ACSTJ de 29-10-2008
Concurso de infracções Cúmulo jurídico Pena única Fundamentação Medida concreta da pena Violação Roubo
I -O eixo da definição da pena conjunta situa-se no art. 77.º, n.º 1, do CP, o qual dispõe que na medida da pena a aplicar na sequência de concurso de crimes são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente. II - Eduardo Correia (Direito Criminal, Colecção Studium, 1953) justificava o peso da valoração da personalidade como resultante directa do compromisso da retribuição com considerações especiais preventivas e ainda num puro plano ético jurídico que perspectiva o agente no seu modo de ser concreto. Afirmava o mesmo Mestre que «Mas sendo assim, quando o agente pratica vários crimes, a sua personalidade não pode, na avaliação da pena que lhe cabe, deixar de ser avaliada unitariamente. Não faria sentido tomar em conta o modo de ser do delinquente para graduar a pena por um facto por ele praticado, tornar a considerá-lo para a perpetração de um outro crime e depois puni-lo mecanicamente pela adição das duas penas. Se a personalidade do agente é, materialmente, objecto da punição quando se trata de um só delito será elemento comum da punição quando se trate de vários, e se unificará, por isso, de tal sorte o respectivo concurso que este não poderá, mesmo conceptualmente, deixar de apresentar-se como um todo». III - É na sequência de tal entendimento que o art. 77.º, n.º 1, do CP estrutura a elaboração do cúmulo em função da equação factos/personalidade. Sobre o mesmo refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 276 e ss.) que «a medida da pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. (…) A existência deste critério especial obriga logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz uma vez mais – ou puramente mecânico e portanto arbitrário. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.°, tanto mais quanto os factores por este enumerados podem servir de «guia» para a medida da pena do concurso, sem violação da proibição de dupla valoração: nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável. IV - Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». V - Merece inteira sintonia o entendimento de que a substituição daquela operação valorativa por um processo de índole essencialmente aritmética de fracções e somas se torna incompatível com a natureza própria da segunda fase do processo. Com efeito, fazer contas indica voltar às penas já medidas, ao passo que o sistema parece exigir um regresso aos próprios factos. Dito de outro modo, e como refere Cláudia Santos (RPDC, ano 16, pág. 154 e ss.), as operações aritméticas podem fazer-se com números, não com valorações autónomas. VI - «Ao admitir uma só pena para um caso que não se identifica com o ilícito simples, o sistema confessa que essa massa de ilícito, não sendo indiferenciada, ostenta uma peculiar unidade. Querendo que, na determinação da pena concreta do concurso, se tenham em conta, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente, este modelo admite que a relação dos factos entre si e com a personalidade do seu autor cria ou reclama para cada grupo de crimes concorrentes um específico desvalor final – quer de ilícito, quer de culpa. Ou seja: a unidade própria do concurso efectivo de infracções apresenta-se como uma unidade de relação. Pode porventura falar-se, neste sentido, de um ilícito-típico próprio do concurso verdadeiro de infracções e de uma culpa própria desse concurso também. O ilícito que se torna global – não homogéneo, mas uma espécie de ilícito de ilícitos –, com os contornos fixados pela moldura do concurso, para que a ele se possa referir a censura subjectiva a dirigir ao agente. A culpa que se liberta também dos anteriores juízos parciais e é autonomamente avaliada (tal como a perigosidade e as necessidades de prevenção) no interior dessa moldura. Mal se compreenderia uma culpa desfasada do ilícito que a sustenta». VII - Estando em causa 3 penas parcelares de 6 anos e 6 meses cada, e 3 penas parcelares de 2 anos e 6 meses cada, aplicadas ao arguido pela prática, respectivamente, de 3 crimes de violação e de 3 crimes de roubo, e tendo em consideração que: -num espaço de tempo curto, de cerca de um ano, o recorrente cometeu três crimes de violação, demonstrando uma olímpica indiferença perante bens nucleares da vida em sociedade como são a autodeterminação sexual, a integridade física e psíquica e a autoconsideração; -tal opção pela prática de um crime grave, pela indiferença que revela perante o outro, surgiu poucos meses após a libertação do arguido, que cumpriu pena privativa de liberdade pela prática de crimes de idêntico perfil; -a concessão de liberdade condicional, como passo de um processo de socialização, foi absolutamente indiferente ao arguido; -a prevenção geral e especial são concordes no sentido de uma pena que reflicta o desvalor da personalidade demonstrado pelos factos, a qual se expressa através de uma culpa intensa; -a conduta do arguido reflecte uma profunda anomia de valores, pelo que o processo de ressocialização deve ser o adequado e proporcional a uma inflexão de comportamentos; -a prevenção geral surge recortada com intensidade perante a forma como valores nucleares para a vida em sociedade são colocados em causa por agentes que persistem na conduta à revelia da lei e à indiferença pelo seu concidadão; e não olvidando que a pena conjunta não pode reflectir uma inflexibilidade que a aproxime da acumulação material de penas, entende-se por adequada a condenação do arguido na pena de 16 anos de prisão.
Proc. n.º 2814/08 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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