ACSTJ de 29-10-2008
Homicídio privilegiado Culpa Exigibilidade diminuída Desespero Medo Concurso de infracções Pena única Fundamentação Fórmulas tabelares Nulidade da sentença
I -O homicídio privilegiado assenta numa cláusula de exigibilidade diminuída, concretizada em certos “estados de afecto”, vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa. II - As cláusulas previstas no preceito não funcionam automaticamente, por si e em si mesmas, não bastando para privilegiar o crime a verificação do elemento privilegiador. III - Como refere Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, pág. 48), «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos, (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos» – cf., versando este ponto, os Acs. do STJ, de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 -5.ª, de 07-062006, CJSTJ, 2006, tomo 2, pág. 207, e de 03-10-2007, Proc. n.º 2791/07 -3.ª. IV - Da mesma forma, Fernando Silva (Direito Penal Especial, págs. 95-96) esclarece que a diminuição da culpa não é automática pela presença de um dos elementos previstos no tipo, aos quais se pode atribuir um sentido indiciador idêntico aos dos exemplos padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP, aduzindo que a estrutura e funcionamento do tipo decorrem um pouco à semelhança do crime de homicídio qualificado, em que não basta a presença de uma das circunstâncias privilegiadoras para operar a aplicação do tipo. Este apenas funcionará se o dolo do agente for fundado unicamente pelos factores de perturbação em que se encontra, e se tiver a culpa diminuída, pois podem ocorrer outras circunstâncias que impeçam que o facto possa ser considerado menos exigível. V - Numa situação em que: -o recorrente NC, bem como o co-arguido PS, sendo consumidores de heroína e toxicodependentes, conhecendo o PRA (descrito como um indivíduo conflituoso, que exercia a actividade de porteiro de discotecas, e tinha ligações com o mundo da droga), passam a colaborar com este no tráfico de estupefacientes, a partir de Agosto de 2006; -o recorrente e o referido co-arguido passam a trabalhar para o PRA de forma continuada, através de uma acção concertada sob a orientação daquele, na venda de heroína e cocaína, assim assegurando produto para seu consumo, partilhando este com o arguido R. -para o efeito, o “dono do negócio” entregava-lhes heroína e cocaína, cerca de 10 a 15 g de cada vez, a € 100 o grama, para aqueles venderem por sua conta, tendo combinado que todos os domingos faziam contas das vendas efectuadas durante a semana; -o recorrente levou para sua casa um total de 76 g de cocaína, que rendiam € 7600 (€ 100 o grama); -os arguidos PS e NC passaram a consumir parte do produto que o dono do negócio lhes entregava e deixaram de pagar com regularidade as quantias referentes às vendas, passando a avolumar-se o valor das dívidas para com aquele, de tal modo que, cerca de 3 meses mais tarde, em Novembro de 2006, as dívidas do PS e do NC ascendiam a € 2000 cada um; -o “credor” pressionou por várias vezes os devedores para que estes lhe pagassem as dívidas e estipulou um prazo final – 1 de Fevereiro de 2007 –, dizendo-lhes que os pendurava numa árvore; -os arguidos NC e PS ficaram com receio da reacção do PRA após o decurso desse prazo porque não tinham maneira de lhe pagar aquela dívida, dizendo o PS ao NC que “o PRA precisava de levar um tiro”, e entenderam que teriam de matar o PRA antes que este lhes fizesse algum mal, formulando então o propósito de o matar e assim livrarem-se das dívidas que tinham para com este; -o recorrente NC e co-arguido PS tiveram conhecimento de um desacato ocorrido na discoteca F…, onde o PRA trabalhava, entre este e outros indivíduos não identificados, cerca de uma semana antes da morte deste, e consideraram que seria a melhor altura para matarem o credor, pois as suspeitas iriam recair sobre esses indivíduos ou outros com os quais aquele tinha conflitos; -com o propósito de porem termo à vida do PRA, não tendo arma de fogo, nem munições, nem meio de transporte de F… para P…, diligenciaram no sentido da sua obtenção; -o NC estabeleceu um primeiro contacto, abordando FM para que lhe arranjasse uma arma de fogo, o que não conseguiu; -posteriormente, muniu-se de uma caçadeira [velha, de calibre 12, com canos justapostos com 45 cm de comprimento, em mau estado de conservação e com um defeito no mecanismo de disparo do cano esquerdo] que estava na residência do seu tio e padrinho MR; -seguidamente, junto do primo PT, conseguiu cinco cartuchos de caça, todos vermelhos; -por volta de 24 ou 25 de Janeiro de 2007, os mesmos arguidos combinaram ir ao L… para surpreenderem o PRA na sua residência, de modo a concretizarem o plano gizado por ambos com vista a tirar a vida a este; -necessitando de uma viatura para a deslocação a P…, conseguiram a adesão de LP, tendo pedido a este para os deixar no L… porque iam pregar um “susto” ao PRA e depois telefonavam-lhe para os ir buscar; -no decurso da viagem, pararam na C… e experimentaram a arma, disparando dois cartuchos vermelhos, um cada um, para um pasto; -o transportador deixou os arguidos nas proximidades da casa do PRA, para onde se dirigiram, ali chegando cerca das 20h30, após terem escondido a caçadeira, e, porque não estivesse em casa, aguardaram pela sua chegada; -decorridos uns minutos, como aquele não surgiu, regressaram para F…. -restando apenas três cartuchos, verificou-se um reforço do municiamento, tendo o PS eo NC, entretanto, adquirido diversos cartuchos brancos e vermelhos; -o PRA não compareceu a um encontro marcado no posto de leite de F…, mas o NC eo PS, enquanto o esperavam, “treinaram”, fazendo vários disparos e concluindo que os cartuchos brancos eram melhores, por serem mais potentes, causando maior mossa, sendo os chumbos maiores; -face à falta de comparência do PRA, ligaram ao RB [o arguido RB, consumidor que comparticipava nos gastos da droga fornecida pelo PRA, começou por propor contribuir para a liquidação da dívida, oferecendo € 500 euros; mas, como tal quantia era manifestamente insuficiente, uma vez posto ao corrente do plano, acabou por colaborar na liquidação do credor] para os conduzir a P…; comparecendo ele no posto de leite e saindo cerca das 19h00/20h00, após passagem pela sua casa, onde foi buscar um gorro preto para tapar a cara, arrancaram para P…, dirigindo-se a casa do PRA; -o PRA, que se encontrava na sua rua a conversar, deslocou-se de seguida a um café e posteriormente a S…., regressando depois a casa, sendo em todo esse percurso seguido pelos arguidos; -após um compasso de espera, dirigiram-se o recorrente NC eo RB, a pé, a casa do PRA, vestindo o primeiro um casaco com capucho sobre a cabeça e o segundo o gorro na cabeça, colocando o recorrente um cartucho branco por ser o que poderia causar maiores lesões, sendo o PRA surpreendido quando abriu a porta e disparando o RB contra ele, a menos de 3 m; é patente que não se está perante uma emoção passageira ou uma reacção afectiva a algo que tivesse surgido no momento – a razão que desde logo, no início, esteve subjacente a todo o processo posterior, os motivos de formulação do desígnio criminoso consta dos factos provados: os arguidos projectaram matar o fornecedor/credor antes que este lhes fizesse algum mal, mas, por outro lado, assim se livravam das dívidas que tinham para com aquele. VI - Não se configura uma situação de desespero, pois não estava o recorrente NC numa posição de sujeição a humilhação, num quadro vivencial de angústia, de um beco sem saída, havendo apenas uma situação de dívida. VII - Não se está face a uma situação de pânico, pois “pânico”, como é definido no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, pág. 2735), é terror súbito, violento, incontrolado, que perturba súbita e violentamente o espírito, escapando ao controlo da razão, ao domínio da vontade, face a uma ameaça de perigo. VIII - Um sentimento de medo não será compaginável com todo o percurso percorrido pelos arguidos até ao desfecho final, assumindo atitudes que reflectem preparação de um plano traçado com antecedência, pensado e executado ao pormenor, passo a passo, degrau a degrau, ultrapassando dificuldades e tentativas abortadas, avançando para novas soluções, sempre visando alcançar o objectivo querido desde o início. A preparação do crime, feita com cuidado, não revela qualquer sentimento de inquietação; não evidencia preocupação pelo que possa suceder, pela ocorrência de algo desagradável após 1 de Fevereiro (termo final fixado pelo credor para pagamento da dívida); não denuncia hesitação, ou receio, nem tão pouco timidez; não manifesta perturbação; não afirma falta de capacidade de avaliação e de serenidade por parte dos arguidos. IX - E a reflexão prolongada sobre o facto funciona como impeditivo do privilegiamento, pois com o passar do tempo o recorrente foi sedimentando a vontade de actuar, aumentando, assim, a exigibilidade do não cometimento do crime, não sendo, em consequência, a sua conduta subsumível à norma do art. 133.º do CP. X - O acórdão do tribunal colectivo que, na fixação da pena única, se socorre de uma fórmula minimalista, simplista, redutora, limitando-se a uma seca reprodução do texto legal, prescindindo de âncoras factuais, será nulo, por falta de fundamentação. XI - No entanto, considerando que o elemento integrante de maior peso específico na pena final conjunta a encontrar é agora definido em sede de recurso, em função da fixação da nova pena parcelar, assumindo a questão, por via disso mesmo, novos contornos, e atendendo a que, por outro lado, a pena aplicada ao recorrente NC e ao co-arguido PS pelo crime de tráfico se mantém inalterada, considerar-se-á como ultrapassado o vício existente, fixando-se agora, nos termos da lei, a nova pena conjunta.
Proc. n.º 1309/08 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
|