ACSTJ de 16-10-2008
Homicídio Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Competência do Supremo Tribunal de Justiça Competência da Relação Recurso da matéria de facto Recurso da matéria de direito Conhecimento oficioso Duplo grau de jurisdição Constitucionalida
I -Tem sido jurisprudência constante deste STJ, a respeito da invocação dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que o conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal colectivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do art. 410.º do CPP. Quando o art. 434.º do CPP nos diz que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, “sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º”, não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o STJ possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo STJ, oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito. O âmbito dos poderes de cognição do STJ é-nos revelado pela al. c), hoje al. d), do n.º 1 do art. 432.º, que restringe o conhecimento do STJ a matéria de direito. E refira-se que as alterações do CPP operadas pela Lei 48/2007, de 29-08, não modificaram os preceitos em causa (al. c), depois d), do art. 432.º e art. 434.º), de modo a justificar-se uma inflexão da orientação seguida neste STJ. II - Mesmo que se defenda a garantia de incidência constitucional de um duplo grau de jurisdição, também em matéria de facto, ela fica na mesma preservada com este entendimento, devendo apenas, se for caso disso, optar o arguido pela interposição do recurso para a Relação quando invocar os vícios do art. 410.º do CPP. III - Acontece porém que ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o STJ tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do acórdão para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, do Pleno das Secções Criminais deste STJ (Proc. n.º 46 580 -3.ª, in DR Série I -A, de 28-12-1995). IV - O erro notório na apreciação da prova, como tem sido repetido à saciedade, na jurisprudência deste STJ, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida. V - O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto. VI - Diz o art. 32.º do CP que, para que ocorra a causa justificativa da legítima defesa, se exige uma agressão actual, ilícita, e de interesses legitimamente protegidos de alguém. E que, da parte da defesa, haja uma actuação reputada meio necessário para repelir a agressão. Daqui decorre, entre o mais, que o meio necessário deve ser o meio menos gravoso possível, que seja suficiente para repelir a agressão. Não pode pois, pelo menos, haver uma desproporção escandalosa entre o que se defende e o mal causado com a defesa. Depois, a defesa é para repelir e só para repelir a agressão. O defendente não pode ter outra intenção que não seja a de afastar o mal. VII- A atenuação especial da pena do art. 72.º do CP exige que se verifiquem, no caso, circunstâncias reveladoras de uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena. Circunstâncias essas que podem ser, tanto anteriores, como contemporâneas ou posteriores ao facto. VIII - Considerando que: -a gravidade do ilícito é patente, com a morte da vítima; -a culpa se analisa num dolo directo, que presidiu a uma acção analisada, para além do mais, no espetar 12 cm de lâmina da faca na barriga da vítima; -as necessidades de prevenção geral e especial se fazem sentir, sabido que o arguido enveredou por um teor de vida em que a vida nocturna estava presente, com o consumo de ecstasy; nem a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena se apresentam, no caso, suficientemente diminuídas, “de forma acentuada” diz a lei, para ser autorizada a atenuação especial. IX - Na sindicância das penas aplicadas, o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar não pode deixar de se prender com o disposto no art. 40.º do CP, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o n.º 2 do preceito que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. X - Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, a ter lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Com este entendimento tem-se visto, aliás, uma consonância com o imperativo constitucional do n.º 2 do art. 18.º da CRP, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Sendo certo que se não divisa, no texto fundamental, a eleição dum imperativo ético-penal da retribuição ou expiação da culpa, como direito ou interesse protegido constitucionalmente. XI - Quando pois o art. 71.º do CP nos vem dizer, no seu n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40.°. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: -a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”; -será dentro dos limite consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além de suporte axiológiconormativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar; -cf. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e ss. XII - O n.º 2 do art. 71.º do CP manda atender, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. XIII - No caso presente: -entende-se ser de sublinhar o facto de o crime [de homicídio] ter tido lugar enquadrado numa relação homossexual, em que os afectos estavam vivos, ter ocorrido no desenvolvimento de uma refrega, com libertação de emoções; confronto esse em que aconteceram agressões mútuas; -nada havia a apontar [ao arguido] em sede de registo criminal quanto ao seu comportamento anterior, e goza de apoio familiar, pelo menos da irmã e cunhado; é um jovem estudante com a possibilidade de refazer a sua vida; a decisão de 1.ª instância [confirmada pela Relação], depois de fazer a sua ponderação, afirmou que a pena não devia afastar-se muito do limite mínimo; entendemos que se deve fixar mesmo nesse limite mínimo, pelo que o recorrente verá diminuída a pena em que foi condenado de 9 para 8 anos de prisão.
Proc. n.º 2851/08 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
António Colaço
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