ACSTJ de 08-10-2008
Custas criminais Isenção Difamação Juiz Dolo eventual Negligência consciente Animus corrigendi Provocação Dispensa de pena Pedido de indemnização cível Indemnização
I -Não assiste razão ao arguido, magistrado judicial, que recorreu pretendendo estar isento do pagamento de custas, ao abrigo do art. 17.º, n.º 1, al. g), da Lei 21/1985, de 30-07, uma vez que este preceito prevê a isenção de custas por parte do juiz “em qualquer acção em que seja parte principal ou acessória”, o que remete para o domínio cível, estando aqui em causa processo relativo a crime que lhe foi imputado, com pedido de indemnização cível por factos ilícitos e praticado apenas por ocasião do exercício das suas funções. II - O recorrente proferiu a seguinte expressão, em voz alta e dirigindo-se a uma funcionária judicial: “Você é burra e mais burra é a Procuradora”, tendo sido condenado pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 180.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), todos do CP; a sua pretensão, no sentido de concluir pela imputação do descrito comportamento a título de negligência (não punida), está votada ao insucesso: com efeito, o facto de ter agido com animus corrigendi não exclui o dolo, na modalidade de dolo eventual. III - Para que se configurasse uma situação de negligência consciente, como o mesmo pretende, impunha-se que este tivesse configurado a possibilidade de lesão do bem jurídico protegido – aqui, a honra e consideração da assistente, magistrada do MP – e que tivesse confiado que isso não iria ter lugar, ou porque era de crer que a assistente nunca saberia das suas palavras, ou porque era de crer que, conhecendo-as, as mesmas lhe seriam indiferentes. IV - Nenhuma das suposições se pode razoavelmente acolher na conjuntura, tendo em conta o facto das suas palavras, do modo como foram proferidas, poderem ser ouvidas por testemunhas, como foram, e tendo em conta o facto da funcionária também ter sido apelidada de “burra” na mesma ocasião, o que aponta para a rejeição de uma situação de negligência consciente. V - A doutrina tem critérios que permitem ao julgador afirmar o dolo eventual contrapondo-o à negligência consciente: para tanto se propõe, por exemplo, a configuração de um consentimento hipotético – se o recorrente tivesse previsto a lesão do bem jurídico como inevitável, pelo que se sabe da sua personalidade, teria actuado do mesmo modo? –, ou a pergunta pela verosimilhança do resultado – era ou não altamente provável de um ponto de vista objectivo que o resultado criminoso iria resultar da conduta? –, ou ainda a indiferença para com a realização do tipo, a ausência de qualquer manifestação objectiva de vontade de evitar o resultado – o arguido fez alguma coisa para que o efeito se não produzisse?. VI - Se por natureza o dolo eventual pressupõe uma finalidade da acção, que não é lesar o bem jurídico – pese embora a conformação com a dita lesão –, então o animus corrigendi é perfeitamente compatível com esse dolo eventual: basta que o modo empregue para corrigir se tivesse afastado do necessário para tanto, e ofenda. VII - Verifica-se que foi o conhecimento da consulta que a testemunha – funcionária judicial –, fez à assistente e das instruções dadas por esta, num contexto em que, depois de uma forte amizade, arguido e assistente cortaram relações, “ofendendo-se reciprocamente nos despachos e promoções”, que desencadeou o estado de exaltação em que o arguido disse o que disse. VIII - Para efeitos do art. 186.º, n.º 2, do CP, a conduta repreensível do ofendido não tem que ser pré-ordenada à reacção do arguido; basta que a provoque, no simples sentido de a causar, mas tem que desencadear “um estado psicológico de ira ou descontrolo emotivo, que se concentra, impulsivamente, em uma imediata reacção àquela precisa ofensa primitiva” – Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 671. IX - Em termos ético-deontológicos correctos, a assistente deveria ter evitado imiscuir-se na relação profissional que havia entre a testemunha e o arguido, nomeadamente tendo consciência de que estava, desse modo, a levar aquela a desobedecer a este. É evidente que o carácter repreensível do comportamento da assistente é leve, mas também a gravidade do comportamento do arguido não é muito pesada. X - Entre a provocação e a reacção houve apenas a desproporção inerente ao facto da primeira não constituir qualquer ilícito e a segunda ser crime, permitindo a dispensa de pena pela conduta do arguido. XI - Ponderando a gravidade objectiva do epíteto “burra”; o vexame ocasionado; a divulgação no meio profissional e a perturbação que, por essa via, se acrescentou a outros níveis, como o social ou o familiar; o estatuto sócio-económico de ambos; a actuação em estado de exaltação e o dolo eventual, a indemnização arbitrada é justa e equilibrada [fixada em € 2500].
Proc. n.º 3930/06 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
António Colaço
Soares Ramos
Santos Carvalho
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