ACSTJ de 23-10-2008
Homicídio Homicídio privilegiado Compreensível emoção violenta Acórdão da Relação Fundamentação Competência da Relação Depoimento indirecto Testemunha Depoimento Recusa de parentes e afins Proibição de prova Atenuação especial da pena Medida d
I -A fundamentação do Tribunal da Relação está naturalmente vinculada ao objecto do recurso e às questões colocadas, não lhe competindo o mesmo tipo de fundamentação exigido pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP. II - Como se tem entendido neste STJ, as normas atinentes aos recursos, nomeadamente o art. 425.º do CPP, não remetem directamente para o art. 374.º, mas para o art. 379.º, estabelecendo o n.º 4 daquele art. 425.º que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”. Portanto, o art. 374.º só indirectamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os Tribunais de Relação, embora tenham competência em matéria de facto, não apreciam directamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, com subordinação aos princípios da imediação e da oralidade, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objecto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso. III - A possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do art. 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada; a possibilidade de recusa relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (art. 91.º do CPP). IV - A situação configurada nos autos [em que foi valorado depoimento prestado por testemunha, que, além do mais, relatou conversa tida com a mulher do arguido, que se recusou a depor em audiência], na perspectiva do depoimento indirecto (art. 129.º do CPP), não teria como consequência que o depoimento produzido, na parte identificada, não pudesse valer como prova. É que a recusa da mulher do arguido a depor, sendo embora legítima e impossibilitando o confronto com o declarado pela testemunha que validamente depôs, cairia no âmbito da excepção prevista na 2.ª parte do n.º 1 do art. 129.º: não ser possível a inquirição da pessoa indicada. V - A «perturbação da memória ou da capacidade de avaliação», a que se refere a al. b) do n.º 2 do art. 126.º do CPP não se aplica no caso do acesso de uma testemunha, antes de ser inquirida em julgamento, a declarações por si prestadas em sede de inquérito. Isto porque tal perturbação tem de consistir no emprego de um meio, por parte da autoridade judiciária ou policial que procede à recolha da prova, que altere artificialmente o funcionamento normal da memória ou a capacidade de avaliação do sujeito que constitui fonte de prova. No caso do acesso prévio a declarações por si prestadas em sede de inquérito, antes de ser inquirida em julgamento, a testemunha não foi sujeita por qualquer autoridade judiciária ou policial, contra sua vontade ou independentemente da sua vontade, a qualquer meio artificial para condicionar essas suas faculdades naturais. VI - O acesso da testemunha a declarações suas anteriores, fosse por meio de apontamentos de que dispusesse, fosse por meio de cópia ou fotocópia, fora do controle do tribunal e fora do próprio processo, não enquadra nenhuma forma de pressão ou condicionamento ilegítimos que pudesse sequer arremedar um método proibido de prova. A situação reconduzir-se-á aos termos normais de valoração do depoimento, considerando todas as circunstâncias em que foi prestado, e aí a questão ultrapassa os poderes deste Tribunal. VII - Nos termos do art. 133.º do CP, o privilegiamento do homicídio deriva de o agente ter actuado sob o domínio de uma compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, quando seja de concluir por uma sensível diminuição da sua culpa. VIII - Estas são circunstâncias que actuam ao nível da culpa, traduzindo-se numa menor exigibilidade, ou numa diminuição sensível da exigibilidade de outro comportamento. Para tanto o agente tem de ter actuado sob o império de um desses designados estados de afecto, de forma a poder afirmar-se uma culpa sensivelmente diminuída, como decorrência de uma menor exigibilidade de outro comportamento em face daquelas circunstâncias. Essa menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de um homem normal, respeitador das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente. Nessa perspectiva, vistas as circunstâncias do caso, tem de poder afirmar-se que um homem desse tipo teria também sofrido a sua influência, se colocado numa situação semelhante, e teria, por via disso, sido afectado no seu comportamento ou no processo normal de reagir (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, pág. 48). IX - Analisando os elementos privilegiadores, esclarece o citado autor (ob. cit., pág. 50) que «compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas a sua verificação nos termos preditos (…)». X - A matéria de facto considerada provada não integra o apontado elemento privilegiador. Com efeito, segundo tal matéria, o recorrente agiu de forma deliberada e livre ao dirigir o veículo contra a vítima, embora o fizesse e tivesse inclusive acelerado o veículo por ter avistado a vítima junto do carro onde se encontrava a mulher e suspeitando já que entre ambos existia um envolvimento amoroso (ou emocional, como consta dos factos provados), sendo certo que entre o arguido e a vítima havia também uma relação de amizade. Ora, não poderá equiparar-se a situação descrita a uma emoção violenta. Da matéria de facto considerada provada, poderá resultar que o arguido agiu movido pelo ciúme, mas com intuito de vingança, visto que suspeitava já dessa ligação, não o tendo tal facto impedido de agir deliberada e livremente quando lançou o veículo sobre a vítima. Estas circunstâncias não inculcam que o recorrente tenha agido sob o impulso de uma emoção violenta que tivesse diminuído sensivelmente a sua culpa. XI - Acresce que a acção do arguido não será compreensível, à luz de um “homem fiel ao direito”. O homem normal, sobretudo nos dias de hoje, de império dos mass media, de entranhamento na consciência da colectividade de que a situação conjugal, para se manter, tem de ter o acordo sempre actualizado de duas autónomas vontades, de duas pessoas livres para seguirem o seu caminho, poderia ficar perturbado ao tomar conhecimento da existência de uma relação extraconjugal mantida pela sua mulher com um indivíduo que considerava seu amigo, mas não reagiria da mesma forma que o recorrente. Provavelmente, nesta sociedade de frequentes e mútuas infidelidades conjugais, “tiraria as coisas a limpo com o seu cônjuge”, isto é, tentaria avaliar o estado em que se encontrava a relação e ver se ela se poderia manter ou se teria de fracassar. Pelos vistos, a relação que a mulher do arguido manteve com a vítima não foi impeditiva da continuação da relação conjugal. Ora, esse mesmo resultado não teria sido conseguido com o tal “tirar as coisas a limpo”, sem o excessivo preço de uma morte? XII -O elemento da compreensibilidade tem de ser, além disso, apreendido nas suas «conexões objectivas de sentido», como salienta, na esteira da doutrina e da jurisprudência estrangeiras com soluções semelhantes às do nosso direito, o autor acima referido (ob. e loc. cit.). Ora, o arguido, agindo deliberadamente, continuando, segundo as aparências, a viver com a mulher como até aí, quis sobretudo eliminar o seu concorrente. Não resulta, pois, da matéria de facto provada qualquer elemento que permita considerar o seu crime como privilegiado. XIII - A ideia-directriz do instituto da atenuação especial da pena é a de que funciona como válvula de segurança (loc. cit. pág. 302). Significa ela que a atenuação especial da pena deve abranger apenas aqueles casos em que se verifique a ocorrência de circunstâncias que se traduzam numa diminuição acentuada da culpa ou da necessidade da pena – casos verdadeiramente excepcionais em relação ao comum dos casos previstos pelo legislador ao estabelecer a moldura penal correspondente ao respectivo tipo legal de crime. Em tais hipóteses, porém, a atenuação especial é obrigatória – o tribunal atenua, diz a lei, após a revisão de 1995 – segundo um critério de discricionariedade vinculada e não dependente do livre arbítrio do tribunal. XIV - Nessa perspectiva, o facto tem de revestir uma tal fisionomia que se possa dizer, face à imagem especialmente atenuada que dele se colha, que encaixá-lo na moldura penal prevista para a realização do tipo seria uma violência. Por outras palavras, sendo as molduras penais correspondentes aos diversos tipos de crime pensadas para, dentro de uma latitude suficientemente ampla, nelas caber a vasta gama de situações que a vida real nos oferece, desde as mais simples às mais complexas, por vezes sucede que uma dada situação, por excepcional, não se amolda a nenhuma das gradações comportáveis pela moldura penal, nomeadamente quando o caso reveste uma fisionomia particularmente pouco acentuada em termos de gravidade da infracção, seja por via da culpa/ilicitude, seja por via da necessidade da pena. Para esses casos é que foi concebida uma moldura penal especialmente atenuada, que actua sobre a moldura penal abstracta cabível aos diversos tipos de crime. XV - Da análise da matéria de facto considerada provada não se extraem elementos que preencham qualquer das circunstâncias atenuantes previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do citado preceito, ou outras de natureza equivalente. Atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido e a sua conduta posterior – não prestando qualquer auxílio ao ofendido, que abandonou caído no meio da estrada, e não demonstrando qualquer arrependimento –, não se vislumbra que, apesar do contexto do âmbito do qual agiu e da ausência de antecedentes criminais, se mostre consideravelmente diminuída a culpa, a ilicitude ou a necessidade de pena. É certo que decorreu já muito tempo após a data do crime, não constando que, neste lapso de tempo, tivesse voltado a delinquir e mostrando-se que vem residindo com a esposa e dois filhos, estando socialmente integrado no meio onde reside. Todavia, essas circunstâncias não são suficientemente fortes, face ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado, para acarretarem uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa ou da necessidade da pena. XVI - A determinação da medida concreta da pena, inscrevendo-se na moldura penal abstracta prevista no respectivo tipo legal, obedece a parâmetros que têm como vectores fundamentais a culpa e a prevenção, consistindo as finalidades da pena na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP). Estas finalidades convergem para um mesmo resultado: a prevenção de comportamentos danosos, com vista à protecção de bens jurídicos comunitariamente relevantes, cuja violação constitui crime. À finalidade de prevenção, na sua vertente de prevenção geral positiva ou de integração, cabe fornecer a medida de tutela dos bens jurídicos entre um ponto considerado óptimo para a satisfação das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da norma jurídica violada e um ponto considerado mínimo, correspondente ao conteúdo mínimo de prevenção, sem a salvaguarda do qual periclita a defesa da ordem jurídica. À culpa compete, nos termos do art. 41.º, n.º 2, do CP, a função de limitar as exigências de prevenção geral, impondo um limite para além do qual a pena deixaria de ter um fundamento ético para passar a instrumentalizar o condenado em função de puros objectivos de prevenção. Entre o limite máximo e o limite mínimo traçado pela designada submoldura de prevenção, actuam as exigências de prevenção especial ou de socialização, as quais, devendo subordinar-se ao objectivo primordial de tutela dos bens jurídicos, constituem um elemento determinante na fixação da pena. XVII - No caso presente: -as exigências de prevenção especial mostram-se esbatidas, face à reconhecida inserção social, familiar e profissional do arguido; -o tempo decorrido, sendo já considerável, também atenua as exigências de prevenção geral; -não atenua as exigências de prevenção geral o facto de o crime ter sido cometido noutro país, pois, se assim fosse, valeria a pena praticar um crime de tal gravidade no estrangeiro e fugir depois para o país de origem, argumentando-se com a circunstância de o crime não ter provocado alarme social neste último; além de que tal argumento se revela falacioso, já que o sentimento da comunidade face ao conhecimento de tal crime não envolve menos repulsa, nem menos reprovação; o direito à vida humana é um direito, se não absoluto (porque não há direitos absolutos), tendencialmente absoluto e universal; -as circunstâncias em que o arguido agiu atenuam, sob certo prisma que, sendo cada vez menos ético-socialmente relevante, a sua culpa, e o arguido interiorizou de alguma forma o desvalor da conduta, apresentando-se às autoridades portuguesas; -não tem antecedentes criminais. neste contexto, será de atenuar-se-lhe a pena, embora de feição muito ligeira, visto que a pena aplicada [9 anos de prisão] pouco ultrapassa o mínimo correspondente à moldura penal; assim, esse abaixamento não pode ir além de 6 meses, pelo que se tem como adequada a pena de 8 anos e 6 meses de prisão.
Proc. n.º 1212/08 -5.ª Secção
Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor
Simas Santos
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