ACSTJ de 29-10-2008
Tráfico de estupefacientes agravado Corrupção activa Recurso da matéria de facto Recurso da matéria de direito Conclusões da motivação Convite ao aperfeiçoamento Competência da Relação Competência do Supremo Tribunal de Justiça Livre apreciação da
I -Na sua precedente redacção, o art. 417.º do CPP era omisso, em matéria de consequências para a falta de resposta ao convite que tivesse sido feito para serem completadas ou esclarecidas as conclusões formuladas. Só o art. 412.º do Código explicitava, na altura, uma cominação, no seu n.º 2, quando estivessem em causa conclusões que versassem matéria de direito. Tratando-se de conclusões relativas a matéria de facto, se, por um lado, havia que observar a doutrina do Ac. do TC n.º 320/2002, de 09-07, nos termos do qual se impedia a rejeição do recurso, antes do tribunal ter convidado o recorrente a suprir as deficiências encontradas, por outro lado, a falta de resposta, ao convite feito, implicava a dita rejeição. Era este o entendimento uniforme, já então (cf. Acs. deste STJ de 30-102002, Proc. n.º 2535/02, ou de 13-11-2002, Proc. n.º 3176/02, ambos da 3.ª Secção, v.g.). II - O art. 417.º, n.º 3, do CPP, na actual redacção (Lei 48/2007, de 29-08), passou a consagrar, explicitamente, a cominação para a omissão em foco, sem se distinguir entre recurso da matéria de facto ou de direito. Não apresentando, completando ou esclarecendo as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias a contar da notificação para tal efeito, o recurso é rejeitado, ou não é conhecido na parte afectada. III - O facto da Relação conhecer de facto não significa que tenha de proceder a um novo julgamento de facto, em toda a sua extensão, tal como ocorrera em 1.ª instância. No recurso de matéria de facto, haverá que ter por objectivo o passo que se deu, da prova produzida aos factos dados por assentes, e/ou o passo que se deu, destes, à decisão. O recorrente poderá insurgir-se contra o modo como teve lugar um ou ambos os momentos deste trânsito. Desde logo, impugnando a própria matéria de facto devido ao confronto entre a prova que se fez e o que se considerou provado, lançando mão do disposto no n.º 3 do art. 412.º do CPP. Ou, então, invocando um dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. IV - Em qualquer das hipóteses, haverá que ter em conta que uma coisa é considerar objecto do recurso ordinário o acontecimento histórico sobre que incidiu a decisão recorrida e, outra, ter por objecto do recurso essa decisão ela mesma. No primeiro caso haverá que decidir de novo a questão que foi levada a julgamento, podendo inclusive atender-se a factos novos e produzir prova nunca antes produzida. No segundo caso, haverá que apreciar da bondade da decisão recorrida só a partir dos dados de que o(s) julgador(es) recorrido(s) dispôs(useram). V - Acresce que a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo julgamento global de todo o objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto. VI - Quanto ao julgamento de facto pela Relação, importa ter em conta que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e, outra, é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. VII - Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramentos dos factos realizado em 1.ª instância, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado. VIII - Quanto aos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, o vício há-de resultar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e tanto pode incidir sobre a relação entre a prova efectivamente produzida e o que se considerou provado (al. c) do n.º 2 do art. 410.º), como sobre a relação entre o que se considerou provado e o que se decidiu (als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.º). IX - Tem sido a jurisprudência constante deste STJ, quanto à invocação de tais vícios, que o conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal colectivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do art. 410.º do CPP. Quando o art. 434.º do CPP nos diz que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, “sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º”, não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o STJ possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo STJ, oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito. O âmbito dos poderes de cognição do STJ é-nos revelado pela al. c), hoje al. d), do n.º 1 do art. 432.º, que restringe o conhecimento do STJ a matéria de direito. E refira-se que as alterações do CPP, operadas pela Lei 48/2007, de 29-08, não modificaram os preceitos em causa (al. c), depois d), do art. 432.º e art. 434.º), de modo a justificar-se uma inflexão da orientação seguida neste STJ. X - Ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o STJ tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do acórdão para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, do Pleno das Secções Criminais deste STJ (Proc. n.º 46 580 -3.ª, in DR Série I -A, de 28-12-1995). XI - O erro notório na apreciação da prova, como tem sido repetido à saciedade, na jurisprudência deste STJ, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida. XII - O recorrente foi condenado na pena de 9 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, als. h) e j), do DL 15/93, de 22-01, e ainda na pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1, do CP. Em cúmulo, ficou condenado pena única de 10 anos de prisão. XIII - O crime de corrupção em foco é punido com a pena de prisão de 6 meses a 5 anos. Ora, de acordo com a al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, caso atendêssemos à sua redacção actual (introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08), o acórdão da Relação não seria recorrível, nesse particular, por ter havido confirmação da decisão da 1.ª instância, e a pena aplicada não ser superior a 8 anos. XIV - Interessa, porém, ver a questão à luz da redacção anterior, contemporânea da decisão de 1.ª instância proferida contra o arguido, das decisões subsequentes, bem como da interposição do presente recurso para este STJ. Ora, atendendo a tal redacção, porque a pena aplicável também não é superior a 8 anos, e se está perante uma dupla conforme, a irrecorribilidade continua a ser de afirmar quanto ao crime de corrupção activa. XV - Entende-se, na verdade, que, se os crimes determinantes de uma conexão de processos, nos termos dos arts. 24.º e 25.º do CPP, ou determinantes de uma conexão, para os quais se organizou um só processo, de acordo com o n.º 1 do art. 29.º do mesmo Código, têm um limite superior da moldura que não excede os 8 anos, então, nunca tais crimes seriam passíveis de recurso, caso fossem julgados isoladamente. Ora não concorrem razões substanciais ou sequer processuais, que obriguem a que se beneficie o arguido com mais uma possibilidade de recurso, só porque, por razões de conexão, aconteceu que os vários crimes tenham sido julgados conjuntamente. Não se nega que, caso ocorressem julgamentos separados, poderia haver lugar a julgamento para realização do cúmulo, sendo esta última decisão recorrível. Só que, neste caso, a decisão estaria exactamente confinada à determinação da pena única, e do mesmo modo o recurso que dela se interpusesse. XVI - Deverá conhecer-se neste recurso da pena aplicada ao crime de tráfico de estupefacientes agravado, por se mostrar demasiado pesada, certo que a mesma, tendo sido de 9 anos, não está sujeita à restrição recursória apontada. Procede-se assim, mesmo que se não tenha explicitamente pedido uma diminuição da pena, nas conclusões da motivação, por certo devido ao convencimento, por parte do recorrente, de que essa questão estaria prejudicada, dada a impugnação da matéria de facto que tentou fazer. Releva aqui o disposto no art. 402.º do CPP, relativo ao âmbito do recurso, e de acordo com o qual a regra-base é a de que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão. E nos termos da al. a) do n.º 2 do preceito, o recurso interposto por um dos arguidos, em casos de comparticipação, aproveita em princípio aos demais. XVII - O co-arguido FP foi condenado, em 1.ª instância, no mesmo julgamento, nas mesmas penas e pelos mesmos crimes que o ora recorrente. Os factos imputados a ambos são praticamente os mesmos. Confirmadas as penas em que fora condenado, pela Relação, viu o co-arguido FP reduzida a pena, pelo crime de tráfico, em acórdão tirado a 13-03-2008. Razões de tratamento igual no que for igual, e portanto de justiça, também levam a reapreciar a pena aplicada ao ora recorrente por tal crime. XVIII - As considerações que presidiram à determinação da pena concreta aplicada ao recorrente, que se mostram pertinentes, deverão ter por consequência a aplicação de uma pena muito próxima senão igual à que foi aplicada ao co-arguido FP. Os factos imputados a ambos são praticamente os mesmos, e não ressaltam diferenças assinaláveis de personalidade que relevem em termos de prevenção. Tanto o FP como o recorrente cumpriam pena pelo crime de tráfico maior de estupefacientes (por 9 e 8 anos de prisão, respectivamente), quando praticaram os crimes do presente processo. Ambos têm passado criminal. Considera-se correcta a aplicação ao recorrente, pelo crime dos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, als. h) e j), do DL 15/93, de 22-01, combinados, da pena de sete anos e meio de prisão, numa moldura penal que vai de seis anos e oito meses, por efeito da qualidade de reincidente, a quinze anos de prisão. XIX - Importa agora operar o cúmulo com a pena de 2 anos de prisão, pela prática do crime de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1, do CP, em que o arguido também foi condenado. A parcelar mais grave aplicada ao recorrente é de sete anos e meio de prisão, e a soma das parcelares atinge os nove anos e seis meses de prisão, pelo que é entre estas medidas que teremos que encontrar a pena única. XX - De um lado, defrontamo-nos com razões de prevenção especial prementes. Do outro, perfilam-se exigências de prevenção geral positiva não menos importantes. Tanto quanto resulta dos factos dados por provados, o recorrente cumpria pena por tráfico, ao mesmo tempo que continuava a traficar. O que pode levar a comunidade a descrer do efeito dissuasório do sistema repressivo penal. Quanto à prevenção especial, só uma pena com algum significado poderá ter efeito, se vier a ter, sobre a conduta futura do arguido. Mais do que uma vez condenado, entre o mais, por tráfico de droga, o recorrente conta com 54 anos. Ainda é possível mudar de rumo. Deve ficar o recorrente condenado, em cúmulo, na pena única de 8 anos de prisão.
Proc. n.º 1016/07 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
Soares Ramos
Simas Santos
Rodrigues da Costa
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