissivos que, por consistirem, negativamente, na falta de cumprimento de um dever prefixado, dependem necessariamente do modo específico de revelação do respectivo dever. Havendo tempos e prazos fixados para a prática do comportamento devido, e cuja omissão constitui a tipicidade da infracção, a referência reverterá sempre ao regime do cumprimento da obrigação de entrega. XII - Nos termos da lei vigente ao tempo dos factos (ocorridos entre Junho de 2003 e Fevereiro de 2004), as entidades empregadoras são «responsáveis pelo pagamento» das «quotizações correspondentes aos trabalhadores ao seu serviço, devendo descontar, nas remunerações a estes pagas, o valor daquelas quotizações» – art. 47.º, n.º 1, da Lei 32/2002, de 20-12 (como anteriormente dispunham os arts. 24.º, n.º 3, da Lei 24/84, de 14-08, e 62.º da Lei 27/2000, de 08-08, e actualmente determina o art. 59.º, n.º 1, da Lei 4/2007, de 16-01, que utiliza a expressão técnica de «retenção na fonte»). XIII - Nos termos do art. 10.º, n.º 2, do DL 199/99, de 08-06, «as taxas contributivas devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito». XIV - Estando a obrigação de entrega do valor das contribuições deduzidas, vistos os respectivos elementos, tanto pelo conteúdo, como pelos tempos, definida em periodicidade mensal (dedução nas remunerações mensais e entrega até ao dia 15 de mês seguinte), a omissão de entrega, uma vez efectuadas as operações contabilísticas e financeiras e apurados os montantes, concretiza-se periodicamente, com independência de execução e autonomia típica; cada omissão não está dependente de (eventuais) omissões antecedentes, nem condiciona as (possíveis) omissões subsequentes. Por isso, a natureza específica da não entrega das deduções pressupõe a autonomia, que decorre da necessária renovação periódica dos procedimentos que permitem determinar o montante das deduções a entregar, não existindo omissão sem conteúdo da acção devida, e o objecto da acção devida só existe se e quando determinado e materializado pelo período a que respeitem as deduções. XV - Deste modo, vistas as qualificações possíveis na relação entre a especificidade típica e as categorias dogmáticas relativas à unidade e pluralidade de infracções, os crimes de abuso de confiança contra a segurança social apenas poderão, no rigor das coisas, ser construídos em pluralidade relativamente a cada procedimento para determinação do conteúdo da obrigação de entrega e da consequente omissão, ou em continuação criminosa, se verificados os respectivos pressupostos, com a existência de uma situação exógena que diminua sensivelmente a culpa do agente. XVI - Os cortes materiais resultantes da pluralidade de procedimentos (materiais e jurídicos; contabilísticos e financeiros) necessários para determinar o conteúdo da (de cada) obrigação de entrega, separados no tempo de acordo com a periodicidade decorrente da lei, remetem para a diversidade (pluralidade) de comportamentos típicos, com a inerente e pressuposta relação da vontade com a realização de cada procedimento para a determinação dos montantes a entregar e da voluntária e sequente omissão (a não entrega). XVII - Vindo provado que o recorrente, «por dificuldades económicas e financeiras» da sociedade «C…, Lda.», «decidiu não fazer a entrega – e não entregou – das seguintes cotizações à Segurança Social [respeitantes a Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2003, e Janeiro e Fevereiro de 2004] até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam», os comportamentos, tanto pela correspondência típica, como pela conformação da intenção que os determinou (a decisão de não entrega foi mensal, na concretização da omissão relativamente a cada período e a cada prazo fixado na lei), estão partilhados pela natureza da periodicidade do cumprimento da obrigação omitido. Isto é, em pluralidade de conjugações típicas e de vontades renovadas e, por isso, em pluralidade de comportamentos (nove) que apenas poderão, conforme as circunstâncias que os rodeiem, ser considerados e qualificados como pluralidade de crimes ou como crime continuado. XVIII - Revelando os factos provados que o recorrente não entregou, relativamente a cada período, os montantes das contribuições deduzidas, e que esta falta aconteceu no «quadro das aludidas dificuldades financeiras», sendo por isso que o recorrente «optou» «por efectuar os pagamentos dos montantes dos salários aos trabalhadores e de dívidas a fornecedores», «deixando por pagar os aludidos montantes» à Segurança Social, o descrito ambiente em que ocorreram as várias omissões, em uma continuada situação de «dificuldades financeiras» da empresa e constante opção do recorrente pela continuidade do giro da empresa (pagamento a trabalhadores e a fornecedores), revela todas as condições de permanência do «fracasso psíquico» perante cada situação de facto e cada renovação da obrigação de entrega das contribuições deduzidas, em circunstâncias em que se manifesta uma sensível diminuição da culpa, quer pelas dificuldades empresariais, que pelas opções que o recorrente tomou perante as dificuldades financeiras. XIX - Houve, com efeito, «realização plúrima do mesmo tipo de crime», «executada por forma homogénea», «no quadro de uma mesma solicitação exterior», que diminuiu «consideravelmente a culpa do agente», como dispõe o art. 30.º, n.º 2, do CP, tudo a justificar que as condutas se considerem como crime continuado, a punir nos termos do art. 79.º (ao tempo dos factos) e actualmente do art. 79.º, n.º 1, do CP.
Proc. n.º 4079/06 -3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Santos Cabral
Armindo Monteiro
Oliveira Mendes
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