ACSTJ de 02-10-2008
Tráfico de estupefacientes Tráfico de menor gravidade Tráfico de estupefacientes agravado Bem jurídico protegido Distribuição por grande número de pessoas Avultada compensação remuneratória Factos genéricos Direitos de defesa Medida concreta da pe
I -O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico é o do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 2201, tipo esse que corresponde aos casos de tráfico normal e que, pela amplitude da respectiva moldura – 4 a 12 anos de prisão –, abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevado – tão elevado que justifique a pena de 12 anos de prisão. II - Os casos excepcionalmente graves estão previstos no art. 24.º, pela indicação taxativa das várias circunstâncias agravantes que se estendem pelas diversas alíneas do art. 24.º, enquanto que os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25.º, aqui por enumeração exemplificativa de algumas circunstâncias que, fazendo baixar a ilicitude para um limiar inferior ao requerido pelo tipo-base, não justificam (desde logo por não respeitar o princípio da proporcionalidade derivado do art. 18.º da CRP) a grave penalidade prevista na moldura penal estabelecida para o tráfico normal. III - A grande generalidade do tráfico de estupefacientes caberá dentro das amplas fronteiras do tipo matricial; os casos de gravidade consideravelmente diminuída (pequeno tráfico) serão subsumidos no tipo privilegiado do art. 25.º e os casos de excepcional gravidade serão agravados de acordo com as circunstâncias agravantes do art. 24.º. IV - Este último normativo rege para situações que desbordam francamente, pela sua gravidade, do vasto campo dos casos que se acolhem à previsão do art. 21.º e que ofendem já de forma grave ou muito grave os bens jurídicos protegidos com a incriminação – bens jurídicos variados, de carácter pessoal, mas todos eles recondutíveis ao bem jurídico mais geral da saúde pública. São, em suma, situações que, pelo que toca às quantidades e aos lucros obtidos, devem atingir significativas ordens de grandeza, que não se compadecem, de um modo geral, com a venda de substâncias estupefacientes ao consumidor final por um traficante que vai satisfazendo as necessidades de um pequeno círculo de pessoas, ainda que se venha dedicando, por tempo significativo, a essa actividade e tenha a sua subsistência assegurada exclusivamente através dela. V - O arguido pode ter-se dedicado à venda de produtos estupefacientes durante um lapso de tempo relativamente grande, mas o número de pessoas a quem vendeu tais produtos ser um número fixo e escasso. Isto é, ele pode ter fornecido um conjunto mais ou menos certo de consumidores que o abordavam no dia-a-dia. Nesse caso, não se pode falar em a droga ter sido distribuída por um grande número de pessoas, pois se as pessoas forem mais ou menos as mesmas, ainda que servidas muitas vezes pelo mesmo fornecedor, isso não faz com que o seu número seja vasto. A lei [al. b) do art. 24.º], ao falar em grande número de pessoas, tem em vista um número incalculável, de grandes proporções, de pessoas que tenham sido atingidas pelo tráfico de droga e não um grupo de toxicodependentes, ainda que relativamente numeroso, que se abastece normalmente no mesmo traficante. VI - No caso presente, na matéria de facto provada, por vezes refere-se que o arguido vendeu droga em “número de vezes não concretamente apurado”, mas, por aí, não se pode deduzir que a venda foi feita a um grande número de pessoas, no sentido já precisado. Isto para além de tais factos indeterminados, pouco precisos nos seus contornos, não poderem servir para agravar substancialmente as penas do crime de tráfico, quando este já é muito severamente punido. Além disso, a própria lei já parte de conceitos indeterminados, de forma a acrescentar à indeterminação legal a indeterminação ou imprecisão dos factos é correr um risco muito acentuado no que diz respeito às garantias do processo criminal. VII - Relativamente à avultada compensação remuneratória, considerando que: -ao arguido não foram encontradas grandes quantias em dinheiro, nem consta que tivesse contas chorudas em estabelecimento bancário ou que as tivesse empregue na aquisição de bens ou por qualquer forma dissipado ou dissimulado; -os objectos que lhe foram encontrados também não atestam um volumoso negócio no tráfico da droga; -vivia numa casa velha junto ao cemitério; não tinha emprego, é certo, e vivia do tráfico, mas tal é insuficiente para caracterizar o conceito de avultada compensação remuneratória, de modo que também esta circunstância agravativa cai pela base. VIII - A factualidade provada apenas preenche o tipo legal do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, tipo matricial ou tipo-base do tráfico. E preenche-a, não em atenção apenas às quantidades de droga que lhe foram encontradas, mas ao facto de o arguido se vir dedicando há muito ao tráfico de drogas duras, fornecendo habitual e reiteradamente diversos consumidores toxicodependentes e vivendo à custa dessa actividade criminosa. IX - No caso dos autos, considerando que a moldura penal aplicável é de 4 a 12 anos e atendendo a que: -a ilicitude tem algum relevo, dado que o arguido se vinha dedicando há anos ao tráfico de estupefacientes, vendendo ou cedendo a terceiros, regularmente, drogas duras, tais como a heroína e a cocaína, como se sabe, de grande danosidade social; -o arguido vivia exclusivamente dos rendimentos que o tráfico lhe proporcionava e não era toxicodependente, o que acentua o desvalor da acção; -no capítulo da culpa, é de salientar a modalidade dolosa que a mesma reveste, intensificada ainda pela persistência do arguido na conduta criminosa, voltando a frequentar locais que lhe tinham sido vedados por anterior medida de coacção e neles tendo sido encontrado com produtos estupefacientes; -o arguido não tem antecedentes criminais, mas essa circunstância tem pouco relevo, dado que a ausência de antecedentes criminais não significa que o arguido tenha pautado anteriormente a sua conduta pelas normas jurídicas, nomeadamente as de carácter penal; de qualquer forma, é a primeira vez que responde por factos ilícitos; -quanto às condições pessoais relacionadas com os factos, o arguido não os confessou, nem demonstrou tê-los interiorizado; -quanto a outras condições pessoais, o arguido é solteiro, vive numa casa velha junto ao cemitério, tem actualmente 26 anos de idade e é oriundo de família caboverdiana; as exigências de prevenção geral são acentuadas e as de prevenção especial merecem, pelo já exposto, alguma consideração negativa, a que a pena também tem de obviar; considerando todos estes factores, a pena mais adequada é a de 6 anos de prisão [ao invés da pena de 10 anos de prisão, aplicada em 1.ª instância pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, als. b) e c), do DL 15/93]
Proc. n.º 1314/08 -5.ª Secção
Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor
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