Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 29-10-2008
 Concurso de infracções Concurso aparente Ne bis in idem Especialidade Consumpção Crime continuado Subtracção de documento Furto Furto qualificado Burla Burla qualificada Modo de vida Burla informática e nas comunicações Violação de correspond
I -Nos termos do art. 30.º, n.º 1, do CP, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente». É, pois, um critério teleológico o que se encontra na base da formulação legal. Há tantos crimes quantos os tipos legais realizados ou quantas as vezes que um mesmo tipo legal foi preenchido (violação plúrima correspondente a uma multiplicidade de tipos de crime ou a uma prática reiterada da mesma conduta criminosa). Ou seja, há pluralidade de crimes, quando ocorre a violação plúrima do mesmo ou de diferentes bens jurídicos, protegidos pelas respectivas normas incriminadoras.
II - Há, porém, limites a esta regra que vêm precisar o sentido da unidade ou pluralidade de infracções. Um desses limites, radicando na culpa (tomada como possibilidade de efectuar um ou vários juízos de censura pela violação plúrima de bens jurídicos) vem enunciado no n.º 2 do referido art. 30.º e diz respeito ao crime continuado. O outro limite tem a ver com o chamado concurso aparente de infracções.
III - Certos casos há que, embora preenchidos vários tipos legais de crime, os mesmos não se traduzem numa pluralidade de infracções criminais. É que essa pluralidade, analisados os tipos legais, vem a traduzir-se numa aparência. Assim sucede particularmente nos casos em que intervêm relações de especialidade ou consumpção entre as várias normas incriminadoras.
IV - A primeira traduz-se na existência de duas normas, sendo uma delas geral (lex generalis)e outra, especial (lex specialis). Esta contém todos os elementos da norma penal geral (tipo fundamental do crime), com o acrescento de certos elementos especializadores, quer relativos ao facto, quer ao agente (tipo especial), pelo que a aplicação desta norma exclui a aplicação daquela, sob pena de violação do princípio constitucional ne bis in idem. A lei especial derroga a lei geral (lex specialis derrogat legi generali).
V - No caso da consumpção, uma norma que concede protecção mais acentuada a determinada situação consome a protecção, menos intensa, conferida por outra. Ou seja, o tipo legal mais grave consome o menos grave, só o primeiro se aplicando, por a protecção do segundo estar nele incluída. Neste caso, para se saber se se está perante um caso de consumpção, há que proceder, na prática, a uma comparação dos bens jurídicos violados, ao contrário do que sucede no princípio da especialidade. Daí o princípio de lex consumens derrogat legi consumatae.
VI - Na situação de consumpção impura, há duas normas que disputam a regulação do caso, mas uma delas, prevendo uma circunstância que a outra não prevê. Todavia, sucedendo, à luz da interpretação, que essa circunstância só pode ser tida como circunstância qualificativa agravante (tipo qualificado ou agravado), tal colide com a pena cominada, que é inferior à do tipo fundamental. Neste caso, aplica-se o tipo fundamental e despreza-se a circunstância qualificativa agravante, para não se ter que violar o princípio ne bis in idem.
VII - Entre os crimes de furto, de subtracção de documento e de violação de correspondência (respectivamente, arts. 203.º, n.º 1, 259.º e 194.º do CP) não intercede nenhum dos mencionados princípios.
VIII - O princípio da especialidade está nitidamente fora de causa, uma vez que entre os referidos tipos legais de crime não há relação de género para espécie, ou de tipo fundamental para tipo especial. Nenhum dos tipos legais mencionados se limita a acrescentar a qualquer dos outros, tido como fundamental, elementos especializadores, em virtude dos quais se pudesse falar de derrogação da lei geral pela lei especial. Tal é nítido entre os crimes de furto e de violação de correspondência, sendo o primeiro um crime contra a propriedade e, o segundo, um crime contra a reserva da vida privada. Mas mesmo entre o crime de furto e o crime de danificação ou subtracção de documento e notação técnica, onde a modalidade de comportamento traduzida na subtracção da coisa específica que é o documento podia induzir em erro quanto à similitude com aquele crime de furto, subsistem diferenças de tomo, não redutíveis ao conceito de elementos especializadores, que afastam os dois tipos completamente um do outro.
IX - Entre os vários tipos de crime também não intercede nenhuma relação de mais e menos, como é característico da consumpção de um crime menos grave por outro mais grave, em que a protecção conferida a determinado bem jurídico pelo tipo agravado realiza (inclui) a tutela que é dispensada a esse mesmo bem jurídico pelo tipo fundamental. Nem sequer se passa aqui algo de parecido com a consumpção impura, em que a circunstância agravativa prevista no tipo mais grave tivesse que ser desprezada em favor da aplicação do tipo fundamental, por realizar melhor a tutela do bem jurídico em questão. Com efeito, os bens jurídicos protegidos nos respectivos tipos legais são muito diferentes uns dos outros: no crime de furto, o direito de gozo, fruição e guarda sobre coisas imóveis; no crime de violação de correspondência, directamente, a privacidade como bem jurídico individual e, reflexamente, a confiança da comunidade na integridade dos serviços postais e das telecomunicações, como bem jurídico supra-individual. É de notar que, neste tipo de crime se protege a privacidade formal e não propriamente o conteúdo da correspondência, ou seja, o crime considera-se perfeito independentemente do conhecimento daquele conteúdo. Por conseguinte, o crime de furto nunca poderia consumir os crimes de violação de correspondência e de subtracção de documento.
X - Não releva o facto de o arguido, pressupostamente, ter tido o fim ou objectivo de conseguir, através do acesso à correspondência, apoderar-se de quantias monetárias ou valores que as cartas expedidas pelo correio e dirigidas aos ofendidos contivessem. Em primeiro lugar, o fim ou motivo do agente é irrelevante para a perfectibilidade do tipo subjectivo do ilícito, a menos que constitua um elemento subjectivo especial ou acrescido do tipo. Em segundo lugar, o facto de um determinado crime ser cometido como meio para realizar outro não lhe retira autonomia, nem faz com que escape à regra fundamental contida no art. 30.º, n.º 1, do CP. Só assim não será se esse crime constituir uma circunstância de um tipo agravado ou qualificado, como sucede no furto com a introdução em casa alheia, ou nos crimes complexos, como o crime de roubo, em que se protege mais do que um bem jurídico, sendo o ataque à integridade física, por exemplo, o meio para se alcançar a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia. Não é, de forma alguma, o caso de nenhum dos tipos legais referidos. Por conseguinte, os diversos tipos legais considerados conservam a sua autonomia.
XI - Em princípio, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente (art. 30.º, n.º 1, do CP). No entanto, considera a lei (n.º 2 do mesmo artigo) que «constitui um só crime a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente». Destacaremos, pois, como elementos do crime continuado: -realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de tipos diferentes, mas em que se verifica homologia nos bens jurídicos protegidos; -homogeneidade da conduta; -ocorrência de uma situação exterior que, persistindo, solicite o agente para a violação reiterada da ou das normas incriminadoras; -diminuição considerável da culpa por força dessa solicitação externa.
XII - Os vários tipos de crimes realizados ou a repetição do mesmo tipo crime são unificados numa só conduta, em desvio do critério enunciado no art. 30.º, n.º 1, do CP, por força da tal situação exterior ao agente que, persistindo no tempo, favorece a execução, debilitando-lhe a capacidade para resistir e determinar-se de acordo com a licitude jurídico-criminal. Este sucumbir à prática do crime, tendo como mola real um quadro favorável que solicita o agente, traduz-se numa diminuição da culpa, se efectivamente a situação que o atrai para a repetição criminosa for exterior ao agente, impondo-se-lhe como circunstância exógena, e não como propensão autónoma para o crime, traduzida num renovar do processo de motivação. A homogeneidade da conduta exigida por lei vem no seguimento lógico do apontado circunstancialismo exógeno, na medida em que o agente, arrastado para o crime, como que o executa de uma forma quase mecânica, sem ter que pensar muito no modo de levar a cabo a sua acção, embora sempre se decidindo a praticá-la. É precisamente em atenção a tais factores que, não obstante a pluralidade de resoluções, se unifica a conduta, inserindo-a numa mesma unidade dolosa e punindo-a como se fosse um só crime (para o que a lei exige logicamente identidade ou, pelo menos, homologia de bens jurídicos). Para isso, é preciso que a culpa resulte efectivamente diminuída. E não só diminuída, como consideravelmente diminuída.
XIII - Não ocorrem estes pressupostos numa situação em que a actuação do arguido, embora obedecendo a uma maneira de actuar semelhante, não foi homogénea. Na verdade, o arguido actuou numa pluralidade de casos distintos, em locais diferentes, escolhendo as suas próprias vítimas em cada momento, consoante a situação se amoldasse melhor aos seus desígnios e favorecesse o seu método de actuação. Teve, em cada caso concreto, que renovar o processo de resolução, pese embora a insensibilidade que a repetição propiciava e que correspondia, no fundo, a uma indiferença pelos valores que ia lesando, o que originava certamente menor resistência interior para se opor à prática das diversas actuações criminosas. Todavia, tal circunstância não se traduz em menor culpa, pois tal actuação correspondia a uma escolha deliberada do arguido, a uma sua predisposição interna para a prática daqueles factos ilícitos, que inscreveu no seu quotidiano como “forma de ganhar a vida e de obter rendimentos para custear todas as suas necessidades”. Deste modo, não se pode falar num condicionalismo exterior, que, de fora e com persistência, levasse o arguido a cometer os factos e suscitasse uma menor aferição em termos de culpa, por, de certo modo, ser compreensível que, perante esse condicionalismo externo, ele sucumbisse e violasse os valores ou bens jurídicos protegidos pelas lei penal. A repetição, sendo hábito ou modo de vida, não atenua, mas agrava a culpa do agente e torna-o mais perigoso do ponto de vista jurídico-criminal.
XIV - Acresce que a actuação do arguido começava sempre pela prática de crimes de violação de correspondência, sendo que com a incriminação respectiva se protegem bens jurídicos de carácter eminentemente pessoal, constituindo direitos fundamentais da pessoa com garantia constitucional (art. 34.º -inviolabilidade do domicílio e da correspondência) e importando a sua violação no processo penal a nulidade da prova assim adquirida, como método proibido de prova (art. 126.º, n.º 3, do CPP), o que atesta, também por aqui, a sua importância como direito fundamental do indivíduo. Ora, não se concebe o crime continuado em relação a bens jurídicos eminentemente pessoais, a não ser que digam respeito à mesma pessoa.
XV - Tanto no crime de furto, como no crime de burla, a circunstância de o agente fazer desses crimes modo de vida agrava a conduta e torna esses crimes qualificados (arts. 204.º, n.º 1, al. h), e 218.º, n.º 2, al. b), do CP). A referida circunstância tem carácter sociológico e não dogmático, ao contrário do que sucede com o requisito habitualidade. Quer isto dizer que o conceito de modo de vida tem de ser apreendido fora de qualquer valoração que envolva a licitude ou ilicitude da conduta. Fazer desses crimes modo de vida quer simplesmente dizer: dedicar-se a essa prática como se fosse uma profissão ou um emprego, aqui se compreendendo também a situação hoje corrente de pluriemprego. De sorte que não se torna necessário, para o preenchimento da circunstância, que o agente se dedique exclusivamente a esses crimes. Pode perfeitamente a carreira criminosa em que se lançou coexistir com outros modos de vida, considerando que hoje não se ganha a vida apenas com rendimentos provenientes de uma fonte. Desde que o agente se dedique à prática de crimes de furto e(ou) crimes de burla como um dos seus modos de vida, ainda que tenha um outro modo de vida consistente numa «profissão socialmente visível», tanto basta para termos o preenchimento da circunstância.
Proc. n.º 1612/08 -5.ª Secção Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor