Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 29-10-2008
 Princípio da investigação Audiência de julgamento Homicídio qualificado Frieza de ânimo Especial censurabilidade Especial perversidade Homicídio Tentativa Detenção de arma proibida Medida concreta da pena Responsabilidade civil emergente de crim
I -O princípio da livre investigação ou da verdade material tem o seu campo essencial de aplicação na audiência de julgamento, pelo que, ressalvados os direitos do arguido e os preceitos imperativos sobre a admissibilidade de certas provas, o CPP não admite qualquer restrição ao poder/dever do juiz de ordenar (ou autorizar) a produção de prova indispensável para a boa decisão da causa, isto é, para a instrução do facto ou para a descoberta da verdade material acerca dele.
II - Assim, tendo determinada certidão sido junta ao processo por decisão oficiosa do tribunal de 1.ª instância, com vista a apurar da existência do bom ou mau relacionamento entre o arguido e a assistente, tendo a junção ocorrido no decurso do julgamento e sido ordenada por despacho judicial da qual os interessados foram notificados, estes puderam exercer o contraditório, e a prova resultante desse documento é válida, não tendo sido violado o estatuído no art. 355.º do CPP.
III - A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue-frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução – cf. Ac. do STJ de 30-09-1999, Proc. n.º 36/99 -3.ª, SASTJ, n.º 33, pág. 94 –, ou consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução persistente na resolução – cf. Ac. do STJ de 17-02-2005, Proc. n.º 4216/04 -5.ª, SASTJ, n.º 88, pág. 123.
IV - Por outro lado, há que ter em atenção que as circunstâncias enumeradas a título exemplificativo no art. 132.º, n.º 2, do CP não são elementos do tipo legal de crime, mas da culpa. Não são, por isso, de funcionamento automático, pelo que pode verificar-se qualquer delas e, apesar disso, concluir-se que o agente não agiu com especial censurabilidade ou perversidade (cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 20-03-1985, BMJ 345.º/248).
V - Não operando aquelas circunstâncias automaticamente, é indispensável determinar se, no caso concreto, qualquer uma delas (que se verifique) preenche ou não o elemento qualificante da especial censurabilidade ou perversidade e justifica uma sanção que não cabe na moldura incriminadora do homicídio simples (cf. Acs. do STJ de 04-07-1996, CJSTJ, IV, tomo 2, pág. 222, e de 11-12-1997, BMJ 472.º/154).
VI - Tendo resultado assente, para além do mais, que «Logo depois de ter passado o portão de entrada do referido prédio, a MB ouviu passos atrás de si e voltou-se para trás, vendo então o arguido distanciado de si cerca de 1,50 m a empunhar uma pistola e a apontá-la na sua direcção. De imediato, à referida distância de cerca 1,50 m da assistente/demandante, e sem proferir qualquer palavra, o arguido efectuou com a referida pistola, de calibre 6,35 mm, um primeiro disparo na direcção da MB quando esta se encontrava de lado em relação a ele por se ter virado para trás ao ouvir os referidos passos atrás de si, atingindo-a no braço esquerdo. De seguida, o arguido efectuou ainda com a mesma pistola mais dois disparos na direcção da MB quando esta, depois de se ter sentido atingida no braço esquerdo com o primeiro disparo, já se encontrava de costas para ele e a fugir em direcção à sua casa, disparos estes que a atingiram nas costas, fazendo com que a mesma caísse ao chão. Após os três disparos, o arguido pôs-se em fuga em direcção ao pinhal existente defronte do referido portão, sendo ainda perseguido durante algum tempo por um dos filhos da MB que não conseguiu alcançá-lo», evidencia-se uma conduta do arguido merecedora de juízo de censura, mas não reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, pelo que se configura a prática de um crime de homicídio simples (na forma tentada), e não de um homicídio qualificado.
VII - Dentro das molduras penais abstractas correspondentes ao crime de homicídio, na forma tentada (de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos, 8 meses e 1 dia de prisão), e ao de detenção de arma proibida (prisão até 5 anos, considerando apenas a pena privativa de liberdade, que foi aplicada e não vem questionada), e tendo em consideração que: -é elevado o grau de ilicitude, pois o arguido agiu com manifesta superioridade de meios em relação à ofendida/vítima; -o arguido agiu com dolo directo e intenso (utilizou uma arma e desferiu 3 tiros, procurando e conseguindo atingir a vítima – com alguns desses tiros – em zonas vitais do corpo); -«foram muito gravosas as consequências da conduta do arguido, que deixou a ofendida paraplégica para o resto da sua vida, tratando-se duma mulher com 45 anos de idade, esposa e mãe de menores, até então alegre, jovial e empreendedora; -o arguido manifestou inusitada cobardia colocando-se em fuga imediata, escondendo ou desfazendo-se de pronto da arma que utilizou e procurando fazer desaparecer as demais provas reais de que fosse portador lavando-se bem como a roupa que na ocasião envergava»; -não manifestou qualquer arrependimento, pois negou os factos, não obstante a evidência das provas contra ele obtidas, o que revela também falta de consciencialização do desvalor da sua acção; -a favor do arguido militam as suas condições de vida nos aspectos familiares e profissionais e a boa reputação perante os que lhe são próximos, designadamente os amigos; -a seu favor também, a ausência de antecedentes criminais; -as razões de prevenção geral são acentuadas, dada a frequência com que no nosso país vêm sendo praticados crimes com utilização de armas de fogo; mostra-se adequada a aplicação da pena de 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), e 131.º do CP, na redacção vigente à data dos factos (a aprovada pela Lei 65/98, de 02-09), e da de 12 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) da Lei 5/2006, de 23-02, com referência ao art. 3.º, n.º 4, al. a), do mesmo diploma; e, em cúmulo jurídico, ponderando, no seu conjunto, os factos e a personalidade do agente, entende-se ajustada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
VIII - Resultando da matéria de facto provada que a ofendida sofreu graves lesões que lhe provocaram sequelas para toda a vida, muitas e intensas dores, sofrimentos e receios, sendo que, antes dos factos destes autos, era mulher saudável e alegre e depois do sucedido perdeu a alegria de viver, tendo ficado uma mulher diferente e triste, mostra-se justo o montante fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, de € 40 000.
IX - Estando demonstrado que: -a MB já despendeu em medicamentos, exames e consultas médicos, honorários clínicos, taxas moderadoras, despesas de transportes, e com a aquisição de um colchão, fraldas e demais produtos aludidos na factualidade provada a quantia de € 3123,13, e adquiriu uma cadeira de rodas eléctrica, como o que gastou a quantia de € 2383,50, custos estes que se cifram no montante global de € 5506,63; -tem de adquirir “um plano de inclinação automático”, como forma de facilitar a circulação sanguínea nos membros inferiores, que custa € 2500; -tem de fazer obras na cozinha e na casa de banho da casa onde reside, a fim de as adaptar às limitações físicas de que é portadora, obras essas que consistem, designadamente, no rebaixamento dos móveis da cozinha assentes no chão, de modo a permitir à demandante fazer uso deles, na substituição da banheira e chuveiro na casa de banho, na construção de uma rampa de acesso à base do chuveiro, na substituição da sanita por outra mais baixa, na colocação de apoios em tubo inox nas laterais da sanita e na substituição do lavatório de modo a permitir-lhe o uso dessa casa de banho e algum conforto, obras essas que orçam, as da cozinha em € 2850, e as da casa de banho em € 2390, montantes estes acrescidos de IVA, cuja soma ascende ao valor global de € 6461,40; -tem de adquirir, pelo menos, uma cama e colchão apropriados e uma almofada adequada, cujo custo importa em quantia não concretamente apurada; -com a aquisição de algálias, sacos de urina, sondas vaginais, esponjas para uso higiénico, compressas esterilizadas, soro fisiológico, fraldas, medicamentos vários, produtos de higiene e cremes, e deslocações para beneficiar de sessões de fisioterapia e para receber cuidados médicos, gasta quantia mensal não inferior a € 270, e o acompanhamento completo e permanente de que precisa por parte de uma ou mais empregadas implica despender verba mensal não inferior a € 1250; tais danos, de natureza futura e previsível, não podem deixar de ser considerados e incluídos nos danos patrimoniais futuros.
X - Estes danos são indemnizáveis – art. 564.º do CC –, não sendo aplicável o estatuído no art. 494.º do mesmo Código, pois resultaram dum comportamento doloso do arguido.
XI - Trata-se indemnização a determinar com recurso à equidade – art. 566.º, n.º 2, do CC –, devendo ter-se em atenção que a quantia a atribuir à lesada há-se ressarci-la durante o tempo provável da sua vida activa, de forma a representar um capital gerador de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual até final desse período, devendo ter-se em conta, desde logo, a esperança de vida do lesado e o quantitativo das despesas a efectuar pelo mesmo.
XII - Assim, tendo em consideração, para além do mais, que a demandante tinha à data dos factos 45 anos de idade, sendo razoável ponderar que a sua esperança de vida ronde os 70 anos de idade, afigura-se justa e equilibrada a indemnização fixada, no montante de € 210 000, pelas despesas que terá de suportar relativas à aquisição dos produtos e ao acompanhamento completo e permanente por parte de uma ou mais empregadas, montante esse já actualizado.
XIII - Para tal concluir basta que nos socorramos – apenas como elemento de referência –, por exemplo, da fórmula muito utilizada nos tribunais de trabalho nos cálculos respeitantes à remição das pensões: remuneração anual x incapacidade total x o coeficiente de referência relativo à idade da ofendida anexo à Portaria 11/2000, de 03-01. Considerando-se o montante das despesas anuais, no total de € 20 740, multiplicado pelo coeficiente de referência respeitante à idade da demandante (14,270), resulta a quantia de € 295 959, superior à fixada de € 210 000.
Proc. n.º 3379/08 -3.ª Secção Fernando Fróis (relator) Henriques Gaspar Pereira Madeira