ACSTJ de 29-10-2008
Tráfico de estupefacientes Crimes de perigo Tráfico de menor gravidade Ilicitude consideravelmente diminuída Medida concreta da pena Suspensão da execução da pena
I -O art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas relacionadas com substâncias estupefacientes, descreve de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica. II - Tal preceito contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo: a lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que estas revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão interindividual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou determine – a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta. III - Os tipos de crime de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência, conduzem à lesão, não dependendo da perigosidade do facto concreto mas sim de um juízo de perigosidade geral. IV - O crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, é um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública. E é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo para um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a esses bens. V - Por outro lado, o preceito em questão é caracterizado por uma estrutura progressiva que pretende abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de estupefacientes. Tal estrutura concretiza-se com a integração vertical em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental do art. 21.º, a saber, o art. 24.º, no sentido agravativo, e o art. 25.º, no sentido atenuativo. VI - A opção que a jurisprudência consagrou relativamente a este ilícito tem como paradigma a teoria das condutas alternativas, que radica na consideração de que as diversas condutas não são autónomas em si, mas alternativas, de tal maneira que para a subsistência do delito é indiferente que se realize uma ou outra, permanecendo um só delito ainda que se realizem as diversas acções descritas. VII - Nestes casos, a razão pela qual se castiga por um único crime não radica na existência de um concurso de normas, mas sim na especial estrutura delitiva, já que se trata de um delito de condutas alternativas que estão entre si numa relação de progressão criminal: do cultivo de droga passa-se à fabricação de produtos estupefacientes que exijam intervenção química, segue-se o transporte e, por último, os actos de tráfico. VIII - A essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21.º) e privilegiado (art. 25.º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei. O critério de proporcionalidade que deve estar pressuposto na definição das penas, constitui, também, um padrão de referência na densificação da noção de considerável diminuição da ilicitude, com alargados espaços de indeterminação. IX - As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. X - Com efeito, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo legal de crime de condutas de matriz tão diversa como o tráfico internacional, envolvendo estruturas organizativas integradas e produtos de quantidades e qualidades muito significativas, e o negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização, actuando isoladamente, sem estrutura e como mero distribuidor (num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude, situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar e com tendência para uma compartimentação cada vez maior). XI - Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do DL 430/83 – já aí demonstrava a sensibilidade à diversidade de perfis de actuação criminosa – quando afirma que: «Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial». XII- A consciência de uma tal distinção de comportamentos também justifica, ao nível da prossecução de finalidades de prevenção geral e especial, as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (arts. 21.°, 22.° e 24.°), os pequenos e médios (art. 25.°), e ainda aqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (art. 26.°). XIII - A actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida à margem de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer técnica ou meio especial, dá uma matriz de simplicidade. XIV - Todavia, como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos na distinção dos tipo surgem a quantidade e a qualidade da droga. XV - A apreciação da quantidade detida não dispensa a ponderação de algumas características da qualidade, como sejam o grau de pureza da substância estupefaciente [não é indiferente deter 100 g de heroína com um grau de pureza de 3% ou 100 g da mesma substância com um grau pureza de 80%] ou o perigo da substância [deter 100 g de heroína ou de cocaína é muito diferente de deter 100 g de haxixe]. XVI - Em Portugal, o único texto legal que contém uma referência a quantidades de estupefacientes é a Portaria 94/96, de 24-03, que, embora com uma finalidade totalmente distinta, nos dá, no mapa elaborado com referência ao seu art. 9.º, uma indicação dos limites quantitativos máximos diários de consumo de estupefacientes, apontando-se o valor de 0,1 g quanto à heroína e de 0,2 g no que respeita à cocaína. XVII - Considerando os termos do apontado mapa de limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária [dos produtos nele referidos], impõe-se concluir, no caso dos autos, que a actividade ilícita da arguida, consistente na detenção de heroína e cocaína em quantidades correspondentes a 7 e 9 doses individuais, respectivamente, por forma alguma se inscreve num mínimo de organização ou estrutura que apresente qualquer tipo de elaboração, que não a inerente ao traficante de rua. XVIII - Impõe-se, por isso, a condenação da arguida pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22-01 (e não pelo tipo fundamental do art. 21.º, como decidiu a 1.ª instância), mostrando-se adequada a fixação da pena em 4 anos de prisão. XIX - Pressuposto básico da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena será a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável, ou seja, que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem, de forma clara, para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos. XX - Esse juízo de prognose está afastado no caso concreto, pois a arguida, através da sua conduta, demonstrou insensibilidade perante as duas anteriores condenações (também pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22-01) e persistência em opções desvaliosas em termos de comportamentos ilícitos.
Proc. n.º 2961/08 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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