ACSTJ de 29-10-2008
Extradição Princípio da especialidade Liberdade condicional Revogação Habeas corpus Âmbito da providência Prisão ilegal
I -A extradição, como um dos instrumentos de cooperação internacional, está, por força do disposto no art. 16.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31-08, sujeita ao princípio da especialidade, segundo o qual a pessoa «não pode ser perseguida, julgada, detida ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto […] diferente do que origina o pedido de cooperação formulado por autoridade portuguesa», ou «por facto ou condenação anteriores à sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de cooperação» – art. 16.º, n.º 2. II - A mesma regra vale nas específicas relações bilaterais entre Portugal e o Brasil no que respeita à extradição: o art. 6.º, n.º 1, do Tratado de Extradição entre Portugal e o Brasil (aprovado, para ratificação, pela Resolução da AR 5/94, de 04-11-1993, e ratificado por Decreto do PR 3/94, de 3 de Fevereiro) dispõe que «Uma pessoa extraditada ao abrigo do presente Tratado não pode ser detida ou julgada, nem sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal no território da Parte requerente, por qualquer facto distinto do que motivou a extradição e lhe seja anterior ou contemporâneo». III - A situação do requerente no momento em que foi formulado o pedido de extradição às autoridades brasileiras para cumprimento de pena não poderia sustentar nem justificar o fundamento invocado, porquanto no processo de execução da pena tinha sido proferida decisão que concedeu ao requerente a liberdade condicional por ter cumprido 5/6 da pena de 8 anos de prisão em que tinha sido condenado. IV - A situação de liberdade condicional, enquanto não for revogada, tem de ser considerada como estado de liberdade, sendo exigível, para a legitimidade da privação de liberdade, a verificação de um dos pressupostos necessários da privação ou restrição substancial do estado de liberdade, que resulte da lei interna como primeiro indicador de vinculação, ou se integre nas condições definidas no art. 5.º, § 1.º, da CEDH. V - A prisão tem de estar em relação de causalidade directa com o facto que legalmente a permite. Invocada uma decisão condenatória em pena de prisão (art. 5.º, § 1.º, al. a), da Convenção), a existência de um facto processual que corte tal relação directa – por exemplo a liberdade condicional concedida – impede a invocação da decisão condenatória para fundamentar a prisão; a relação de causalidade directa só será retomada quando cessar, por revogação, a situação de liberdade condicional. VI - Proferida, num processo de execução de uma pena, decisão que concede a liberdade condicional ao condenado, enquanto não for proferida e transite decisão que revogue a anterior, que colocou a pessoa no estado de liberdade, não pode ocorrer, com fundamento na condenação, privação de liberdade. A decisão de liberdade condicional define o novo estatuto do condenado no decurso da execução e, traduzindo um estado de liberdade, tem de subsistir até ao momento em que se tornar definitiva decisão que a revogue, por verificação dos pressupostos que a lei admite como fundamentos de revogação. VII - Apenas em circunstâncias específicas poderá ocorrer um desvio a este princípio e regra: é o que dispõe o art. 75.º do DL 783/76, de 29-10, ao permitir que no decurso do processo de revogação da liberdade condicional possa ser ordenada a detenção da pessoa em causa, em caso de «urgente e reconhecido interesse público». VIII - Não tendo havido decisão revogatória da liberdade condicional, e muito menos qualquer decisão, fundamentada, relativamente à verificação do pressuposto do referido art. 75.º, os mandados de captura não poderiam ter sido emitidos, e muito menos executados, nem, por isso, justificar um pedido de extradição para cumprimento de pena. IX - Não existindo, por outro lado, qualquer elemento que indique que as autoridades portuguesas tenham formulado pedido para cessar a proibição constante da regra da especialidade, e que a Parte requerida, ouvido previamente o extraditando, tenha dado o seu consentimento – art. 6.º, n.º 2, al. a), do Tratado de Extradição –, aquela regra impede a extradição, e consequentemente a prisão, para cumprimento da pena imposta no Proc. n.º 1…, quando o respectivo pedido foi desencadeado com base em mandados de captura emitidos para cumprimento do remanescente da pena aplicada no âmbito do Proc. n.º 7…, relativamente ao qual o extraditando foi colocado em liberdade condicional. X - Não obstante a excepcionalidade da providência de habeas corpus – remédio contra casos de patente ilegitimidade de privação da liberdade, que não constitui um sucedâneo dos recursos e dos meios processuais próprios –, verificando-se que a situação descrita não poderá ser adequadamente solucionada pelos meios processuais disponíveis, uma vez que o requerente já expôs repetidamente a sua pretensão nos respectivos processos (da condenação e do TEP) sem obter a resposta exigível perante os elementos de facto e de direito existentes, a situação é susceptível de ser apreciada como objecto de habeas corpus, por se revelar excepcional e equivaler a prisão por facto (ou em circunstâncias) pelo qual a lei a não permite – art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP (Ac. do STJ de 24-11-2004, Proc. n.º 4293/04). XI - A situação, materialmente análoga e com cabimento na possibilidade de declaração do STJ com base na al. d) do n.º 4 do art. 223.º do CPP («declarar ilegal a prisão»), tem de cessar, determinando-se a cessação dos efeitos do mandado de detenção no âmbito do Proc. n.º 7…, e comunicando-se, para execução, ao TEP e à PGR, como entidade competente para a tramitação do pedido de extradição (art. 21.º, n.º 4, da Lei 144/99, de 31-08).
Proc. n.º 3556/08 -3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro
Pereira Madeira
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